A Guerra do Capital

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Por LINCOLN PENNA*

As consciências sadias consideram com razão que a guerra é uma estupidez. Mas, elas não derivam somente da decisão de governantes. Se assim fosse, bastava a troca mediante consulta pública e se resolveria o problema de tais decisões. Na verdade, existe um conglomerado de interesses que aposta na irracionalidade, ou seja, no recurso aos confrontos bélicos, que no mais das vezes resultam em crimes de lesa-humanidade por conta de enormes contingentes sociais sacrificados. São guerras derivadas que em geral decorrem de interesses dos que detém o controle do mercado mundial ou visam dele exercer o controle. Mais diretamente falando, são os donos de capital os responsáveis por fomentarem as guerras.

Remotamente, o capital era apenas um meio circulante, as moedas. Mas, o sistema que gerenciou essa economia primária proporcionou o capitalismo, que passou a acumular quantidades de recursos de dinheiro e adotando um conjunto de práticas legalizadas para impulsionar a concentração de dinheiro-capital. Nesses tempos pré-capitalistas surgem os bancos e em seguida as primeiras indústrias produtoras a dar vigor ao comércio expandindo-o. Com isso chegou-se ao capital financeiro já crescentemente presente no século XX, e hoje carro-chefe do grande capital como poder econômico e político na esfera mundial. Tendência a ampliar ainda mais o domínio não apenas do circuito econômico e necessariamente financeiro do mundo como a exercer influência decisiva nos rumos das economias periféricas e de seus projetos sob a anuência desse poder multinacional que remove os princípios de soberania e autonomia das nações.

Mesmo as grandes guerras mundiais, cujas causas se originaram de demandas por disputas territoriais de nacionalidades afetadas por ambições de projetos expansionistas ou reinvidicatórios, acabaram por dar início a esses embates. Em função desses conflitos localizados, o capital em termos de investimento construiu uma indústria de guerra altamente rendosa para ativar as demais indústrias a passarem a ser em grande parte fornecedoras de equipamentos para essa nova e sofisticada produção industrial.

O belicismo ganhou densidade política junto aos estados nacionais com interesses a transpor os seus limites territoriais, que outrora dera lugar ao fenômeno do imperialismo, cuja etapa já transpõe suas origens e se manifesta de forma a ultrapassar as antigas políticas expansionistas. Ele agora é apátrida ao dissolver na prática os estados nacionais que antes o abrigava. Tal mudança nem sempre é percebida em razão dessa nova manifestação do imperialismo corresponder mais do que interesses de burguesias nacionais que comandavam o mercado e ditava suas regras. Trata-se nesse quarto de século XXI de um capital internacionalizado.

Ao se consolidar essa indústria de guerra equiparou-se em termos de movimento de recursos de capital às indústrias petrolíferas em meados do século XX, e hoje em dia também a das drogas. Tanto a acumulação primitiva, quanto a descoberta do “ouro negro”, o petróleo, também as drogas passaram a representar demandas regulares e crescentes de modo a movimentar grandes volumes de capital. Mais recentemente, passaram a gerenciar as ações em sociedades onde o comércio das drogas se encontra proibido ou pelo menos extremamente limitada a sua comercialização. Com isso, tem surgido as organizações criminosas que hoje disputam espaços com os poderes públicos do estado.

Até o início da Segunda grande Guerra mundial, em 1939, os gastos militares norte-americanos giravam em torno de 1,4% do PIB. Ao final da guerra atingira 9%, e mesmo depois do término dos confrontos bélicos os investimentos não pararam, embora tenham sido contidos, mas por pouco tempo devido as novas ocorrências de guerras ou de ameaças que apontavam para a possibilidade de novos conflitos.

Assim, com novos incrementos proporcionados pela guerra da Coréia nos primeiros anos da década de cinquenta, e a escalada da Guerra Fria acentuada, sobretudo, coma Revolução Cubana de 1959, esses investimentos alcançaram os mesmos patamares dos anos de guerra. Vale dizer, a indústria de guerra tornou-se inexoravelmente presente na economia dos países capitalistas centrais com o suporte das economias periféricas que acompanharam de alguma forma esse mercado de guerras.

Motivações políticas e ideológicas continuam a dar vazão a aplicação de investimentos na indústria de guerra, cujos cenários futuros são ameaçadores para toda a humanidade, sem precisar lançar mão de nenhuma teoria da conspiração. Todas as advertências em relação a expansão do grande capital sem fronteiras e sem ética capaz de conter ou limitar essa expansão cai por terra porque não faz parte de sua lógica o apreço por valores e princípios que um dia orientaram as decisões da humanidade. De modo que quando os que denunciam a presença das organizações criminosas agindo inescrupulosamente nas grandes cidades brasileiras e do mundo em geral, não se dão conta que é o mesmo expediente das decisões do grande capital que nos governa de fato.

Quando se assiste o que se passa no Oriente Médio, região que tem centrado o interesse em razão da política adotada pelo Estado de Israel, que em nome de uma resposta ao ataque terrorista do Hamas tem proporcionado o azeitamento dessa indústria voltada para a guerra, com recursos armamentistas de última geração para serem ao mesmo tempo testados e usados com vistas a manter Israel como aríete para os interesses imperialistas que há anos operam no mercado petrolífero para os EUA, poucos são os que dão conta de que se trata de atos a independerem da razoabilidade dos governos, muitas das vezes cúmplices por impotência de seus dirigentes.

Se tomarmos o PIB dos EUA de 2023, que ultrapassou os 27 trilhões de dólares e calculando que o índice não ficou muito abaixo dos 10%, cerca de mais de 2 trilhões pelo menos têm sido aplicados para o orçamento voltado para essas aplicações em armamentos, que têm sido investidos nos conflitos ainda localizados, como nos territórios da Faixa de Gaza e mais recentemente no Líbano, sem precisar adicionar a guerra na Ucrânia e Rússia. Cifras que mesmo quando divulgadas costumam ser naturalizadas, como se os aportes ao armamentismo tenham endosso da cidadania mundial.

Ou nos conscientizamos com relação a essa escalada do terror bélico com consequências imprevisíveis, ou só começaremos a tomar alguma atitude quando não tivermos mais tempo, pois será tarde demais. Haja vista o que acontece com os eventos extremos periodicamente registrados e desconsiderados sob a alegação de que são apenas previsões, ou que já estamos acostumados com as tragédias em determinadas épocas do ano.
Esses que assim argumentam são os mesmos que dão as costas para o advento de uma nova guerra. As justificativas só reforçam a lógica fundada numa concepção ideológica a dar sentido ao emprego da violência, seja para a defesa de interesses privativos ou para continuar o surto industrial do armamentismo desenfreado.

A lógica da paz segura implica na tomada de consciência mundial, em sua capacidade de organizar manifestações que denunciem esse mundo que precisa ser profundamente refeito para que a humanidade não apenas sobreviva, mas se sinta irmanada na fraternidade, aquela que junta solidariedade e gozo permanente da felicidade na perspectiva dos caminhos de uma comunidade efetiva, afetiva e criativa para sempre.

 

*Doutor em História Social; Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos).

Foto: Freapik

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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