A Lógica do Porrete: A Militarização da Gestão Pública na Câmara de Porto Alegre

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A militarização da administração publica em Porto Alegre - Imagem gerada por IA ChatGPT

Da REDAÇÃO

Artigo 5/7 da série Porto Alegre sob cerco

Sob Comandante Nádia, lógica militar substitui o debate democrático e transforma o Legislativo em espaço de disciplina e controle

A presidência da Câmara Municipal de Porto Alegre em 2025 consolidou um fenômeno que há anos preocupa estudiosos da democracia brasileira: a transposição de lógicas próprias da caserna para o interior de uma instituição civil. A vereadora Comandante Nádia (PL), ex-oficial da Brigada Militar, adotou um estilo de gestão marcado por disciplina vertical, presença ostensiva de forças de segurança e interpretação do espaço público como território a ser controlado — e não compartilhado. Essa lógica se tornou evidente em episódios de repressão, decisões administrativas e discursos públicos que tratam o dissenso não como parte intrínseca da política, mas como problema de ordem.

É essencial frisar: não se trata de uma crítica às práticas e métodos militares em si. A disciplina rígida, a hierarquia clara, a prontidão e o estrito cumprimento de ordens são elementos fundamentais no universo militar. Na caserna, essas lógicas são adequadas e necessárias.
O que está em debate aqui é outra coisa: a tentativa de aplicar ao Parlamento uma lógica que é própria de um mundo institucional distinto, com funções, princípios e finalidades completamente diferentes. A política é o campo da negociação, da pluralidade e da construção de consensos possíveis — e isso é inconciliável com práticas baseadas no comando e na obediência.

A militarização da Câmara, portanto, não é apenas um traço simbólico — é um método. Ela se manifesta quando galerias são fechadas, quando a polícia é chamada para resolver disputas políticas, quando parlamentares são tratados como indisciplinados, quando movimentos sociais são vistos como ameaça, quando ações administrativas buscam enquadrar trabalhadores informais e quando a gestão abandona o diálogo em favor da coerção. O episódio do dia 15 de outubro, em que a Guarda Municipal utilizou gás lacrimogêneo e balas de borracha dentro do Legislativo, é o exemplo mais extremo dessa lógica, mas não o único. Ele é o ápice de uma série de práticas que, em conjunto, revelam a conversão do Parlamento em espaço disciplinar.

Sob a presidência atual, a Câmara tem operado por meio de mecanismos que deslocam a política da esfera da persuasão para a da imposição. Isso se expressa na proibição de uso da sala de imprensa por oposicionistas, nas tentativas de cassação de vereadores por realizarem uma coletiva no Plenário e na adoção de medidas que reforçam o controle sobre a circulação de pessoas. A presença constante de agentes armados nos corredores do Legislativo, antes excepcional, tornou-se rotineira e, em alguns momentos, intimidadora. É como se a Câmara tivesse passado a funcionar sob um regime de prontidão permanente, no qual a política aparece subordinada a um imaginário policial.

Especialistas em ciência política e segurança pública apontam que a militarização das instituições civis não ocorre de uma só vez. Ela se constrói por meio de pequenos deslocamentos de sentido: um aumento do aparato de vigilância aqui, uma restrição “administrativa” ali, um discurso que associa protesto a risco, um entendimento de que “ordem” é mais importante que “participação”, um gesto de autoridade que dispensa o diálogo. Aos poucos, a gramática democrática perde espaço para uma gramática disciplinar. O Legislativo deixa de ser arena de ideias e se aproxima da lógica operativa de um quartel — com hierarquias rígidas, obediência esperada e pouca tolerância à divergência.

Nesse processo, a figura da presidente da Câmara é central. Sua trajetória militar confere autoridade simbólica aos discursos que priorizam “segurança”, “disciplina” e “controle”, termos que, no ambiente civil, possuem significado distinto. A crítica não é à sua biografia, mas à sua transposição acrítica para a vida institucional da cidade. No universo militar, comando e obediência são pilares. No universo político, são deformações autoritárias. Quando a lógica militar se impõe, a divergência é vista como insubordinação — e o adversário político, como inimigo a ser neutralizado.

Essa visão impacta diretamente a formulação de políticas urbanas. Propostas que afetam catadores, trabalhadores de rua e pessoas em situação de rua partem de diagnósticos que tratam vulnerabilidade como ameaça ao “ambiente urbano”. Na prática, porém, essas medidas produzem exclusão, criminalização da pobreza e aprofundamento das desigualdades — características típicas de cidades que adotam a “segurança” como princípio organizador de todas as esferas da vida pública. A militarização, portanto, não é só um estilo de comando; é uma forma de construir cidade.

A maneira como a Câmara reage ao dissenso diz muito sobre seu caráter político. Repressão a manifestações, restrição de fala a parlamentares, controle de circulação de cidadãos e processos punitivos contra oposicionistas formam um conjunto coerente, que aponta para uma erosão da pluralidade interna. O Legislativo deixa de ser espaço de acolhimento da diferença e passa a operar pela lógica da contenção, aproximando-se do modelo de instituição que não se abre ao debate, mas o administra como problema.

As consequências para a democracia local são profundas. Parlamento militarizado significa participação reduzida, oposição acuada, políticas públicas formuladas a partir da lógica da força e um ambiente em que cidadãos se afastam da vida institucional por medo ou descrença. Significa também que decisões importantes para a cidade — do saneamento à assistência social — passam a ser tomadas sob uma atmosfera de autoridade, e não de deliberação.

Porto Alegre, que já foi referência mundial em participação popular, agora vê seu Legislativo adotar práticas que resgatam modelos de controle típicos de momentos autoritários da história brasileira. A militarização, quando normalizada, abre caminho para abusos maiores, pois cria uma cultura institucional em que violência, ordem e disciplina se tornam valores superiores ao diálogo democrático.

Nos próximos capítulos, a RED mostrará como essa lógica encontrou resistência na sociedade civil. A série segue com a análise das mobilizações, notas públicas, protestos e ações jurídicas que se ergueram contra o avanço autoritário no Legislativo. Em uma cidade que já construiu um modelo de democracia vibrante, a reação da sociedade é essencial para impedir que Porto Alegre se transforme em território de exclusão e silenciamento.

A série continua.

Leia também os artigos anteriores da série:

Escalada autoritária na Câmara de Porto Alegre: RED denuncia ataques à democracia local

Repressão dentro da Câmara: violência policial marca ruptura democrática em Porto Alegre

Comissão de Ética sob pressão: como a Câmara tenta calar a oposição em Porto Alegre

A cidade que expulsa seus trabalhadores: catadores viram alvo da higienização urbana em Porto Alegre

A cidade que pune quem ajuda: o polêmico projeto que criminaliza a solidariedade em Porto Alegre


Ilustração da capa: A militarização da administração publica em Porto Alegre – Imagem gerada por IA ChatGPT

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