Por J. CARLOS DE ASSIS*
As estruturas básicas do Brasil derreteram. No Governo, Executivo e Legislativo se empenham num conflito violento em torno principalmente de emendas parlamentares, que são o principal canal de corrupção por onde escoa o dinheiro público no País. No Congresso, os demais assuntos são secundários, exceto quando se trata de atender aos interesses das oligarquias financeiras e das classes dominantes, como é o caso do proposto aumento do IOF.
As próprias estruturas sociais estão podres, na medida em que foram desestruturadas e estão dominadas pelo crime organizado, em total desafio ao sistema judicial e policial. Estes, não raro, são cúmplices do crime – exceto, para ser justo, no caso da Polícia Federal, que tem cumprido diariamente dezenas de mandados de prisão e de busca e apreensão nas tocas dos criminosos, que se escondem nas periferias das grandes metrópoles e cidades médias.
Ninguém anda com tranquilidade nas ruas. Fala-se muito em crime organizado, mas, para o cidadão ou cidadã comum, é muito mais ameaçador de sua vida o crime desorganizado. Este toma com frequência a forma de crianças e adolescentes que cercam pedestres e motoristas nas ruas e nos carros, a qualquer hora do dia ou da noite, usando qualquer tipo de arma, de canivetes a pedaços de garrafas de vidro, para lhes tomar os celulares, as alianças e outras coisas que tenham algum valor.
Tirar essas crianças atraídas pelo crime é impossível. No Rio, não há sequer espaço nas casas de detenção para acolhê-los. São soltos pela Justiça, e voltam às ruas para continuar roubando e assaltando. As polícias comuns, a Militar e a Civil, em geral se frustram quando prendem bandidos e eles são logo soltos nas audiências de custódia. Juízes são muitas vezes suspeitos pela soltura, pois o exemplo da corrupção vem de cima, quando desembargadores são acusados de vender sentenças.
A política econômica, responsável pelo conflito entre Executivo e Legislativo, desestruturou o sistema educacional, em especial as universidades federais, que estão sendo privadas de verbas essenciais, inclusive para pagar água e luz. O Estado Social, como um todo, está sendo esmagado por cortes orçamentários sucessivos, a fim de que se garanta a chamada sustentabilidade da dívida pública. Esta se define como a capacidade virtualmente esgotada de o Governo pagar pelo seu respectivo serviço anual.
A desorganização do País se expressa na ameaça à própria Previdência Social, que deveria ser considerada sagrada por representar a única fonte de sobrevivência para idosos, que lhe pagaram religiosamente contribuições mensais durante toda a vida. É patente o potencial de convulsão social quando um impertinente cidadão como Armínio Fraga, a serviço de bilionários, aponta cortes na Previdência para garantir aos rentistas o pagamento da Dívida Pública. Coisas como essas tendem a gerar revoltas do povo e convulsões sociais.
Não demora muito e a política econômica a favor do capitalismo predatório e especulativo, representado pelos juros estratosféricos absolutamente injustificáveis mantidos pelo presidente do Bacen, Gabriel Galípolo, acabará se tornando outra fonte de revolta popular, similar ao que recentemente ocorreu no Banco Itaú, em São Paulo – porém com um alcance muito maior, pois pode envolver o País inteiro.
Não há como fazer remendos nessa situação. O Brasil terá de “mostrar sua cara”, como queria Cazuza, e reconhecer nela os requisitos indispensáveis para sua regeneração. Diante disso, não vejo outra saída senão uma nova Constituinte. A atual Constituição apodreceu. A rigor, nunca foi boa. Se Ulysses Guimarães fosse um economista progressista do mesmo naipe do advogado progressista que foi, jamais a chamaria de Constituição cidadã. Ela foi uma enganação neoliberal, urdida pelos conservadores.
De fato, enquanto as esquerdas se empenhavam em garantir na retórica da Carta direitos sociais amplos, a direita tratava de impedir sua realização na prática, determinando os limites das políticas fiscal e monetária em que esses direitos deveriam ser enquadrados. Isso foi aperfeiçoado pela Lei de Responsabilidade Fiscal de Fernando Henrique Cardoso, em 1990, e resumido no “arcabouço fiscal” a que Lula teve de recorrer para assegurar a transição presidencial de Bolsonaro para ele.
Com a liberação total da entrada de recursos financeiros externos no País, permitida pela Constituição, inclusive os destinados exclusivamente à especulação, entramos na vertigem de crescimento da Dívida Pública impulsionada pela estúpida taxa Selic, que a corrige anualmente. Agora, quando as contas são feitas, os economistas neoliberais são os primeiros a advertir que o País está à beira da quebra, e precisa fazer reformas estruturais.
E quais seriam essas reformas estruturais? Na visão deles, essencialmente, cortar nas despesas orçamentárias da Previdência, da Educação e da Saúde, que os constituintes de 1988 achavam que seriam preservadas obrigatoriamente pelo simples fato de serem classificadas na Constituição como não discricionárias – ou seja, preservadas de qualquer corte, exceto por maioria qualificada do Congresso. E os neoliberais, juntando direita e esquerda, pois há neoliberal de ambos os lados no Parlamento, têm essa maioria.
Lula terá de ser um estrategista de uma estatura similar à que foi quando liderou as greves trabalhistas dos anos 1980, que ajudaram crucialmente a derrubar a ditadura. Não adianta ele tentar o diálogo com o Legislativo, pois, num ano eleitoral, o Congresso majoritariamente hostil a ele não vai querer saber de conversa. Além disso, no espaço restrito do “arcabouço fiscal”, é impossível conciliar os interesses do Executivo, que quer preservar pelo menos parte do Estado Social, e o Legislativo, que quer suas emendas aprovadas e liberadas.
A meu juízo, ao caracterizar-se definitivamente o conflito entre os Poderes, Lula deve simplesmente radicalizar, renunciando à Presidência e denunciando as amarras que a maioria hostil do Congresso lhe impôs. Precisa buscar na rua, como um peixe faz na água, o ambiente favorável a que seja eleito para seu quarto mandato. Alckmin deve segui-lo, se não for um idiota, para deixar a batata quente nas mãos de Hugo Motta e David Alcolumbre.
Porém, isso não é suficiente para superar a crise brasileira e a provável convulsão social no País. Ele deve se contrapor à busca frenética de Bolsonaro por uma representação própria no Congresso, de 50%, como pediu ao povo em comício recente – porque, nessa condição, mandaria mais que o Presidente -, e incitar o povo a eleger no mínimo 2/3 do Congresso a fim de contar com um Congresso novo para a convocação da Constituinte, a fim de limpar e reconstruir o Brasil, nos afastando do nazi-facismo.
Todo o esforço popular para reeleger Lula, porém, seria inútil se ele insistisse, num quarto mandato, na deplorável política econômica que fez durante esse terceiro, que o está derrotando. Na verdade, ele se deixou levar pelo neoliberalismo, e foi o neoliberalismo que está nos levando ao caos. Assim, seria uma tremenda traição à cidadania que ele retornasse ao Planalto com a mesma prática de antes, mudando apenas o discurso. E creio, inclusive, que, se não fizer uma política que atenda ao andar de baixo, a maioria da população se revoltará contra ele, o que seria muito justo.
*J. Carlos de Assis é jornalista, economista, doutor em Engenharia de Produção, professor aposentado de Economia Política da UEPB, e atualmente economista chefe do Grupo Videirainvest-Agroviva e editor chefe do jornal online “Tribuna da Imprensa”, a ser relançado brevemente.
Foto de capa: Reprodução Marcelo Camargo/Agência Brasil
Respostas de 3
Que loucura é esta?
As forças democráticas lutando com dificuldade para manter as conquistas populares da Constituição de 1988 e o autor do texto propondo uma nova Constituinte na conjuntura atual de forças, em que a direita controla o Congresso, estados e prefeituras? Ele está louco?!!!!!!
Concordo com Maria da Graça.