A nova realidade de segurança da Europa

translate

arzh-CNenfrdeitjaptruesyi
7f2915c0-0427-11f0-b4f8-61a094898779.jpg

Por WAGNER SOUSA*

A “arquitetura política” da criação da Comunidade Econômica Europeia surge como solução para o imperativo de pacificação de um continente assolado por mais de um milênio de guerras e que pouco mais de uma década antes tinha visto o fim do mais devastador dos conflitos, a Segunda Guerra Mundial. E nesta concepção, o historiador Alan Milward, em The European Rescue of the Nation State explica de que não se tratou da criação de uma organização que gradualmente suprimisse o Estado, mas sim o acordo que permitiu a volta do funcionamento do sistema de Estados Nacionais na Europa Ocidental, ou seja, um novo arranjo político que suprimiu algumas funções destes países para que esta invenção europeia, o Estado Nacional, pudesse voltar a operar na região do mundo que originalmente o criou.

 Contudo, um aspecto a ser destacado é essencial: a Europa Ocidental do pós-guerra estabeleceu pactos para a pacificação entre seus Estados Nacionais lastreados na “relação transatlântica” com os Estados Unidos e constituição da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 1949. Na prática, isto significou transformar a Europa Ocidental num protetorado norte-americano, que se alargou para a Europa Oriental após o fim da Guerra Fria.

A globalização, que fez aumentar a polarização social no chamado “Norte Global”, foi oportunidade para o crescimento econômico de muitos países asiáticos com suas estratégias voltadas às exportações. Têm-se então a mudança de seu peso relativo no mundo, processo que segue a avançar. União Europeia em especial, mas também os Estados Unidos se enxergam declinantes na hierarquia global de poder, em relação especialmente à China, com destaque para a percepção estadunidense de enfrentar uma inédita contestação à sua hegemonia por parte de Pequim, que se propõe a os desafiar nos campos econômico, diplomático, militar e tecnológico. 

Os formuladores de política externa do governo democrata de Joe Biden definiram sua estratégia internacional a partir do reforço das alianças e consequente articulação de suas políticas com vistas à disputa hegemônica com a China. O bloco liderado pelos EUA e seguido por europeus, japoneses, sul-coreanos, australianos e neozelandeses buscou, portanto, se contrapor ao “eixo autoritário” composto por Rússia e China. Desde o fim da Guerra Fria, a tese de que é interesse dos EUA enfraquecer a Rússia foi a vencedora no establishment e posta em prática, desde então, muitas vezes na forma de “guerra híbrida”, por sucessivos governos.

Neste segundo mandato de Donald Trump, ainda em seu início, o governo dos Estados Unidos vem exercendo uma política externa que em muito difere não apenas dos democratas, mas da linha seguida também pelo partido republicano desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A ideia de “América First” rompe com o internacionalismo construído e liderado pelos EUA, dos últimos 80 anos. A “ordem global baseada em regras” vai sendo substituída por um isolacionismo que busca renegociar a ordenação do mundo com as outras duas grandes potências, a Rússia e a China, tendo como premissa o estabelecimento de “zonas de influência” destes países.

Para os europeus, a guinada representada pela invasão russa da Ucrânia, representou uma ruptura com décadas de “complacência” regional com o investimento em segurança. A guerra iniciada em 24 de fevereiro de 2022 gerou um impulso armamentista na Europa, com expressivo aumento nos dispêndios com os orçamentos militares. A Polônia vem liderando, em porcentagem do PIB, o gasto bélico no continente e a Alemanha então decidiu por um gasto extraordinário de mais de 100 bilhões de euros para rearmamento. No caso alemão, significou o fim de mais de duas décadas de exercício, conforme definição de Hans Kundnami em The Paradoxx of German Power, de uma semi-hegemonia geoeconômica na União Europeia, com foco nas estratégias exportadoras regional e global. A disposição de governo Trump em negociar com a Rússia o fim da guerra, mostrando-se mais inclinado a apoiar as posições do presidente russo Vladimir Putin, alijando os europeus das negociações, e as declarações do presidente norte-americano demonstrando pouco compromisso com a OTAN, além do bullying com a Dinamarca na questão da soberania sobre a Groelândia tornaram evidente para os dirigentes da região que a posição de protetorado dos EUA não é mais garantida.  

A Europa se vê premida pela necessidade de se rearmar. A Alemanha, que em breve deverá ser liderada pelo conservador Friedrich Merz, decidiu tirar os gastos de defesa dos limites orçamentários e aprovou também um pacote de 500 bilhões de euros para investimentos na debilitada infraestrutura do país. A União Europeia, através do plano Rearm Europe prevê mobilizar 800 bilhões de euros para gastos com defesa no bloco. Na prática, essa “defesa conjunta” independente dos EUA por parte da Europa, embora desejada, não é algo fácil de conseguir, pelos diferentes interesses de cada país. Os Estados Unidos sempre lideraram a OTAN como um poder externo que submeteu os países da região. Não há neste momento na Europa país com essa capacidade para liderar. França e Alemanha já vem disputando a primazia nesta questão. Há também o problema de que os europeus ainda vão depender dos EUA, estima-se, pelo menos por mais uma década, até que tenham construído suas próprias capacidades, o que implica, além do investimento nas forças armadas, a constituição de um complexo industrial de defesa que atenda amplamente as suas necessidades, pois atualmente também são muito dependentes dos EUA neste tipo de suprimento.

A aposta do provável novo chanceler alemão, contudo, é que a necessidade de se defender da Rússia (real ou em boa medida imaginada, para justificar esta direção) unirá a Europa. E que a Alemanha, como o país mais rico e de indústria mais importante do continente, ainda que sem armas nucleares (o que pode mudar) em processo de constituição de uma “economia de guerra” pode liderar o continente nesta transformação de união econômica para também união estratégica.


*Wagner Souza é Mestre em Sociologia pela UFPR, Doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ. Pós-Doutorando em Economia Política Internacional pela UFRJ. Idealizador e Editor do site América Latina www.americalatina.net.br. Colaborador do boletim Observatório do Século XXI.

Foto da capa : Getty Images

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia..

Gostou do texto? Tem críticas, correções ou complementações a fazer? Quer elogiar?

Deixe aqui o seu comentário.

Os comentários não representam a opinião da RED. A responsabilidade é do comentador.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress