Por MARIA LUIZA FALCÃO SILVA*
A visita de Estado de Donald Trump ao Reino Unido, iniciada em 17 de setembro de 2025, representa muito mais do que um mero ritual diplomático: é um ato político carregado de simbolismo, um exercício calculista de poder, imagem e realpolitik que expõe as fissuras da aliança e as contradições do governo Starmer. Sob a pompa real e a cortina de fumaça de investimentos bilionários, escondem-se divergências profundas, escaladas autoritárias e uma crise política britânica agravada pelo espectro de Jeffrey Epstein e pela ascensão da ultradireita.
Contexto e Protocolo Real
Trump e Melania chegaram ao Aeroporto de Stansted na noite de terça-feira (16) e foram levados ao Winfield House, residência oficial do embaixador dos EUA. Hoje cedo, participaram de uma recepção solene no Castelo de Windsor, com guarda de honra, desfile militar e encontro com o rei Charles III, a rainha Camilla, o príncipe William e a princesa Kate.
A Encenação Real como Ferramenta Política
A recepção no Castelo de Windsor, meticulosamente orquestrada, foi um “Trump festival” deliberadamente desenhado para apelar ao narcisismo do presidente norte-americano. Pela primeira vez na história, um mandatário dos EUA é agraciado com duas visitas de Estado – um gesto que Charles III estendeu não por mérito diplomático, mas por uma relação pessoal que remonta aos anos 1980. O ritual incluiu:
· Um desfile militar com 1.300 soldados, cavalaria e sobrevoos de caças F-35 e Red Arrows.
· Um banquete, oferecido pelo monarca, na Mesa de Waterloo (50 metros de comprimento) com a baixela de ouro de 200 anos da Coleção Real.
· A presença de William e Kate como anfitriões simbólicos, estratégia para vincular a imagem de Trump à juventude e continuidade da monarquia .
Para Trump, fascinado pela realeza desde a infância (influenciado por sua mãe escocesa), as imagens ao lado do rei são um “troféu” de legitimidade global . Para o Reino Unido, é uma jogada de soft power desesperada: usar o brilho da coroa para mascarar a fragilidade pós-Brexit e garantir vantagens comerciais .
A agenda segue com reuniões no nº 10 da Downing Street com o primeiro-ministro Keir Starmer e outros ministros britânicos para tratar de comércio, inteligência artificial, segurança e energia.
Reforço da “Relação Especial”
O Reino Unido aposta nessa visita para reafirmar a histórica “relação especial” com os Estados Unidos, abalada nos últimos anos pela imprevisibilidade de Trump. Para Starmer, o encontro é uma oportunidade de mostrar liderança e garantir benefícios práticos — como investimentos e cooperação tecnológica — sem parecer servil aos olhos de uma sociedade britânica dividida sobre Trump e suas políticas.
Legitimação Simbólica para Trump
A pompa real tem efeito direto na política doméstica americana. As imagens no Castelo de Windsor e o banquete com a família real servem como validaçãosimbólica para Trump, reforçando sua narrativa de estadista respeitado no exterior. Ele utilizará cada foto e cada cerimônia para fortalecer sua posição na arena eleitoral dos Estados Unidos (EUA).
Negociações e Geopolítica
Além do simbolismo, há substância. Por trás da pompa, as agendas de Trump e Starmer colidem frontalmente em questões cruciais. Há divergências geopolíticas instransponíveis. Estão na pauta temas estratégicos:
1. Ucrânia e OTAN: Trump reiterou sua recusa em impor novas sanções à Rússia, apesar da invasão de drones em território da OTAN (Polónia). Sob pressão de Starmer, manteve a retórica de que a Europa deve “dar o primeiro passo” contra a Rússia e China – incluindo tarifas de 50% a Pequim e Nova Deli, medida inviável para o Reino Unido.
2. Gaza e Palestina: Enquanto Starmer planeja reconhecer o Estado palestino ainda em setembro na ONU, Trump reafirmou apoio incondicional a Netanyahu e criticou a ofensiva diplomática britânica.
3. Livre-comércio vs. Protecionismo: O acordo comercial anterriormenteanunciado é superficial: redução de tarifas de 27,5% para 10% em automóveis britânicos, e de 50% para 25% no aço – longe da eliminação prometida. Setores como farmacêutico, alumínio e whisky permanecem sob barreiras.
Em um mundo marcado pela rivalidade EUA-China e pela guerra na Ucrânia, Trump busca mostrar que os EUA mantêm capacidade de liderança e alianças sólidas.
Crise Política Britânica: O Espectro de Epstein e a Ultradireita
A visita ocorre no pior momento possível para Starmer, cujo governo está acuado por:
· O caso Mandelson: A demissão do embaixador em Washington por seus vínculos com Jeffrey Epstein expôs a negligência do premiê em vetar nomes comprometidos. Trump, também associado a Epstein, evitou o tema, mas projeções noturnas no Castelo de Windsor com imagens dos dois com o financiador falecido lembrou ao mundo o escândalo.
· A ascensão da ultradireita: A marcha de 150.000 pessoas convocada por Tommy Robinson (com apoio de Elon Musk e Steve Bannon) exigindo a expulsão de imigrantes e a dissolução do Parlamento. Trump já endossou publicamente a retórica de “liberdade de expressão” de Robinson, pressionando Starmer a adotar políticas anti-imigratórias.
· Fragilidade interna: Starmer enfrenta baixa popularidade, deserções no Partido Trabalhista e risco de “moção de confiança” em 2026. Sua estratégia de evitar confrontos com Trump é vista como “ajoelhar-se” perante valores antagônicos ao laborismo. Esses aspectos lembram que, por trás da pompa, há uma batalha de narrativas e que a opinião pública britânica não está unânime em saudá-lo.
Segurança e Protestos: A Fortaleza de Windsor
O dispositivo de segurança foi o maior desde a coroação de Charles III, com espaço aéreo fechado, franco tiradores nas torres do castelo e 1.600 policiais mobilizados. Houve prisões por projeções “maliciosas” com imagens de Trump e Epstein e protestos massivos da “Stop the Trump Coalition” em Londres, criticando a “alfombra vermelha” a um presidente autoritário .
A escolha de Windsor (e não Londres) como palco evitou manifestações de maior escala, mas confirmou que Trump é uma figura que divide profundamente opiniões no Reino Unido.
Pompa sem Substância, Risco sem Recompensa
Esta visita é um emblema da diplomacia do espetáculo: investimentos em IA e nuclear (US$ 42 bi) são anunciados como triunfos, mas encobrem falhas geopolíticas graves. Starmer não conseguirá alterar as posições de Trump sobre Ucrânia ou Gaza, e as concessões comerciais são limitadas. Pior: ao associar-se a um líder que flerta com a ultradireita e cuja sombra de Epstein persiste, o governo britânico arrisca a própria credibilidade democrática.
Como resumiu o analista Manuel Serrano num artigo na SIC Notícias intitulado Trump no Reino Unido: “Pensar em avanços diplomáticos parece-me uma ilusão. Para Trump, o importante é estar com o rei e tirar fotografias”.
*Maria Luiza Falcão Silva é PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (ABED). Entre outros, é autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England/USA.
Foto de capa: Donald Trump em Charles III durante encontro em Londres | AFP




