A Democracia como Condição para a Paz

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María Corina Machado - Crédito: SantanaZ, CC0, via Wikimedia Commons

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo*

O Prêmio Nobel a María Corina Machado reafirma o valor universal da democracia diante do avanço global do autoritarismo

De maneira geral, não compartilho das posições políticas de María Corina Machado. Mas é preciso reconhecer que, neste momento, ela simboliza algo que ultrapassa a disputa interna na Venezuela: a resistência democrática diante de um regime autocrático consolidado e, em sentido mais amplo, a luta global pela preservação da democracia como condição essencial para a paz.

O governo de Nicolás Maduro é hoje uma ditadura de fato. Sustenta-se por meio da fraude eleitoral, do controle das instituições e do uso sistemático da polícia e das Forças Armadas para reprimir a oposição. A retórica revolucionária há muito tempo deu lugar à manutenção do poder a qualquer custo, inclusive pela supressão das liberdades políticas e civis. A escolha de María Corina Machado para o Prêmio Nobel da Paz é, portanto, um gesto político e simbólico de grande relevância: recoloca a democracia no centro da agenda internacional em um momento de recrudescimento dos autoritarismos.

Para quem defende a democracia como horizonte político a ser construído, não há ditadores de estimação. A coerência democrática exige reconhecer que regimes que sufocam a liberdade de imprensa, reprimem manifestações e manipulam eleições são ditaduras, independentemente de seu discurso ideológico. No caso venezuelano, essa constatação não é retórica: desde 2015, quando o chavismo perdeu o controle da Assembleia Nacional, o Tribunal Supremo de Justiça anulou reiteradamente decisões do Parlamento e, em 2017, uma Assembleia Constituinte paralela foi utilizada para neutralizar o Legislativo e concentrar poder no Executivo.

O controle do TSJ pelo chavismo foi alcançado gradualmente, por meio de manobras constitucionais, nomeações políticas, remoção de independência institucional e expansão do poder judiciário em favor do Executivo. Essa captura institucional permitiu que decisões judiciais fossem alinhadas aos interesses do governo Maduro, funcionando como instrumento de regulação política e de supressão da oposição.

As eleições subsequentes estiveram marcadas por desqualificações e perseguição a opositores e por um padrão de opacidade na totalização. Em 2024, o Conselho Nacional Eleitoral não divulgou as atas por mesa nem dados desagregados capazes de sustentar o resultado oficial; o Centro Carter afirmou que a votação “não atendeu a padrões internacionais” e “não pode ser considerada democrática”, justamente pela impossibilidade de verificar os resultados. O Parlamento Europeu repudiou a fraude e cobrou a publicação dos dados; a Comissão Interamericana de Direitos Humanos registrou repressão antes, durante e depois do pleito. Em síntese: além do ambiente coercitivo, o próprio conteúdo dos resultados permaneceu tecnicamente não verificável, alimentando o questionamento interno e externo sobre a legitimidade da vitória proclamada por Maduro.

Nos últimos anos, as ameaças e sanções associadas à retórica trumpista contra o regime de Maduro contribuíram para um recrudescimento do discurso autoritário interno, instrumentalizado para mobilizar apoiadores, treinar milícias e usar a “ameaça externa” como recurso de legitimação de um governo que perdeu a confiança da maioria, como indicam tanto os resultados contestados quanto a escalada repressiva pós-eleitoral. Relatórios da ONU e da CIDH descrevem o uso de forças de segurança e de grupos paraestatais, prisões arbitrárias e violência política como parte de uma estratégia continuada de intimidação.

Trata-se, portanto, de um regime que conserva a forma republicana, mas esvaziou seus conteúdos democráticos: a legitimidade eleitoral foi substituída pela força; a separação de poderes, pela lealdade pessoal; e a soberania popular, pela repressão institucionalizada. Nesse contexto, a escolha de María Corina Machado para o Nobel da Paz tem significado político inequívoco: é o reconhecimento de uma luta democrática em um país onde a alternância de poder foi, na prática, eliminada.

A esquerda democrática não pode ter dúvidas sobre a natureza do regime venezuelano. Tanto Lula quanto Gabriel Boric já se distanciaram de qualquer afinidade com Maduro desde que a fraude eleitoral se consolidou. Essa inflexão é importante: reafirma que a defesa da democracia e dos direitos humanos deve prevalecer sobre solidariedades ideológicas ultrapassadas.

Maduro é um político hábil. Tem procurado explorar a ascensão do trumpismo, que compartilha da mesma natureza autocrática, para tentar reconstruir pontes com parceiros latino-americanos. Ao mesmo tempo, a própria vitória de Donald Trump e as medidas autoritárias que vem impondo nos Estados Unidos deslocaram o foco internacional da crítica ao regime venezuelano.

Por isso mesmo, o Prêmio Nobel da Paz concedido a María Corina é estratégico e vem em bom momento. Num cenário em que as ameaças à democracia se multiplicam, da Venezuela aos Estados Unidos, da Rússia à Hungria, é fundamental somar forças para conter a deriva autoritária global. O prêmio é, assim, um chamado à coerência e à vigilância, lembrando que a paz não se constrói sob a opressão, mas sobre instituições legítimas, direitos assegurados e cidadania ativa.

A defesa da democracia é, hoje, a condição indispensável para a construção da paz. Em tempos de polarização e descrédito das instituições, é preciso reafirmar o valor das eleições livres, da liberdade de manifestação e de organização, da imprensa independente e da proteção dos direitos individuais. Essa é, em seu sentido mais profundo, uma luta pacifista, que se opõe à violência do autoritarismo e ao avanço das formas contemporâneas de dominação.

*Sociólogo, Professor Titular da Escola de Direito da PUCRS

Foto da capa: María Corina Machado – Crédito: SantanaZ, CC0, via Wikimedia Commons


Tags:
Democracia, Venezuela, Maria Corina Machado, Prêmio Nobel da Paz, autoritarismo, Nicolás Maduro, direitos humanos, eleições livres, América Latina, paz mundial

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Respostas de 6

  1. A crítica ao atual presidente da Venezuela é não apenas necessária como correta. Sobre isso tenho total acordo com a matéria acima. No entanto, para que as alternativas que possam surgir estejam no campo democrático, é igualmente importante analisar as diferentes origens e interesses das críticas realizadas. Assim, a mudança necessária na Venezuela não pode vir por mãos da frota estadunidense, como mais uma ação autoritária e imperialista de Donald Trump; tampouco pode vir de pessoas que, cotidianamente, demonstram seu pouco apreço pela democracia e pela paz. Tenho profunda admiração e respeito pelo comitê que delibera a concessão do prêmio Nobel da paz, mas apenas católicos fundamentalistas acreditam no poder da infalibilidade e, assim, na minha opinião, este comitê cometeu um erro. Mirando mais na necessária defesa da democracia na Venezuela e no mundo e menos em quem vocaliza esta defesa, o comitê premiou, na minha interpretação, alguém que já demonstrou que não entende a democracia como um valor em si mesmo, mas apenas como uma ferramenta disponível para defender seus próprios interesses.

    1. Eis o “x” da questão. Não se pode, por pretexto de crítica – correta – ao regime ditatorial de Maduro, homenagear um seguimento também autoritário e contrário à democracia, como o que representa Maria Corina.
      É hipócrita e um desserviço às liberdades democráticas!

  2. É um engodo absoluto essa farsa de defesa dessa “democracia” burguesa. Hoje, na América Latina, a Venezuela é o principal ( e praticamente único) baluarte ( não desconsiderando Cuba) de resistência ao imperialismo. É lamentável alguém que se diga de Esquerda cair/ser cooptado por essa falácia de governo Maduro como ditadura. É um tapa na cara da sociedade esse prêmio Nobel vergonhoso para essa pessoa deplorável. Que paz que ela defende???
    Isso é um escracho!!!

  3. “lembrando que a paz não se constrói sob a opressão, mas sobre instituições legítimas, direitos assegurados e cidadania ativa.”
    E acaso existe dentro da democracia liberal, em países dependentes como os da A.L. tais garantias para toda a população?
    Essa democracia tão defendida pelos liberais de esquerda ou direita, para mim nada mais é do que uma ditadura do capital.

  4. Surpresa, claro que não é! No entanto, ter formalidades emanadas do império que jamais foi uma democracia, mas é tido como paradigma por milhares de pessoas, é digno de nota. Por que, visto que tais analistas, ou alguns deles, brandem também os Direitos Humanos como argumento, fecham os olhos ao que se vê nas ruas de todos os cinquenta Estados Unidos? Por que ignoram avanços justo nessa área, Ds. Hs., como na habitação, saúde, escolaridade, na Venezuela? As conquistas do povo chinês, durante décadas, costumavam ser rebatidas com ‘ah, mas lá há trabalho escravo’! A cada dia que passa, mais desmoralizada fica tal frase. Para refrescar a memória de uns e outros, o trabalho escravo foi abolido por se tratar de obstáculo ao desenvolvimento. Para finalizar, sugiro ir além das formas e buscar o que a mídia omite, como as ruas das cidades do Chile, onde estive em 2015 e comparei com Havana. Por que evitam olhar nossas próprias ruas, nas quais a chaga hoje normalizada com a expressão ‘moradores de rua’, é invisibilizada no dia a dia, embora apareça eventualmente nas páginas policiais? Por que fazer de conta que o tráfico de drogas é o que oferece pretexto ao império para invadir mais um país? Esqueceram o Iraque e suas ‘armas quimicas’?

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