A saga de Dona Joana em Copacabana

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Por LÉA MARIA AARÃO REIS*

Em cartaz há quatro meses nos cinemas, e mais recente,  no streaming**, o filme Vitória, com Fernanda Montenegro, é uma das mais robustas bilheterias da profícua onda de produções nacionais realizadas de um ano para cá. O longa dirigido por Andrucha Waddington arrecadou mais de 12 milhões de reais nas bilheterias e já foi assistido por 585 mil pessoas. Certamente, pela maioria de cidadãos e cidadãs preocupados/as com a segurança pública, com a própria segurança e de suas famílias no cotidiano dos pequenos e médios centros urbanos e nas grandes metrópoles do país.

Em uma semana em que estão sendo divulgados pela 18ª. edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, dados preocupantes sobre o renitente número de mortes violentas em algumas áreas do país, o interesse do espectador por Vitoria é  compreensível.

A história, que é verídica, segue a trajetória de Joana Zeferino da Paz, uma massagista entrada nos 80 anos de idade, moradora de um apartamento em movimentada esquina de Copacabana, que denunciou à polícia o tráfico de drogas e a corrupção policial nas bordas da comunidade da Ladeira dos Tabajaras, vizinha do seu prédio. Uma história espantosa se não fosse notável pela sua  veracidade.

A denúncia de Dona Joana (apelidada de Dona Nina no filme) ocorreu há cerca de vinte anos. Ela estava cansada de ter os vidros e paredes do seu apartamento atingidos por balas de grupos de traficantes em luta entre si e com a polícia. Decidiu então comprar uma câmera de filmar de funcionamento básico e com os filmes que começou a fazer quis provar a situação que vinha testemunhando, escondida pelo parapeito da sua janela. Primeiro,  ainda sem os vídeos, foi à delegacia policial do bairro que não deu atenção à sua denúncia.

Em um segundo movimento, Vitoria retrata a coragem de Dona Joana em enfrentar o crime organizado e confrontar a corrupção policial filmada; e mostra o descaso premeditado da delegacia local em aceitar a denúncia. Leva suas gravações à delegacia e nem mesmo assim é levada a sério. 

A sua persistência durante meses, e a grande repercussão da história publicada nos jornais pelo repórter Fábio Gusmão,  autor do livro Dona Vitória Joana da Paz, no qual o roteiro se inspirou, ganham a parada. (Fabio Gusmão é interpretado por um bom ator,  Alan Rocha e Linn da Quebrada faz uma vizinha trans, uma cabeleireira, linda). Mais de 20 criminosos, traficantes e policiais corruptos até mesmo do alto escalão são presos e condenados.

Mas para não ser assassinada por vingança, depois do escândalo tornado público, Dona Nina/Joana é convencida a deixar o seu apartamento definitivamente e entrar no programa de proteção a testemunhas onde permaneceu o resto de sua vida. Dona Joana morreu aos 97 anos, em 2023. Vivia em Salvador, na Bahia.

A primeira parte do roteiro enxuto, de Paula Fiúza, desse filme  inicialmente dirigido por Breno Silveira – que morreu durante as filmagens e foi retomado por Andrucha Waddington  – é intimista, discreto, esmiúça com precisão o ambiente na região das favelas de Copacabana, as delegacias, suas ruas, bares, cafés, o pequeno comércio, e seus moradores. O ponto de vista se dá através do olhar carinhoso da idosa solitária vivida com a precisão habitual, a sensibilidade e delicadeza da interpretação de Fernanda Montenegro. É ela a grande protagonista.  Na segunda parte, a trama se amplia e explode a ação violenta ao som de uma trilha musical bem construída por Antonio Pinto.

O périplo de Dona Nina/Joana em Vitória aponta também para a condescendência e pelo desdém com que os mais velhos, e em especial as mulheres, são recebidos(as) em diversos lugares; locais de trabalho, lugares públicos e em família. Prova de que o etarismo é um dos grandes debates necessários no nosso novo mundo e a crescente longevidade um assunto a ser respeitado, estudado e reconhecido.

Vitória é um filme a ser visto.


Léa Maria Aarão Reis é jornalista.

lustração de capa: Divulgação

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