Por NORA PRADO*
Não pude assistir ao belíssimo “O Quarto ao Lado”, de Pedro Almodóvar na época do seu lançamento, mas vi agora, no último domingo, na sala de estar da nossa casa. É um filme que por suas enormes qualidades técnicas de fotografia e trilha sonora, além do texto, dos incríveis diálogos e da estupenda atuação de Tilda Swinton e Juliane Moore mereceriam a tela grande e o silêncio do cinema. Mesmo assim fiquei fascinada pela narrativa densa e a condução majestosa dada ao tema, a eminência da morte e o poder de uma pessoa decidir ou não por ela.
O enredo é simples: duas amigas, Martha e Ingrid se reencontram na meia idade, quando uma delas está com câncer terminal fazendo tratamento no hospital. Ingrid, a amiga escritora, fica sabendo disso através de uma amiga em comum que está na fila de autógrafos do seu último livro, casualmente sobre a morte. O reencontro entre as duas amigas no hospital é prazeroso e alegra a vida de Martha. Ambas trocam confidências e Martha desabafa sobre a sua dificuldade de relacionamento com a filha. Ela está finalizando um tratamento alternativo e prestes a seguir numa próxima etapa. Ingrid acabou de se mudar da Europa para Nova York onde ambas trabalharam e se divertiram muito nas décadas de 1980 e 1990. Mas ao contrário do esperado o tratamento alternativo de Martha é mais limitado do que o imaginado e não dá o resultado desejado. O câncer se espalha em metástases pelos ossos e outras partes do corpo. Martha recebe alta hospitalar momentânea para voltar para casa, mas deve retornar o tratamento em breve. Ela está descrente quando ao futuro tratamento e esgotada com o sofrimento provocado pelo excesso de drogas administradas diariamente. Decide que desejaria encerrar a sua vida dignamente e propõe e Martha saírem para uma casa perto das montanhas em meio ao campo para se despedir da vida. Ela conseguiu uma pílula da morte através da deepweb e pretende usá-la em breve, dentro de um mês no máximo. Ingrid, a princípio, discorda e não quer assumir o papel de testemunha na eutanásia da amiga. Martha admite que Ingrid não foi a sua primeira escolha, mas que as outras três amigas discordaram veementemente dela, não restando mais uma alternativa. Ingrid acaba cedendo e acompanha a amiga na sua última viagem aqui na terra. Martha aluga uma casa lindíssima, moderna, elegante e confortável imersa numa bela paisagem relaxante e inspiradora. Panorama para o desfecho final de uma repórter de guerra acostumada ao caos e a dor. Um reencontro consigo mesma na sua derradeira viagem ao centro de si.
As composições imagéticas de cada cena, com o auxílio luxuoso de uma direção de arte impecável, são como quadros de um pintor genial que usa as cores com propriedade e maestria em arranjos sublimes. Martha está apaziguada e conformada com o fim. É apenas uma questão de tempo e Ingrid saberá disso no dia em que a porta do seu quarto estiver fechada. Esse é o combinado. Há uma tensão crescente entre as duas, entrecortadas por passeios na mata e descansos nas poltronas reclináveis. Numa das últimas conversas sobre o que será feito depois, Ingrid pergunta sobre o que fazer com os diários de guerra? Ela diz que gostaria de escrever sobre a amiga. Martha consente. Um amigo comum de ambas está numa cidadezinha, próxima da casa de campo, para uma palestra. Martha o encontra e conta tudo o que está acontecendo. Ele compreende a delicada situação, mas a aconselha Ingrid a ter um advogado para não se complicar judicialmente no futuro. Para não ser considerada cúmplice num homicídio, ainda que milimetricamente calculado pela “vítima”.
Martha e Ingrid passam a última noite assistindo Buster Keaton e Os Vivos e os Mortos, filme de Jonh Huston sobre uma novela de James Joyce. Terminam com a luminosidade do dia invadindo a sala. Ingrid sai para encontrar o amigo, enquanto Martha se prepara para a despedida. Ela se maquia, pinta a boca com um roxo fulminante que contrasta lindamente com o amarelo siciliano do terno, elegantemente, cortado. Deita-se sobre a espreguiçadeira vermelha, no terraço, em pose semelhante aos dos personagens de um quadro de Edward Hope que está na sala. Martha retorna para casa. Chama pela amiga que não responde. Vai até o quarto que está com a porta estrategicamente fechada. Abre a porta, mas não encontra a amiga na cama. Apenas duas cartas sobre a escrivaninha. Desce e vai até a sala de onde avista Martha através do vidro, como se estivesse apenas dormindo ao sol. A história poderia terminar aqui, mas segue apenas com o desfecho policial intimidando Ingrid na delegacia e a advogada e o amigo dando o devido apoio. Numa coda, digna dos melhores poetas, conhecemos a filha, parecidíssima com a mãe que vem até a casa depois que Ingrid a avisa por telefone. A filha decide passar a noite ali e dormir no quarto da mãe. No dia seguinte Ingrid acorda e a vê deitada sobre a mesma espreguiçadeira onde Martha ficava. Ela junta-se a moça e ambas assistem a neve que cai lentamente sobre os vivos e os mortos.
Um grande e comovente filme sobre a essência das relações humanas, sobre a compaixão e impermanência da vida. O mestre segue firme mostrando porque é considerado um dos maiores cineastas da atualidade. Sabe como poucos narrar com elegância, densidade e concisão uma história demasiadamente humana. Viva Almodóvar!
*Nora Prado é atriz e poeta.
Foto de capa: Reprodução.
Respostas de 22
Super elogiado
por acaso assisti a esse filme maravilhoso ontem à noite. Vale muito à pena assistir . Mas acho q no seu texto vc deu muito spoiler. Contou todo o filme em detalhes. Claro que assisti-lo acrescenta toda a emoção da estória e a beleza da fotografia, mas não restou nada a surpreender .
Ainda bem que não li o texto todo!! Obrigada por me avisar.
Resenha e comentário perfeitos sobre mais essa obra prima de Almodóver e suas atrizes.
Hoje assisti O Quarto ao Lado pela segunda vez.
E ainda estou com o coração na boca.
Almodóvar é sem dúvida um de meus preferidos e as atrizes Tilda e Jennifer absolutamente à altura dessa obra de arte.
Excelente análise do excelente filme, do grande Almodóvar!
Adorei e compartilhei.
Obrigada
O artigo é bom, embora quase limitado à narrativa do filme. Derrapa no vernáculo quando diz “eminência” da morte em vez de “iminência” da morte.
A autora poderia escrever sua opinião sobre esse belíssimo filme do Almodovar sem no entanto não narra-lo inteiramente levando o futuro espectador a não ter mais espectativas ou surpresas.
Tens razão, mas fiquei tão fascinada que imaginei que a imensa maioria das pessoas já tivessesem assistido ao grande filme. Levarei sua crítica como uma ótima advertência. Obrigada!
A autora poderia escrever sua opinião sobre esse belíssimo filme do Almodovar sem no entanto narra-lo inteiramente, levando o futuro espectador a não ter mais espectativas ou surpresas.
Tens toda a razão, procurarei ser mais econômica quanto ao conteúdo da obra no futuro. Obrigada pela crítica!
Ainda bem que assisti o filme antes da leitura desse artigo que deve ser próximo ao seu argumento . 100% de spoilers.
Sensacional o comentário sobre o filme já assisti 3 vezes e cada vez gosto mais dele. Tenho uma reprodução do Edward Hoper em minha sala.
Texto muito bem escrito.
Porém, se não tivesse assistido, não precisaria!
Está tudo detalhado…
Belíssimo enredo!
Nora, entendo seu ponto de vista sobre a obra do diretor, mas falar “viva” a um cineasta que em em praticamente todos os seus filmes colocou mulheres sendo abusadas (em coma!) ou várias facetas do uso da mulher como subproduto do capitalismo é de se pensar!
O filme pode ser brilhante, mas em pleno século 21 não podemos errar sendo coniventes com diretores de cinema misoginos.
Caro, João, me desculpe discordar completamente de ti, pois Pedro Almodóvar jamais foi misógino. Se ele coloca mulheres em situações limite ou de abuso, é simplesmente para mostrar o quão machista é a sociedade patriarcal contemporânea e seus machos “mal resolvidos” ou “mal amados.”Um diretor que foi criado numa cultura machista como a espanhola, não poderia deixar de mostrar esses tristes traços nos seus filmes. Sempre vi como crítica o que você observa como suposta ideologia.
Assisti, a fotografia é belíssima, são cenas lindas, cativantes e comoventes.
Triste ao sentir o fim e saber que é assim para todos. Um tema difícil, se podemos decidir quando finalizar. Mas é muito forte quanto a amizade e o companheirismo.
Nora Prado, seu texto é magistral! Obrigada por compartlhá-lo com a gente!
Obrigado, por sua “narrativa” do filme vou assistir.
Magnífica narrativa, em poucas palavras foram ditas sabiamente com carinho, respeito, amizade e leveza..
Que prazer ler esse texto, indescritível, me senti como si fora Ingrid e em um determinado ponto me senti como Martha.
Parabéns.
Quem encontra o conhecido é Ingrid, e compartilha a história da amiga Martha. Equivoco no referido. Obrigada!
Um dos filmes que mais me tocou ultimamente. Não havia assistido antes e concordo com seus comentários e principalmente sobre a cena que o filme poderia ser encerrado. Atuação fantástica das duas atrizes. Adorei sua resenha. Gostaria de continuar acompanhando você!