Por JORGE BARCELLOS*
Compartilho aqui, em primeira mão, a introdução e conclusão de meu último livro “Sem indicação de importância: a história de um sobrevivente (Clube dos Autores, 2025), minha autobiografia intelectual e sentimental.
Quando completei 60 anos, comecei a escrever minhas memórias. Eu já tinha uma certa ideia do conceito que uniria os artigos. Eu partia do livro de Ayrton Centeno chamado “Os vencedores: a volta por cima da geração esmagada pela ditadura de 1964” (Geração Editorial, 2014). Ele fez nele o relato da geração dos anos 60/70, que envolveu militares que desfecharam o golpe de 1964 e os que os desafiaram ao longo de 21 anos de ditadura. Ele trata os jovens da geração de 1964, jovens adolescentes que eram os derrotados de ontem, mas que viraram os vitoriosos de hoje, pois se tornaram intelectuais, artistas, presidentes e músicos depois do exilio, da prisão e da tortura.
A geração descrita por Centeno entrou em rota de colisão com o sistema; a geração de que eu faço parte veio logo após, nos anos 80, em plena flexibilização do regime. Tínhamos trincheiras sim, na Universidade, mas eram passeatas sem armas. A Ditadura estava terminando, éramos apenas o ponto final da geração que Centeno descreve. Nossa resistência passou a ser não contra a ditadura que finalizava, mas contra o regime liberal e neoliberal que viria a seguir. A obra de Centeno inspirou o conceito que orienta minha autobiografia: eu entendo que depois da geração dos “Vencedores”, se seguiu a dos “Sobreviventes”. Esta geração é a minha, a dos jovens formados na universidade pública que lutaram por um lugar ao sol na democracia que viram ascender. Eles viram também sua desagregação no regime de Jair Bolsonaro, na emergência de governos de direita e extrema direita, inclusive em Porto Alegre e outras capitais.
Se “quem perdeu, ganhou e quem ganhou, perdeu” é o mote da geração anterior, o resumo de uma geração que passou pelos anos de chumbo, suor e lágrimas, o mote destes “Sobreviventes” é “quem sobreviveu, sobreviveu”. Eles não chegaram ao lugar dos vencedores tardios, de que fala Centeno: são, no máximo, os guardiões da herança da geração anterior. Eles fizeram o que puderam para manter a luta pela democracia, pela defesa dos direitos humanos, pelo ideal de construir um mundo de solidariedade social. Mas enfrentaram um adversário também ardiloso e terrível: o Neoliberalismo em todas as suas formas e em todos os lugares. Foi aí que um acontecimento, no entanto, precipitou minha publicação.
Meu caso com a Wikipédia, ainda
Enquanto eu escrevia minhas memórias, me surpreendi ao ter recusado um verbete meu na Wikipédia. Mostrei que sobrevivi a tudo, menos a ela (disponível aqui https://abre.ai/nk9G ). Depois dos dois “estalos” que narro no artigo, me dei conta depois que existem inúmeras formas de sobrevivência, mas também de exclusão, inclusive naqueles lugares que são considerados sagrados. A Wikipédia é um deles. Se eu sou um desses sobreviventes de minha geração, eu posso dar o meu testemunho. “Sem indicação de importância”, título de minha autobiografia lançada pelo Clube dos Autores, leva o título da resposta dada pela Wikipédia para vetar minha inclusão em seu projeto. Eu deixo ao leitor futuro de minha autobiografia a decisão final: tenho ou não indicadores de “importância”? Minha autobiografia tem semelhanças com a obra de Centeno. Nela falo da minha infância nos anos 70: enquanto a juventude de Centeno ia as ruas e fazia suas barricadas, falo de minha geração universitária engajada nos anos 80 no processo final de redemocratização. Falo de mim, um menino pobre que conseguiu sobreviver porque teve acesso à educação defendida pela geração anterior; falo dos sonhos, pesadelos, alegrias e tristezas de ser adolescente nos anos 80; falo da construção de um intelectual, que se não teve a sorte de ser um dos notáveis escritores da geração anterior, nem por isso se privou de colocar suas ideias contra o neoliberalismo e os poderosos para quem quisesse ler e ouvir.
Sobreviver não é para amadores. Sobreviver implica também em construir seu próprio lugar, principalmente quando a nova maneira de sentir e pensar parte da subjetividade de cada um num regime de produção em escala industrial. Não estávamos preparados para enfrentar o neoliberalismo, apenas o fizemos da pior forma possível: individualmente, isolados em nossos lugares de trabalho, lutando contra tudo e contra todos. Fracassamos porque o mundo precarizou-se; seguiram-se sucessivos governos neoliberais tanto no Estado do Rio Grande do Sul como no Município de Porto Alegre; ficou mais difícil para os mais pobres sobreviver e nós não conseguimos fazer nada melhor do que educar os poucos da geração seguinte que o mundo estava indo para pior.
Ser quem se pode ser
Por isso que o relato que fiz em minha autobiografia para o leitor é pessoal. Ele é a narração de um pesquisador e professor de origem humilde. Relato minhas conquistas uma a uma, da família, passando pela escola e pela universidade. Descrevo o que fiz no lugar que escolhi para lutar por um mundo melhor, o de autor de projetos educacionais em uma instituição pública, a Câmara Municipal de Porto Alegre. Registro minhas angústias familiares, a morte de parentes e amigos e como chego à aposentadoria, organizando artigos que o meu leitor teve o privilégio de ver antecipadamente. Aposentar-se das lutas sociais não é deixar de lutar, é apenas escolher um lugar mais cômodo para isso, afinal, o jovem dos anos 80 já é um idoso. Faço o balanço de minha história como quem ainda tem algo a dizer as novas gerações. Represento a geração que viu coisas que a atual não viu: um mundo mais humano e solidário, sem o advento da internet, e que, ainda que procurando registrar o que vi, enfrento ainda as próprias dificuldades de registar minha visão.
Eu fui o intelectual que pude ser, como vários de meus colegas foram os profissionais que o mundo permitiu. Alguns viraram servidores públicos, professores universitários e nunca abandonaram os ideais de sua geração; outros, mais espertos, acabaram cedendo as forças econômicas em luta, aderindo ao neoliberalismo; há aqueles, que simplesmente, terminaram também expulsos do sistema, incapazes de sobreviver das próprias ideias formadas no curso de história dos anos 80. Ninguém pode ser considerado culpado por abandonar seus ideais dos anos 80, como não podemos culpar aqueles que foram vítimas da tortura. Quando o regime vem para matar, sobreviver é um privilégio.
A autobiografia como uma pergunta
Ao final restou-me apenas uma pergunta: quem sou eu? Para a Wikipédia, um desconhecido para o mundo. Para alguns colegas de trabalho, sou o “professor” da Câmara Municipal de Porto Alegre; para meus colegas de universidade, o “Jorginho”; para os que acompanham meus ensaios pelas diversas plataformas, o autor de artigos e ensaios críticos à direita e as políticas neoliberais e para outros, que acessam minhas obras pela Academia, o autor de diversos livros. Alguns já repararam que algumas obras minhas contém alguns erros, mas reconhecem-me como escritor prolixo e crítico. Outros reclamam de meu excesso de esquerdismo, que deveria ser mais imparcial, exatamente como a Wikipédia deseja ser. Bobagem! É preciso ter um lado e o meu é o dos humildes e mais fracos, os de minha origem social. De forma previsível, mas também desapontadora, minha rejeição pela Wikipédia deve-se ao fato de que eu, ainda que tenha publicado inúmeras obras – foram ao todo 25, até esta que é a 26ª, – nunca tive a oportunidade de ser publicado por uma grande editora, apenas por órgãos públicos ou por autopublicação. Critico o sistema, e por isso, não vendo. Com textos extensos nos portais, conquistei apenas alguns leitores, ainda que, aqueles que leem meus artigos até o fim, apreciem minha argumentação. É o que leio em seus comentários.
Eu preferi, por ser uma autobiografia feita também como uma espécie de resposta, preservar os nomes de todos os que conviveram comigo. Se eu tenho de ter algum estilo como escritor em uma autobiografia, que seja este: não dar nomes. Você conhecerá apenas “a esposa”, “o amigo professor universitário sarcástico”, “as primas”, “o pai ausente”, “o amigo aventureiro” entre outras pessoas reais. Sem nomes próprios, só dos lugares por onde passei. Mas o foco em minha trajetória quer aqui colocar em evidência as características da geração que eu entendo que represento: a dos sobreviventes. O leitor verá aqui que eu sou sobrevivente a uma intenção de aborto, sobrevivente ao bullying do ensino fundamental, sobrevivente nos primeiros trabalhos, sobrevivente da escrita, mas agora, que me descubro que não sobrevivi a Wikipédia, talvez seja minha menor derrota. O foco combinado na trajetória pessoal e coletiva é uma das vantagens da autobiografia. Mesmo que minha vida privada não seja da conta de ninguém, eu compartilho detalhes pois entendo que mostram quem eu sou.
Uma vida insignificante?
Fiz 25 livros, atendi em palestras milhares de alunos com o programa Educação para Cidadania, criei 50 exposições que se tornaram centrais na ação educativa do Memorial da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Tive momentos dos quais posso me orgulhar, que vão do contato com grandes pensadores a ministrar aulas na periferia de Porto Alegre, na Vila Restinga. Sou um representante de minha geração, a que nos grupos de WhatsApp se identifica como “História, anos 80”. Se meus livros são o resultado de quase quarenta anos de trabalho, esta autobiografia, e apenas ela, cobre o espaço de sessenta anos. Até agora, ainda que minhas obras, conforme levantamento da Academia, sejam baixadas por estudantes e profissionais de vários estados e países, não sou um bestseller; ainda que minha trajetória não tenha sido abordada por grandes programas de televisão como o Fantástico, ela já recebeu atenção de programas de televisão e projetos de preservação da memória e por isso, talvez ela possa trazer um pouco de luz sobre a geração da qual faço parte: a geração de estudantes de uma época de transição que se transformaram em profissionais de diferentes espaços. Se tivermos a sorte de formarmo-nos no pensamento crítico, jamais imaginaríamos que iriamos enfrentar outro inimigo tão feroz como os militares da geração anterior: o neoliberalismo.
Havia é claro, diferentes contextos de formação. Uns mais pobres, outros mais ricos. Analisar a trajetória de uma geração pelo exemplo de um de seus integrantes mais pobres integrantes como eu é um desafio enorme, mais ainda quando no período analisado, a obra é o primeiro testemunho de sua geração. Ninguém de minha geração, além de mim, propôs uma autobiografia, simplesmente pelo fato de que, graças ao capitalismo atual, ainda precisam lutar para sobreviver. Por ser servidor público, concursado logo no início de minha juventude, tive a vantagem de me aposentar mais cedo, com 37 anos de trabalho. Por exercer uma função educativa, ser disciplinado e objetivo, tive a vantagem de juntar uma grande produção de artigos e ensaios que resultavam em uma obra extensa, a maior dos integrantes de minha geração. Ninguém de minha turma fez 25 livros, ainda que muitos, tenham feito de seus trabalhos de pós-graduação livros exemplares.
Minhas características
Três características distinguem minha trajetória. A primeira é o pluralismo de ideias, que fez de mim um analista não apenas fundamentado no marxismo, mas também na leitura de teóricos da pós-modernidade. A segunda é pesquisa estilística que faz minha produção combinar sempre dados familiares, trajetória intelectual, profissional e acadêmica. É uma autobiografia intelectual e sentimental. A terceira é a luta pela análise de problemas reais. Com estudos e trabalhos que combinam a melhor da literatura universitária que pude reunir com os problemas da realidade da cidade de Porto Alegre, eu fiz uma combinação dinâmica, inspirada não apenas na literatura de Ciências Sociais, mas também na arte e na literatura, que devo aos meus autores inspiradores.
Minha autobiografia é organizada em quatro capítulos. O primeiro, o menor deles, narra como sobrevivi as minhas origens familiares e as memórias da infância e adolescência. O segundo mostra como sobrevivi ao trabalho como forma de encarnar os ideais de minha geração, ao mesmo tempo que descrevo a única arma a minha disposição para sobreviver: a educação que me ensinou a escrever e pesquisar. Mostro os livros que escrevi e as exposições que fiz ao longo de mais de trinta anos de serviço público e concluo com meu discurso de despedida por ocasião de minha aposentadoria.
Minha autobiografia
O capítulo terceiro trata da aposentadoria propriamente dita. Esta fase da vida não é para qualquer um. Narro meus primeiros dois anos nela, as visitas ao médico, as viagens, as reflexões à beira mar, os espetáculos musicais e os problemas da vida doméstica, pois também é preciso sobreviver a ela. O capítulo quarto enfrenta o principal dilema humano que os aposentados enfrentam e para qual poucos encontraram resposta: é possível sobreviver a morte? A resposta, que para a maioria é sempre um sonoro não, na minha visão envolve a redescoberta do meu lado espiritual, como é natural na velhice, época em que temos a tendência a nos aproximar de Deus. Descrevo o caminho que fiz nesse processo, observando atentamente aqueles que morriam ao meu redor. Se a negativa da Wikipédia é, curiosamente, uma outra forma de morte, ela foi muito importante para me lembrar que, nos tempos atuais, minha geração só tende a transcendê-la se adotar uma atitude: meu legado sobrevivente é a resistência ao mundo neoliberal que está aí. Se eu puder ter inspirado as novas gerações e meus leitores sobre isso, já terá valido a pena.
Portanto, o tema de minha autobiografia não é somente a minha história, é o de uma experiência de vida e sobrevivência no mundo pela educação. Trata-se de uma trajetória de um sobrevivente, quer dizer, de alguém que encontrou desafios, acessou a educação, constituiu uma família, trabalhou e criou projetos originais. Em outras palavras, o integrante desta geração que menos condições foi um dos que mais se esforçou para oferecer uma contribuição social digna de nota. Eu não faria isso sem o apoio familiar, especialmente o de minha esposa, sem o apoio de amigos e colegas. Mais do que um relato do passado ou uma resposta à Wikipédia, os leitores vão identificar em minha autobiografia a importância de darmos valor a educação pública, ao serviço público, ao trabalho público, para tornar o Brasil um país melhor. Muitas pessoas assim como eu fazem isso neste exato momento e não estão na Wikipédia: Benedito Tadeu César, do site Rede Estação Democrática; Carmela Grune, do site Estado de Direito e Luís Fernando Moraes, do site Sler Rede Social, são apenas alguns exemplos. Eles deveriam estar na wikipédia, e não estão, não é um problema deles, mas da Enciclopédia que se pretende planetária e não é.
E então, qual meu legado?
Em Qual é o seu legado (Vozes, 2022), o psicólogo formado pela Universidade Federal do Paraná Marlon Reikdal coloca a questão central que a negativa da inserção de meu nome pela Wikipédia me fez refletir: com sua negativa, é como se a Wikipedia dissesse que não posso ter um legado. Mas a pergunta pelo direito de ter um legado vai muito além de um sim ou não, como diz o autor. Não é um não da Wikipédia que define se tenho ou não um legado a oferecer. Para Reikdal, reconhecer que temos um legado começa no simples fato de nos preocuparmos com o sentido de nossa trajetória, o que abre um sentido novo, o de conscientizarmos de nosso lugar na dimensão coletiva da sociedade, a influência que podemos ter no mundo.
Eu acreditava que deixando um registro na Wikipédia estaria deixando um legado. Afinal, entendo que não apenas pessoas fenomenais contribuem para um mundo melhor, mas também pessoas comuns que, por alguma razão, sem serem um mártir da história mundial, fizeram algo a mais. Defendo a ideia de que também pessoas comuns como eu e você temos algo a dizer, e talvez até um dia no futuro, como por mágica, isso seja reconhecido. Queremos ser lembrados, o que daria um sentido a nossa existência, vivemos o reconhecimento pelo Outro e nunca por olharmos ao nosso interior reconhecendo nosso potencial.
Não renunciar as nossas crenças
Refletindo um pouco mais, entendi que nosso legado não é o que a Wikipédia diz que seja, mas o que somos como produto de nossas ações. Esse é nosso legado, pois é fundamental ter consciência de si, algo que já alertava Michel Foucault em seus estudos sobre a Idade Clássica. Querer uma página na Wikipédia, como nas redes sociais, não pode ser produto do exibicionismo, é preciso que seja produto da contribuição que você deu para o mundo ser algo melhor e na verdade, esse legado, nem precisa estar na Wikipédia.
Afirmei no início que minha geração, diferente da anterior, a dos Vencedores, é a dos Sobreviventes. Por quê? Porque sobrevivemos a exclusão social. Adam Phillips, em Sobre desistir (Ubu, 2024), fala que desistimos quando renunciamos a algo que acreditamos, mas não conseguimos mais continuar. Eu e meus colegas geracionais fomos capazes de ultrapassar esse momento crítico, sobrevivemos com uma coragem que teve como base o nosso desejo, nos contrapormos as forças que queriam que renunciássemos aos ideais de nossa geração. Fizemos a boa condução de nossas existências frente ao erro, rejeitamos a ideia de mudar de nossos ideais de juventude – ainda que uns ou outros tenham, de fato mudado – e enfrentamos a pior arma à disposição das forças que enfrentamos: a produção de nossa exclusão.
O exemplo de sobreviver a exclusão social
Sobreviver é escapar a exclusão social. As novas gerações precisam saber que isso é possível. Phillips dedica capítulo especial ao tema. Ele lembra que, para Kafka, uma das vantagens de deitar-se no chão é que não há mais para onde cair. “Em outras palavras, deitar-se no chão não é condição prévia para fazer outra coisa. Se Kafka tem um tema preferido, é a exclusão, a sensação de ficar de fora. “(p. 82). Ele conta a história de um anti-herói de Kafka que se excluiu sem perceber ao ganhar uma prova olímpica e nem saber onde era sua cidade natal, o que tornava a cena cômica “não se trata de um sonho, é uma fantasia que realiza o desejo de um ato impossível de heroísmo, o sonho de potência de um adolescente, o sonho de bater o recorde mundial de natação e de expor os adultos.”
A piada da história de Kafka é que se que estamos diante de uma piada, é a que diz que o heroísmo pode decorrer da incompetência. Ou que só podemos ser vencedores porque somos perdedores. Ou que ser o melhor em algo é ser incapaz de fazer aquilo. “No fim das contas, a vitória no páreo não é algo que vale a pena desejar, escreve Kafka em “Reflexões para jóqueis masculinos” (p. 83). Exatamente como a minha história, a da criança que nasceu quando devia ter sido abortada, a do menino que teve de aprender a escrever por si mesmo imitando o que escrevia a menina ao lado e sobrevivendo ao primeiro ano da educação básica; da criança que sobreviveu ao bullyng nos anos seguintes na saída de uma escola pública ao estudante de ensino superior que sobreviveu sem recursos na universidade: tudo fez parte, de fato, de certa incompetência para a vida que me obrigou a sobreviver no mundo, precisei ser o melhor possível naquilo que eu era incapaz de fazê-lo, e por isso, no fim das contas, depois disso tudo, não conseguir uma página na Wikipédia se tornou algo menor frente ao que já passou e que não valia a pena desejar.
Superar o fantasma de ficar de fora
Kafka dizia que até nadava com os outros, mas a memória dele melhor e que nunca esqueceu é que não sabia nadar, da mesma forma que a minha memória de escritor era de que, no início, não sabia escrever. Para Kafka e para mim, a exclusão sempre precedeu a inclusão, “sempre somos assombrados pela ideia de ficarmos de fora” (p.84), fantasma que a Wikipédia me atualizou mais uma vez. Phillips diz que para Freud, nunca somos verdadeiramente capazes de fazer as coisas que fazemos como adultos, pois o que fazemos é um mero disfarce. “Podemos aspirar, mas nunca realmente alcançar aquilo que aspiramos: na verdade, talvez sejamos capazes de apenas aspirar – o que torna ridículos todos os nossos ideais e ambições culturais” (p. 85). Ser adulto é essa farsa exatamente como é o meu desejo de participar da Wikipédia, da qual a maioria – eu inclusive – fica excluído.
A lição é que sou sobrevivente porque sobrevivi a exclusão. A exclusão da escrita foi somente uma delas, não ser publicado por uma editora grande do centro do país significou procurar alternativas para tornar meus livros publicáveis, o que a autopublicação proporcionou – já que minhas edições pela Editora Fi, uma das mais baratas do mercado e que recomendo, ainda representavam algum custo que eu não pude bancar, partindo para o Clube dos Autores. Como Phillips lembra de Freud, ser excluído é uma parte constitutiva de nós mesmos, o que começa com nosso próprio inconsciente, lugar de exclusão de nosso próprio desejo. Somos excluídos por aquilo a que achávamos que pertencíamos: ainda que muitos de minha geração tenham conseguido um emprego de professor na universidade federal, eu não consegui por sucessivas seleções. Não tenho tristeza, já que, personalidades célebres que fizeram os mesmos concursos que eu, como o escritor Juremir Machado da Silva, também foram. Como qualquer exclusão, somos proibidos de falar a verdade da manipulação e do poder existentes nos mundos aos quais queríamos fazer parte; isso nos levou a ocupar outros que se revelaram surpreendentes “quando uma pessoa é excluída, outra coisa fica disponível. A exclusão pode implicar o despertar de outras oportunidades que a inclusão tornaria impensáveis” (p.89).
Não desistir de lutar contra o neoliberalismo
Meu legado é a experiência de sobreviver no contexto de dissolução social promovido pelo neoliberalismo. O que deixo para as novas gerações é apenas o que sou e represento, um exemplo. Aos que se seguem, deixo uma herança ainda em vida, marcado pela luta pela construção de uma sociedade melhor pela educação. Eu mesmo, tive uma vida melhor graças a ela, superando as determinantes sociais de minha origem. A educação foi o instrumento de transformação que escolhi, o que realizei em minha carreira como servidor público com Câmara Municipal de Porto Alegre nos projetos que criei. Eu os fiz para transformar a educação escolar para melhor, bem como o que escrevi e que depois publiquei em livros, oferece a minha visão crítica do capitalismo que espero, provoque nas mentes que a acessam algum tipo de revolução.
O legado que deixamos e que independe de estar ou não na Wikipédia é a resposta a pergunta “Quem sou eu?”. Ela é o reconhecimento de uma verdade que pode ser compartilhada com os outros, o compromisso de não apenas libertar-nos das amarras do capital, mas também auxiliar a liberta-se dele quem está ao nosso lado. O compromisso consigo mesmo, de fazer sobreviver, é um compromisso com o outro, de ajudar a outros a sobreviver.
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Publicado originalmente Sler.
*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524
Foto de capa: Acervo do autor | Legenda: Da esquerda para a direita, Jorge Barcellos é o terceiro palestrante, ao lado de José Vicente Tavares. De origem humilde, a trajetória de aluno de escola pública à palestrante do ILEA – Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS encontra-se em sua autobiografia “Sem indicação de Importância: a trajetória de um sobrevivente” (Clube dos Autores, 2025).




