Por CELSO JAPIASSU*
Desde os anos da Guerra Fria que os russos aparecem como os vilões preferenciais dos “thrillers” de Hollywood com temas de espionagem ou algum tipo de conflito internacional. Misteriosos, violentos e traiçoeiros, os perfis russos traçados nos roteiros da indústria do cinema cumprem o tradicional papel de eleger um inimigo para unir a nação em torno do seu governo e dos interesses das classes que a dominam. Nos estúdios cinematográficos americanos produz-se uma eficiente propaganda para dar cobertura a grandes movimentos geopolíticos ou mercadológicos, na melhor manifestação do soft power. Primeiro é necessário conquistar corações e mentes, como diz o conhecido enunciado estratégico do império do Norte.
A Rússia continua como a grande e misteriosa desconhecida perante a classe média estadunidense, aquela que votou e dá suporte a Donald Trump. A opinião pública que aplaude os movimentos militares em defesa das corporações e no ataque aos países detentores de fontes de energia a ser capturadas. Principalmente o petróleo, que ainda permanecerá por muito tempo como o mais importante combustível a mover o mundo.
São também muito sensíveis as relações da Rússia com a União Europeia. Os países do velho mundo refletem as posições e objetivos americanos nos quais continua em relevo a OTAN, o acordo de ataque e defesa herdado da Guerra Fria e que o governo russo considera uma ameaça armada da geopolítica do Ocidente. Os políticos que governam a União Europeia, por seu lado, trabalham hoje com a inevitabilidade de uma guerra contra a Rússia.
Eurásia
Ocupando uma grande parte do continente fictício que foi denominado Eurásia, o que lhe garante localização privilegiada para exercer influência tanto na Ásia quanto na Europa, a Rússia marcou presença definitiva na história do Século 20. Foi palco de uma revolução social que influenciou a política de quase todos os países do mundo. A falência do seu regime, quase ao fim do século passado, significou outro marco histórico a provocar novo arranjo do tabuleiro geopolítico, o surgimento de novos países e, principalmente, o fortalecimento do império americano, que saiu vencedor do grande embate do século. Sem a competição e o desafio de um adversário, os EUA passaram a comandar o espectro de interesses que move o mundo e subordina as independências.
Metade das populações da Europa não considera a Rússia um país europeu, segundo uma pesquisa realizada pela empresa IFOP na França, Alemanha, Reino Unido e Polônia. Apenas na Polônia, a maior parte da população (77%) afirma que a Rússia pode ser considerada parte da Europa.
Os países que orbitaram em torno da antiga União Soviética continuaram de certa forma sob influência russa depois do colapso do regime. A guerra da Ucrânia, motivada inicialmente pela ocupação da Crimeia, teve como principal causa o que o nacionalismo russo encarou como uma provocação: a anunciada adesão da Ucrânia ao tratado da OTAN, o que significaria a instalação de mísseis americanos e/ou da União Europeia às portas de Moscou.
Desentendimentos
A Federação Russa e a União Europeia cultivaram relações cordiais até 2014 e desenvolveram juntas mútuos interesses comerciais, pesquisa científica e até a resolução de conflitos no Oriente Médio. A entrada da Rússia na Organização Mundial do Comércio contou com o apoio da Europa, mas os desentendimentos começaram com a crise da Crimeia e o imediato alinhamento da União Europeia com a estratégia da OTAN. As relações vieram a piorar também com a intervenção russa na guerra da Síria em apoio a Bashar al-Assad, alvo de uma complicada guerra híbrida que envolveu praticamente todo o Oriente Médio.
As sanções europeias contra a Rússia incluíram medidas diplomáticas como a retirada do apoio a sua admissão na OCDE-Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Foi proibida também a entrada de alguns dos seus cidadãos na União Europeia e decretadas restrições gerais ao comércio. A UE dependia da energia barata fornecida pela Rússia, que lhe chegava pelo gasoduto Nord Stream, misteriosamente alvo de um atentado explosivo que interrompeu o fornecimento. Muitos acusam a CIA como a responsável pela sabotagem e a Europa passou a comprar – mais caro – o gás americano.
Um relatório do Serviço Europeu de Ação Externa acusou o Kremlin de ser responsável por uma campanha de fake news para gerar pânico e desinformação na Europa quando da pandemia de Covid-19. A Rússia desafiou a Europa a apresentar provas que nunca apareceram.
Na época o ministro do Exterior russo Serguei Lavrov disse que seu país estaria disposto a romper relações com a União Europeia se novas sanções fossem adotadas. A declaração foi feita depois de uma desastrada reunião de Lavrov com o espanhol Josep Borrel, que na época era o alto representante da Comissão Europeia. E diante das tensões pela prisão em Moscou de Alexei Navalny, um blogueiro e militante youtuber de 44 anos apresentado como líder da oposição e definido como um populista de direita. Três diplomatas europeus, representantes da Alemanha, Suécia e Polônia foram expulsos da Rússia depois de terem participado de manifestações de protesto contra a prisão de Navalny. Em represália, cada um daqueles países expulsou um diplomata russo. Onze mil pessoas teriam sido também presas na repressão às manifestações de rua ocorridas em Moscou e outras cidades do país. O governo russo disse que essas manifestações foram articuladas de fora por interesses estrangeiros.
Putin
Em seguida aos governos erráticos de Boris Yeltsin, sustentado pelos novos magnatas enriquecidos no caos que se seguiu ao fim do regime comunista, a política russa passou a ser dominada por Vladimir Putin. Trata-se de um tenente-coronel que fez carreira na KGB, o serviço secreto da antiga União Soviética. Encontra-se no poder há 25 anos, alternando mandatos como primeiro-ministro e presidente. A Putin é atribuída a volta à estabilidade política, o fim da crise dos anos 1990, o crescimento do PIB, o aumento geral dos salários e a queda nos níveis do desemprego e da pobreza. Seu partido Rússia Unida, por ele mesmo fundado, tem maioria absoluta na Duma, o parlamento, e lidera vários governos regionais.
O segundo maior partido do país, o PCFD-Partido Comunista da Federação Russa, tem acusado o governo de fraude nas eleições.
O governo de Putin goza de grande popularidade e aprovação. Tem estado no meio de episódios polêmicos, como o assassínio não esclarecido de alguns dos seus opositores. E pela maneira inflexível com que tem tratado a oposição da Chechênia, a forma com que anexou a Crimeia e conduz a guerra na Ucrânia “para defender o país e corrigir os erros da história”. Na contramão dos dogmas privatistas do Ocidente, tem fortalecido o papel do Estado na economia e não esconde o objetivo de resgatar a presença da Rússia como superpotência num cenário internacional hoje dominado pela China e Estados Unidos.
*Celso Japiassu é autor de Poente (Editora Glaciar, Lisboa, 2022), Dezessete Poemas Noturnos (Alhambra, 1992), O Último Número (Alhambra, 1986), O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno, 1980), A Região dos Mitos (Folhetim, 1975), A Legião dos Suicidas (Artenova, 1972), Processo Penal (Artenova, 1969) e Texto e a Palha (Edições MP, 1965).
Foto de capa: Agência russa Tass / Presidência da Rússia




