Por J. CARLOS DE ASSIS*
O dólar vale o que as pessoas querem pagar por ele. Na essência, não é muito diferente de uma criptomoeda num fundo baseado no esquema Ponzi, no qual o último aplicador é pago pelo primeiro, enquanto o vigarista que o controla desvia as aplicações principais para o próprio bolso. A política tarifária de Donald Trump está expulsando empresários que exportam para os Estados Unidos em busca de dólar. Portanto, a demanda e o valor do dólar tenderá a cair progressivamente no mundo.
Será por culpa exclusivamente de Donald Trump, e não de uma conspiração feita no âmbito dos BRICS. Na medida em que o mercado norte-americano se fecha, os países que tradicionalmente exportavam para lá buscarão mercados alternativos. Isso implicará a constituição progressiva uma zona monetária que facilite o comércio sem necessidade de dólar, mesmo porque as portas estarão fechadas para sua obtenção através de transações comerciais normais que estão sendo interditadas.
O primeiro passo para isso foi dado pela Rússia, este, sim, no âmbito dos BRICS, pelo qual os países do bloco fizeram acordos para comercializarem entre si nas próprias moedas. É claro que se trata de um movimento ainda incipiente. Contudo, na medida em que a pressão tarifária dos Estados Unidos continue forçando a busca pelos países de mercados mais confiáveis, lucrativos e estáveis, o comércio mundial acabará se deslocando de forma definitiva e se adaptando à nova realidade criada pelos Estados Unidos.
O fato é que criar mercados comerciais não é tarefa fácil. Contudo, uma vez criados, os mercados tendem a estabilizar-se. Por isso, o que Trump está fazendo hoje terá consequências permanentes a longo prazo. Os que foram pegos de surpresa pelos tarifaços e tiverem de correr atrás de mercados alternativos para reduzir seus danos não se arriscarão de novo a cair nessa rede. Em uma palavra, a credibilidade econômica dos Estados Unidos está afetada, eventualmente para sempre.
Dessa forma, não é o dólar, mas o país emissor que se desvalorizou. Com os trilhões de dólares que devem ao mundo em treasures, e com o mundo, por seus agentes, cada vez mais empurrados para as cordas pelas tarifas inconsequentes de Trump que reduzem a compra externa de dólares mediante as exportações por parte de estrangeiros, a moeda antes dominante já não serve como reserva de valor, e perde também as outras funções de meio de troca e estalão de preços, por sua instabilidade.
Além do valor subjetivo, que lhe é dado pelo interesse do comprador em tê-la ou adquiri-la, toda moeda tem alguma base no mundo real, na forma do poder econômico do emissor e, principalmente, de sua indústria. Por esse critério, os Estados Unidos estão largamente atrás da China, que tem de longe a maior produção industrial no mundo. Outro fator que influi no valor da moeda é a capacidade tributária do Estado. A moeda emitida pelo Estado soberano vale porque o Estado tem o poder de tributar a sociedade que é obrigada a pagar por ela na forma de tributos.
Há indícios suficientes de que se esgotou o tempo da hegemonia do dólar, diante do enfraquecimento econômico do seu emissor. Contudo, a pá de cal é a política tarifária de Donald Trump. Ele pôs em risco o dólar quando aumentou tarifas comerciais para o mundo inteiro, de forma abrupta, praticamente bloqueando importações e grande parte da compra de dólares por agentes externos, reduzindo a demanda por ele e, portanto, empurrando para baixo seu valor de mercado.
De Bretton Woods ao esgotamento estrutural
O poderio histórico do dólar nasceu na Conferência de Bretton Woods, Estados Unidos, em plena Segunda Guerra Mundial, quando a economia norte-americana havia se tornado a potência militar e econômica dominante no planeta, substituindo a decadente Inglaterra e derrotando a desafiadora Alemanha nazista. Nessa condição, não foi difícil para o representante de Washington no encontro, Harry Dexter White, um simples economista e funcionário do Departamento do Tesouro do país- sede do encontro, derrotar com um proposta convencional um economista que já era reconhecido, inequivocamente, como o mais destacado do mundo, John Maynard Keynes.
Enquanto White foi o principal arquiteto da proposta vitoriosa americana para o novo sistema monetário internacional estabelecido na Conferência, Keynes propôs o bankor como moeda de reserva e base para as relações comerciais internacionais. É claro que Keynes perdeu, pois sua grande autoridade intelectual não estava à altura do poder militar norte-americano, que se firmara na guerra. E assim entramos num sistema monetário que, aos trancos e barrancos, esgota-se agora com as trapalhadas unilaterais de Donald Trump.
Vejamos o processo histórico que nos trouxe até o momento atual. No imediato pós-guerra, sob a égide de Bretton Woods, o poder do dólar conversível sustentou três processos simultâneos: 1) o déficit na conta de capitais, produto da expansão da grande empresa americana, garantiu o abastecimento da liquidez requerida para o crescimento do comércio mundial; 2) daí, a reconstrução dos sistemas industriais da Europa e do Japão; e 3) a industrialização de muitos países da periferia, impulsionada pelo investimento produtivo direto em conjugação com políticas de desenvolvimento nacional.
Os desequilíbrios crescentes do balanço de pagamentos americano levaram à breca o sistema de conversibilidade e taxas fixas de Bretton Woods, ao impor a desvinculação do dólar em relação ao ouro em 1971 e a introdução das taxas de câmbio flutuantes em 1973. A continuada desvalorização do dólar nos anos 70 colocou em apuros a economia mundial.
A regeneração do papel do dólar como standard universal foi efetivada mediante uma elevação sem precedentes das taxas de juros, em 1979, nos EUA. O fortalecimento do dólar como moeda de reserva e de denominação das transações comerciais e financeiras promoveu profundas alterações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. A força do dólar estimulou a redistribuição da capacidade produtiva na economia mundial, sobretudo na indústria manufatureira, e ampliou os desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa, bem como o avanço da chamada globalização financeira.
A guinada protecionista e a perda da confiança
Nestas condições, os EUA foram capazes de atrair capitais para os seus mercados e dar-se ao luxo de manter taxas de juros moderadas, fenômeno que se acentua nos anos 90, o que propiciou a emergência de fenômenos correlacionados: 1) a acumulação de reservas nos países asiáticos, como contrapartida da ampliação dos déficits em conta corrente dos EUA; 2) a espantosa expansão do crédito e a inflação de ativos nas economias centrais. A farra culminou na crise dos mercados hipotecários, deflagrada na segunda metade de 2007.
A hegemonia americana e seu enorme mercado nacional ensejaram a constituição de um espaço econômico e monetário dinâmico e conflitivo entre os EUA, a Ásia e a Europa. A Ásia se torna formidável produtora e processadora de peças e componentes baratos (sem exclusão dos bens finais). Conforma-se ali uma mancha manufatureira, grande importadora de matérias primas e alimentos, que pulsa em torno da China, reintegrada ao circuito capitalista desde as reformas do final dos anos 70.
As relações de troca no comércio mundial deixam de inclinar-se a favor das manufaturas e contra os produtos primários. É no território dos asiáticos, de mão-de-obra barata, câmbio desvalorizado e abundância de investimento direto estrangeiro que se produzem as novas manufaturas. (Em um primeiro momento, a queda continuada nos preços da manufaturas empurra para baixo a inflação global. Na segunda rodada, a pressão da demanda dos emergentes sobre os recursos naturais joga para o alto o preço das commodities).
As teorias sobre ajustamentos (e desajustamentos) do balanço de pagamentos (monetaristas, keynesianas e novo-clássicas) não funcionam, assim como estão sob avaliação negativa as hipóteses convencionais sobre a movimentação de capitais. Há espanto e decepção nos círculos bem informados sobre a direção dos fluxos financeiros. Na visão ortodoxa, eles deveriam fluir dos países desenvolvidos para os mercados emergentes. Mas a multiplicação de fundos soberanos comprova que a realidade desqualifica essa hipótese.
Diante das assimetrias estruturais da economia global, a almejada correção de desequilíbrios mediante o “realinhamento” entre as moedas é problemático. A dita correção passa necessariamente por uma “redistribuição” de déficits e superávits entre as regiões envolvidas. Isto exigiria não só a forte reativação das fontes de crescimento domésticas na Europa e no Japão, como também a moderação das estratégias mercantilistas nos emergentes asiáticos. Mas, como Keynes havia previsto em seus escritos preparatórios da reunião de Bretton Woods, tal coordenação de políticas supõe um verdadeiro sistema monetário internacional, ou um sistema monetário verdadeiramente internacional. É tudo o que Donald Trump não quer.
*J. Carlos de Assis é jornalista, economista, doutor em Engenharia de Produção, professor aposentado de Economia Política da UEPB, e atualmente economista chefe do Grupo Videirainvest-Agroviva e editor chefe do jornal online “Tribuna da Imprensa”, a ser relançado brevemente.
Foto de capa: Reprodução





Uma resposta
Muito bom o texto, como sempre.
👏👏👏