Por JORGE BARCELLOS*
Procurar nas gavetas da memória a imagem mais antiga é como procurar nosso próprio mito fundador.
O homem pertence a um e a outro desses dois mundos, entre os quais, queira ou não, sua vida está dilacerada”. Georges Bataille
Numa terça-feira passada, reuni-me com amigos de longa data para um jantar informal. O convite partiu de meu amigo que é a cara do cantor Martinho da Vila. Estávamos eu, minha esposa e a dele, e meu amigo professor universitário sarcástico. São meus grandes amigos de faculdade há mais de quarenta anos. A esposa de meu amigo, que é a cara do Martinho da Vila, eu chamo de a namorada que esperou quarenta anos, porque foi mais ou menos o tempo que levaram para ficarem juntos, entre idas e vindas e outros relacionamentos. O amigo sarcástico é professor de história antiga, é casado, mas estava só, pois a esposa estava na residência do interior.
Em um momento da conversa, mencionei que um de meus livros no prelo – são seis no total – é justamente uma autobiografia. E meu amigo, professor universitário sarcástico, me perguntou: “Então, qual é a sua imagem mais antiga?” É disto que falarei. Foi o mesmo jantar em que repassamos fotografias, rimos bastante, lembramos nossos melhores e piores momentos. Susan Sontag, em Sobre fotografia (Companhia das Letras, 2004), fala que continuamos na caverna de Platão. A autora escreve sem conhecer a febre dos celulares, e não se sabe qual interpretação ela daria do fenômeno, mas não creio que seria muito diferente da que ela já tem das imagens em geral. Ela fala que ser educado por fotos não é o mesmo que ser educado por imagens mais antigas: “O resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça – como uma ontologia de imagens” (p. 13).
A imagem mais antiga
A imagem mais antiga que tenho na mente é da infância. Procurar nas gavetas da memória a imagem mais antiga é como procurar nosso próprio mito fundador. Se é a primeira imagem, ela é a primeira que tive consciência, mas isso, é claro, é impossível guardar. Seria a imagem de minha mãe me amamentando? Impossível, pois ela me dizia que não tinha leite, que eu vivia à base de Leite Ninho. Pronto, já virei efeito da indústria que critico. Seria a imagem equivalente ao mito fundador de que fala Marilena Chaui? Talvez. Ela publicou o argumento central de sua obra famosa, Mito fundador e sociedade autoritária (Fundação Perseu Abramo, 2007), anos antes nas páginas do Caderno Mais! da Folha de São Paulo de 26 de março de 2000. Eu sei porque tenho arquivado, costume que adquiri ao ler a Folha nos seus anos dourados, quando havia uma posição social crítica. O texto é de natureza filosófica sobre os mitos e imagens que fundam uma nação; eu pensava em termos dos mitos e imagens que formam quem eu sou, minhas mais antigas referências. Falei aqui em Sler de uma dessas imagens, a dos cavaleiros Jedi (disponível aqui).
Chaui diz que vivemos na presença difusa de uma narrativa de origem. Eu penso no gênero autobiográfico como a narrativa de origem de um indivíduo. Ela também é difusa como a dos países em que vivemos, pois se esta remonta ao período da conquista, a minha remonta à própria infância. Penso na memória da infância como aquele grande arquivo giratório antigo que havia na Câmara Municipal, onde trabalhei 37 anos. Quando eu entrei no Legislativo, em 1984, vi no Setor de Protocolo a forma mais antiga de organizar informações do parlamento: um antigo arquivo giratório no qual milhares de fichas representavam os processos criados na instituição desde o ano de 1947. Para se ter uma ideia, havia outro arquivo menor, este quadrado, de gavetas, para fichas de referência às fichas que havia no arquivo giratório gigante. Eu me impressionava com o meu colega responsável pelo arquivo, pois ele tinha uma boa parte daquela memória na cabeça, pelo menos dos processos mais recentes e importantes. Esse é o meu colega com casa no Rio de Janeiro.
A nossa mente é como esse imenso arquivo giratório e as lembranças são como essas milhares de fichas que é preciso organizar, eu pensava. Diz Chaui que o mito fundador de um país é “essa narrativa, [que] embora elaborada no período da conquista, não cessa de se repetir porque opera como nosso mito fundador. Mito no sentido antropológico: solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos na realidade. Mito na acepção psicanalítica: impulso à repetição por impossibilidade de simbolização e, sobretudo, como bloqueio à passagem à realidade. Mito fundador porque, à maneira de toda “fundatio”, impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa, que não permite o trabalho da diferença temporal e que se conserva como perenemente presente. Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo. Pelas circunstâncias históricas de sua construção inicial, nosso mito fundador é elaborado segundo a matriz teológico-política, e nele quatro constituintes principais se combinam e se entrecruzam, determinando não só a imagem que possuímos do país, mas também nossa relação com a história e a política. O primeiro constituinte, para usarmos ainda uma vez a expressão de Sérgio Buarque de Holanda, é a “visão do paraíso”; o segundo é oferecido pela história teológica, elaborada pela ortodoxia cristã, isto é, a perspectiva providencialista da história; o terceiro provém da história teológica profética cristã, ou seja, do milenarismo de Joaquim de Fiore; e o quarto é proveniente da elaboração jurídico-teocrática da figura do governante como “rei pela graça de Deus”. É a síntese mais perfeita do que encontrei da noção de mito fundador, mas como podemos pensá-la em termos individuais?
A imagem cria mundos
Eu tenho uma imagem de meu passado que acredito que também funciona como base de meus conflitos e contradições que, à sua maneira, é meu mito fundador. Acredito que o que faço a vida inteira também é para resolver as tensões que ele produz em meu imaginário, a tensão que me provocou ainda na infância e que meu caminho no mundo procurou dar uma resposta. Se, como diz Chaui, o mito na concepção psicanalítica é um impulso à repetição por impossibilidade de simbolização, eu vejo na imagem que tenho algo a superar para viver minha realidade. Faz parte de minha “fundação”, nos termos de Chaui, o que também me impõe uma solução na vida a partir de uma origem imaginária, que de alguma forma se conservou, que se expressou na força que tive para superar os obstáculos ao longo de minha trajetória. Ela fala do mito teológico-político como falei de minha fé em artigos anteriores em Sler (disponível aqui). Se meu mito fundador tem alguma relação com a matriz teológico-política sugerida por Chaui, é porque nele encontro ao menos dois de seus constituintes principais que se combinam e se entrecruzam. O primeiro deles é a visão paraíso que já explicitei em meu artigo em Sler (disponível aqui), a do paraíso que a brincadeira infantil representa. O segundo, o que Chaui diz ser oferecido pela perspectiva teológica, tem relação com certas crenças religiosas que ainda me acompanham. Duas de quatro características: está bom para começar.
Claro, a imagem que tenho em mente para contar ao leitor não a posso ter vivenciado realmente porque, racionalmente, ela só é possível como produto da imaginação da criança que fui e que ouve, com seus cinco ou seis anos, o que sua mãe entende como uma declaração de amor que muitas fazem, que acabou talvez sendo assimilada de modo traumático. É a imagem que criei em algum momento quando ela disse: “Eu não quis abortar você”. Em sua mente, isso era a revelação de seu amor filial, a recusa da ordem de meu pai que, segundo ela, já teria a feito abortar o irmão que não vim a conhecer e que, portanto, era um gesto de profundo amor ao qual eu deveria ser eternamente grato. Em algum momento em minha psique, não sei se em sonho de uma criança ainda envolta com as primeiras noções cristãs como a de alma, se formou a exata imagem indescritível de mim como o feto da criança que deveria ter sido e não fui, em direção à criança que estava no útero de minha mãe e que me tornei: a cena de mim mesmo sendo abortado. Pedi à Inteligência Artificial da Meta uma imagem: ela fez, com a ressalva “não é possível atender a sua solicitação”.
Só posso descrever ao leitor como uma imagem onírica traumática, como a dos pesadelos após vermos um filme de terror, mas depois que sonhei com a morte de minha própria tia, como já narrei em Sler, (disponível aqui) “eu não creio em bruxas, mas que as há, há”. Se Sontag fala que as fotografias são apropriações das coisas fotografadas, “pôr a si mesmo em determinada relação com o mundo, semelhante ao conhecimento – e, portanto, poder” (p. 14), o que significa a imagem mental que temos de experiências que significam a dissolução de nosso próprio eu exatamente no momento de minha própria fundação? Essa imagem primordial é como uma pintura feita à mão, uma representação de um mundo que não existiu até ele se transformar nessa miniatura de uma suposta realidade que não posso sequer inquirir que existiu. Ela é a visão de uma criança de algo que ela própria não pode entender, reduzida a uma imagem recortada, adaptada, adulterada e envelhecida, exatamente como Sontag descreve as fotos que analisa. Que é esta imagem de morrer no mesmo instante de nascer?
Olhando fotos antigas
No jantar entre amigos, olhamos juntos as fotos de nosso passado na universidade. Tanto o amigo professor universitário sarcástico quanto o com a cara do Martinho de Vila têm alguma ideia do lugar e do que vivemos lá. Foi ali que o segundo conheceu sua namorada, que esperou quarenta anos para casar. Aquela imagem do grupo de jovens no meio de um gramado da Universidade de Brasília ou a outra imagem com a cabana de acampamento montada no pátio da universidade eram imagens de um congresso de estudantes, um dos muitos que fizemos em que dividíamos o dia com discussões sérias sobre política com uma noite regada a cerveja, festa e experiências de encontros. Eu olho a imagem e estou ali realmente. Eu não tenho exata recordação de meus dias daqueles tempos. Por que uma cena que é impossível de haver sido experimentada se preservou na minha memória de longo prazo, enquanto outra, vivenciada realmente, não? Como posso ter guardado em minha mente algo impossível de ter acontecido enquanto algo que realmente aconteceu, tenho vagas recordações?
Talvez tenha sido porque tenha vivido décadas de sono ruim, sono curto, como ainda vivencio. Seis horas de sono, às vezes interrompidas por despertares noturnos. “Nossa, não dormi nada nessa noite”, penso. Para ter boas recordações, é preciso dormir, deixar o cérebro fazer o seu trabalho de limpeza não apenas para fazer funcionar nosso metabolismo, mas também nossa memória. Deveríamos avaliar nossa qualidade de vida também pelos efeitos que o trabalho e o celular produzem em nosso ciclo circadiano, o da luz que afeta nosso sono. Jonathan Crary, em 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono (Cosac Naif, 2014), diz que o grande responsável pela insônia moderna é o próprio mundo capitalista em que vivemos. Ele diz que somos treinados para ser como aquele pardal de coroa branca estudado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos pela sua capacidade incomum de permanecer acordado até seis dias durante sua migração, o que permite voar e navegar durante a noite e procurar alimento durante o dia sem descansar. Nosso sistema capitalista quer exatamente isso: descobrir como as pessoas poderiam ficar até sem dormir para funcionar produtiva e eficientemente o tempo inteiro.
Se dormimos de forma irregular durante a vida, como teremos informações organizadas em nossa memória na aposentadoria? Anthony (personagem interpretado por Anthony Hopkins), no filme Meu Pai (Florian Zeller, 2020), fala dos sinais de esquecimento que, ao longo do tempo, levam ao Alzheimer, o que o meu pai também teve lá pelos 80 e tantos anos, de quem falarei em outro artigo. Estou no jantar e esqueço o nome de quem me substituiu em minhas funções na Câmara, eles também já esquecem alguma coisa aqui ou ali, mas como Anthony, compartilhamos a lembrança de um tempo e um lugar que construiu nossa identidade, ainda que compartilhemos como ele também a dificuldade de remontar um quebra-cabeça de peças, cada um de nós tem algumas apenas e tentamos juntos encaixar. Cada um faz a seu modo o esforço de lutar contra sua própria perda de memória: um mantendo-se ativo como professor universitário, como faz meu amigo sarcástico; outro assumindo um relacionamento antigo, como faz meu amigo parecido com Martinho da Vila, ou como eu, escrevendo em minha aposentadoria várias obras, inclusive minhas memórias antes que se dissipem. Essa é a forma que encontro para organizar linhas de tempo que aos poucos vão ficando desconexas.
Cuidar do sono
Na linha de Cray, penso que eu devia ter roubado mais meu tempo do sono das exigências do capital, “o sono é uma interrupção sem concessões no roubo de nosso tempo”, diz. Ele defende a ideia de uma necessidade humana e de um intervalo de tempo que não pode ser colonizado nem submetido a um mecanismo monolítico de lucratividade, e “desse modo permanece uma anomalia incongruente e um local de crise no presente global. A verdade chocante, inconcebível, é que nenhum valor pode ser extraído do sono” — diz. Estou exatamente no patamar das seis horas de sono, o que representa uma redução notável em relação à geração anterior de oito horas e à do começo do século XX, de dez horas, uma transformação suficiente para afetar a memória. Deixamos o sono natural da Antiguidade e do Renascimento para o sono escandaloso da Idade Moderna. O sono é moderno; a insônia é pós-moderna. A luta de todo o dia por mais sono não é apenas contra o esgotamento crônico, é contra a perda de memória futura.
Nunca terei uma resposta para os significados de minha imagem trágica infantil. O espiritismo diz que o aborto não impede a possibilidade do espírito, mas sim sua reencarnação. Mas a perspectiva do espiritismo para mim seria pior do que a da ciência: se corro o risco do Alzheimer, o que apenas me responsabiliza por minha perda de sentido, na visão espírita posso ter me tornado o espírito obsessor que levou a minha própria mãe à esquizofrenia, à loucura, às vozes que ela dizia ouvir. Ainda que o espírito de um feto abortado, no caso, não necessariamente encarne no filho seguinte – eu, no caso –, a doutrina espírita abre essa possibilidade de reencarnar na próxima geração, o que justifica a imagem fantasmática de eu mesmo , abortado, voltar. Mas confesso que nem a imagem nem seu significado me alegram muito como a primeira imagem que lembro de mim mesmo.
Entre um cálice de vinho tinto e outro, estávamos com uma efervescência de memória na reunião. Primeiro, porque há tempos não nos víamos. Segundo, pois temos uma experiência comum, a universitária nos anos 80. As imagens chegaram a nós por uma amiga comum que as havia postado em nosso grupo de WhatsApp, chamado, é claro, “História anos 80”, e que conseguiu recuperar depois que sua casa foi inundada pela enchente em 2023. É nessa hora que nos damos conta da finitude: não apenas por causa das imagens raras que se vão, mas porque nós mesmos estamos em uma fila em direção ao fim. Não falamos da morte, é claro, mas falamos que já vivemos 2/3 das nossas vidas. Lembrei-me das colocações de um vereador para as crianças, que sempre achei muito estranhas: “lembre-se de que vocês já viveram 1/6 de suas vidas”, ele dizia. Eu achava isso inadequado, primeiro porque tratava-se de um programa de cidadania e não de educação para os sentimentos; segundo porque, se para mim mesmo a morte era um assunto aterrador, eu via como desnecessário tocar naquele momento com as crianças, tratava-se de falar política. O vereador achava que assim chamava a atenção das crianças, encarnava do seu jeito o personagem John Keating do filme Sociedade dos Poetas Mortos (Peter Weir, 1990): era sua tentativa de dizer “aproveitem a vida”, como a frase do filme, mas para mim seu sentido era capitalista demais, pois elogiava as maravilhas do rendimento. Era o contrário do que devíamos fazer, como diz Han, contemplar a vida como um jardim, poder aproveitar a vida sem as obrigações do trabalho, de que a vida tem de render, de que somos obrigados a aproveitar desde que sejamos produtivos.
Contemplar a morte do Outro
Para a criança que fui, a morte simplesmente foi dita e não posso saber se essa notícia teve tempo de ser processada. Talvez por isso, por essa curiosidade, sempre fui a velórios. Meu amigo professor universitário sarcástico perguntou a quais velórios eu fui. Levei algum tempo para responder, não porque a experiência não estivesse em minha memória, mas porque os nomes não estavam. Logo depois, lembro-me dos velórios de Luis Pilla Vares, da mãe de meu amigo viajante, é claro, da minha própria mãe, mas na hora, não lembrava o dos professores universitários que nos ensinaram na graduação e faleceram, razão de seu questionamento, muitos dos quais apenas pude mandar condolências às famílias pelas redes sociais, como uma professora de história antiga. Talvez fosse o objetivo de sua pergunta saber se ao menos eu um dia iria ao velório de sua morte. Essa seria, sem dúvida, a sua última piada.
A pergunta da imagem primordial é sobre a ideia de uma fundação. Se há um documento legal, a certidão de nascimento, que diz quem você é, eu acredito que em algum lugar deve haver um documento simbólico que cumpra a mesma função. Ele pode ser a cena primordial de que trata minha lembrança trágica, inventada ou não, que para mim quer dizer que eu sou um sobrevivente. A palavra sobrevivente vem do latim “supravivere”, que significa “viver além da expectativa”, já que supra significa “mais além”. Como sobrevivente, sobrevivi a eventos que poderiam ter levado à minha morte, antecipação da ordem natural das coisas, o que aconteceria se tivesse sido abortado, se minha mãe não tivesse resistido à ideia de meu pai. Por isso, na minha Carteira de Identidade consta: “pai não declarado”. Na mesma época em que minha mãe me deu a triste notícia de que eu poderia ter tido um irmão, não fosse o aborto que meu pai a obrigou a fazer, ao mesmo tempo havia a confusão de sentimentos que diziam que podia ser eu também e que sobrevivi porque minha mãe tomou a decisão de lutar por mim. Isto também é amor.
A sensação da proximidade da morte foi maior naqueles anos do que depois. Eu me lembro ainda da sensação de contemplar, do alto do quitinete localizado no sexto andar do prédio inacabado em que eu morava com minha mãe na Ramiro Barcellos, o piso do corredor do andar térreo. Eu me esticava na ponta dos pés para vê-lo, tinha certeza de que, se caísse, morreria de choque no terreno ao chão e olhava o pátio do terraço do prédio ao lado e pensava que, se caísse ali, talvez sobrevivesse. Pensar em como sobreviver tornou-se minha obsessão. Quando minha mãe saía, eu ficava em casa e podia olhar pela janela a enorme distância e tinha medo. Era o medo de altura que pode dar em qualquer um e é denominado de acrofobia, medo de lugares altos. Sentia a respiração batendo alto, ainda que fosse improvável que eu caísse, em virtude de um varal de roupas que existia ali porque não tínhamos máquina de lavar e eu era criança, mal conseguia esticar-me para alcançar a janela, não era maluco de me dependurar pois já tinha pesadelos onde me via pendurado naquele varal como Scott, interpretado por James Stewart em Um corpo que cai (1958). Talvez por isso, tenha sido incapaz, quando atravessei o Canyon Itaimbezinho com o amigo viajante, de pular em uma das lagoas pelas quais passamos. Entrei em pânico, ansiedade extrema, imaginando o acidente fatal que poderia ter acontecido e me colocado em uma cadeira de rodas por toda a vida. Não aconteceu. Agradeço também ao sistema nervoso, produto da evolução, que me protegeu numa situação de perigo.
Podemos ter uma imagem do ser?
Se a imagem primordial trata de uma fundação, ela é a da resposta à pergunta: o que somos nós? Diz Adauto Novaes que nossa história, como propõe Paul Valery, é construída em torno de duas grandes invenções: o passado e o futuro. “Sem passado e sem futuro, essa história oficial esvazia não apenas nossos pensamentos, mas principalmente a ideia de História. Narrar a história de um povo a partir apenas do tempo presente, tempo fragmentado, direcionado, instante fugidio tido como único tempo real, é negar a articulação de épocas e situações diferentes, o simultâneo, o tempo da história e o pensamento do tempo. Ora, é essa articulação que permite diferenciar condutas múltiplas no tempo e reconhecer que práticas políticas e culturais, consideradas estranhas e indesejáveis em determinados momentos, sejam vistas de maneira diferente em outro. Esquecer o passado é negar toda efetiva experiência da vida; negar o futuro é abolir a possibilidade do novo a cada instante. A nossa história vive, pois, o círculo do mesmo.” Minha imagem primordial me dizia que precisava sobreviver, viver além das expectativas dadas a mim por minha classe social. Eu era de antemão julgado pelos fatos: não apenas por ser pobre na escola, mas também pelo fato de que talvez não tivesse nem o direito de ter nascido. Mas eu estava disposto a fazer minha própria história, superar a imagem primordial de minha fundação, sonhar, e talvez minha mente tenha entendido isso no engendrar imagens, fazendo-me produzir como existência digna de valor: fazia sobreviver meu mundo interior fazendo meus próprios brinquedos, transformei-me num profissional que atendeu milhares de estudantes e hoje faço meus próprios livros.
O tema da imagem primordial é clássico da Psicologia Analítica ou junguiana, que se concentra na mente consciente e inconsciente. Paulo Afrânio Sant’Anna, em “Uma contribuição para a discussão sobre as imagens psíquicas no contexto da Psicologia Analítica” (disponível aqui), retoma a discussão sobre a natureza das imagens psíquicas na Psicologia, que ressaltam o valor do discurso imagético, um tema ausente dos currículos desses cursos. Ele cita Jung, para quem “A imagem interna é uma grandeza complexa que se compõe dos mais diversos materiais e da mais diversa procedência. Não é um conglomerado, mas um produto homogêneo, com sentido próprio e autônomo. A imagem é uma expressão concentrada da situação psíquica como um todo e não simplesmente ou sobretudo dos conteúdos inconscientes. É certamente expressão de conteúdos inconscientes, não de todos os conteúdos em geral, mas apenas dos momentaneamente constelados. Essa constelação é o resultado da atividade espontânea do inconsciente, por um lado, que sempre estimula a atividade dos materiais subliminares relevantes e inibe os irrelevantes. A imagem é, portanto, expressão da situação momentânea, tanto inconsciente quanto consciente. Não se pode, pois, interpretar seu sentido só a partir da consciência ou só do inconsciente, mas apenas a partir de sua relação recíproca. (Jung, 1921/1991, p. 418)”. Essa definição é útil não apenas para definir minha imagem primordial como reelaboração simbólica, mas como considerá-la como ponto de partida para qualquer imagem primordial individual. “Em outras palavras, é consciência em estado puro”, afirma Sant’Anna.
Problemas de autoanálise
Essa é uma espécie de autoanálise, é claro, e ela apresenta desafios como a dificuldade de ser objetivo, a influência de mecanismos de defesa, a tendência à minha própria autojustificação e talvez escrever sobre ele seja justamente isso, procurar por um olhar externo que diga “não tem nada a ver!” Ou “esquece isso!”. Penso que minha imagem de abortamento primordial é essa imagem em estado bruto, captada a partir de uma cena infantil que exerceu em minha consciência papel metafórico que deu sentido e origem a inúmeras ações. A imagem ativou em mim a consciência da urgência, de movimentar-me para sobreviver, buscar na ciência ou na fé uma resposta para reagir a um destino. Ela me fez observador de mim e do mundo ao meu redor, e ainda que estivesse desaparecida ao longo de minha experiência profissional, estava lá para me dizer o quanto eu tinha de dar tudo de mim para sobreviver. Estava lá para me fazer passar de ano a qualquer custo no ensino fundamental e médio. Estava no ensino superior, me fazendo aprofundar o estudo das monografias que fazia. Está agora na escrita de meus livros, como demonstrei em meu Como se faz um ensaio (disponível aqui). É preciso registrar o que se pensa, fazendo o máximo de revisões possíveis; é preciso contar somente consigo para começar, assumindo prerrogativas ou responsabilidades que no fundo seriam de outros (revisores, editores, etc.). Mas alerta SantAnna: “Entretanto, se a imagem for depurada pela explicação racional, ela perde sua vitalidade, é dissecada e reduzida a ideias e conceitos estáticos e esquemáticos. A imagem é a linguagem da expressão natural da psique, base de todos os processos psíquicos. Nesse sentido, ela tem coerência e validade em si mesma, sem necessidade de ser traduzida ou transposta para outros sistemas ou linguagens. Ela é a matéria-prima da psique, que pode ser trabalhada, cultivada, ativada, contemplada, mas não reduzida a explicações ou a conceitos.”
A conclusão é que eu posso tecer algumas considerações sobre minha imagem primordial, mas eu não posso reduzi-la somente ao meu corpo. Este é o destino das imagens primordiais, elas tocam nosso espírito. Na filosofia chinesa antiga, o par Corpo-Espírito relaciona o material ao imaterial. Em Cultura Chinesa (Contraponto, 2023), Xu Baofeng e Yan Qiaorong dizem que a concepção chinesa de espírito não diz somente ao intelecto, mas também à alma. Na reconstrução que fazem do argumento do Livro do Mestre Guan, texto filosófico anônimo fundamental do início da dinastia Han (206-202 a.C.), a noção de espírito aparece pela primeira vez como “Essência Vital”, parte do Dao, que produz tudo o que está no mundo, “o que implica que ‘Espírito’ e ‘corpo’ tanto podem se separar, como se unir” (p.52). Se, na idade em que estou, com a crítica do racionalismo e filosofia em que fui formado, posso reconhecer o valor dado pelo espiritismo, catolicismo e a cultura oriental na definição de corpo e espírito, talvez a minha imagem primordial signifique, nos termos de Georges Bataille, a esperança de que na vida também podemos transcender a própria morte.

Solicitei à Meta a imagem equivalente à minha suposta imagem fundadora. Seguiu-se ao lado, com a informação: “Não é possível atender sua solicitação”.
Publicado originalmente Sler.
*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524
Foto de capa: Estudantes do curso de História, anos 80. Autor desconhecido.




