A Cidade que Expulsa Seus Trabalhadores: Catadores Viram Alvo da Higienização Urbana em Porto Alegre

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A cidade que expulsa seus trabalhadores - Imagem gerada por IA ChatGPT

Propostas de restrição a carrinhos revelam política de higienização urbana

Artigo 3/7 da série Porto Alegre sob cerco

Da REDAÇÃO

Propostas de restrição a carrinhos e ofensiva política expõem agenda de exclusão e controle social.

Entre as várias frentes da atual agenda de controle social em Porto Alegre, poucas revelam de forma tão transparente o projeto político em disputa quanto as iniciativas — formais e informais — direcionadas contra os catadores de materiais recicláveis. Nos meses que antecederam a crise institucional na Câmara, a cidade assistiu à circulação de propostas e discursos que buscavam restringir ou mesmo inviabilizar a circulação dos carrinhos de coleta, instrumento central do trabalho de milhares de trabalhadores que sustentam parte significativa da cadeia de reciclagem urbana.

Esse ataque aos catadores ocorre em uma cidade onde o sistema público de coleta seletiva já opera com índices muito baixos. Segundo dados oficiais, Porto Alegre recicla apenas 2,1% do lixo seco recolhido pelo município, e mesmo somando a compostagem de podas urbanas o índice total de reaproveitamento chega a apenas 3,2%. Em números absolutos, das 1.619 toneladas de resíduos coletados por dia, somente 47,4 toneladas correspondem à coleta seletiva — e, desse volume, apenas 34,2 toneladas chegam efetivamente à reciclagem. Ou seja: mais de 96% de tudo o que a cidade recolhe vai direto para o aterro sanitário.

Nesse cenário de baixa eficiência pública, a atuação dos catadores é ainda mais crucial. Estudos estimam que cerca de 7 mil trabalhadores atuam informalmente na coleta e triagem de materiais recicláveis em Porto Alegre, recuperando uma parcela significativa do que jamais entraria no circuito oficial. Em outras palavras: sem os catadores, o pouco que Porto Alegre recicla seria ainda menor.

Ainda que a proposta de proibição total dos carrinhos não tenha prosperado em sua versão mais agressiva, o fato de ter sido colocada na mesa e debatida nos corredores da Câmara já representa um deslocamento simbólico profundo. Os catadores — figuras centrais na gestão de resíduos urbanos — passaram a ser enquadrados como problema de ordem pública. Movimentos sociais, cooperativas de reciclagem e entidades de direitos humanos imediatamente reagiram, denunciando que o que estava em curso não era uma política urbana, mas uma tentativa de higienização social.

Para as cooperativas que atuam há décadas na cidade, a ofensiva foi interpretada como um ataque direto a seu modo de sobrevivência. Os carrinhos não são acessórios; são ferramentas de trabalho tão essenciais quanto o caminhão de coleta é para o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU). A tentativa de restringir sua circulação é, na prática, a tentativa de expulsar um grupo inteiro de trabalhadores do espaço urbano e da economia da reciclagem.

Além do impacto social direto, as discussões sobre limpeza urbana foram acompanhadas de narrativas que associavam catadores à desordem, degradação do espaço público e insegurança. Essa retórica, embora não formalizada em documentos oficiais, permeou falas públicas, entrevistas e debates no Legislativo. É nesse ponto que a crítica de higienização ganha força: quando grupos vulneráveis passam a ser tratados não como sujeitos de direitos, mas como elementos incômodos que precisam ser disciplinados ou removidos.

Uma análise mais ampla mostra que essas iniciativas não surgem no vazio. Elas dialogam com uma tendência nacional — e, em alguns casos, global — de cidades governadas sob a lógica da “ordem” e da “segurança”, em que a pobreza é administrada por meio de restrições, fiscalização intensiva e remoção de trabalhadores informais. Em Porto Alegre, esse movimento encontrou terreno fértil em um Legislativo presidido por uma ex-militar, marcada por um discurso orientado ao controle e à disciplina e alinhado a pautas que tensionam o direito à cidade.

Ao mesmo tempo, a reação social foi expressiva. Catadores organizaram protestos em frente à Câmara, cooperativas emitiram notas públicas, entidades de assistência social denunciaram a ameaça de criminalização velada do trabalho informal, e pesquisadores da UFRGS e da PUCRS alertaram para o risco de aprofundar a exclusão urbana. Diversos especialistas ressaltaram que políticas de reciclagem bem-sucedidas no Brasil — como em São Paulo, Belo Horizonte e Curitiba — incorporam os catadores como parte do sistema, e nunca como alvo de restrições.

É nesse cenário que se deve compreender a relação entre higienização urbana e a agenda política mais ampla conduzida pela presidência da Câmara. O ataque aos catadores não é um evento isolado: ele se soma à repressão interna no Legislativo, às tentativas de cassação de opositores e às propostas que restringem iniciativas de solidariedade. O padrão é claro: as políticas voltadas aos mais pobres e às vozes dissidentes deixam de ser tratadas como questões de cidadania e passam a ser enquadradas como problemas de ordem pública.

O debate sobre os catadores também coloca em evidência a disputa pelo direito à cidade. Quem tem o direito de circular? Quem tem o direito de trabalhar? Quem tem o direito de existir no espaço urbano sem ser tratado como ameaça? Para os trabalhadores da reciclagem, a resposta do Legislativo em 2025 foi inequívoca: o trabalho que sustentam e que reduz o impacto ambiental da cidade passou a ser visto como incômodo visual e operacional — ainda que eles recuperem mais material reciclável do que o próprio sistema oficial de coleta seletiva.

Para Porto Alegre, a questão que se coloca é mais profunda do que uma discussão sobre carrinhos de coleta. Trata-se da pergunta central da política urbana contemporânea: a cidade vai ser construída a partir da inclusão ou da expulsão?

O capítulo dos catadores mostra que, na atual conjuntura, a Câmara tende para a segunda resposta. E isso exige vigilância da sociedade civil, dos meios de comunicação e de todas as forças políticas que acreditam na cidade como espaço de direitos, e não de exclusão.

Nos próximos textos da série, a RED examinará outra peça desse mesmo quebra-cabeça: o projeto que pretende regulamentar — e, na prática, punir — iniciativas de distribuição de alimentos às pessoas em situação de rua. Juntas, essas políticas revelam um desenho urbano que não acolhe, mas seleciona quem pode existir.

A série continua.

Leia também os artigos anteriores da série:

Escalada autoritária na Câmara de Porto Alegre: RED denuncia ataques à democracia local

Repressão dentro da Câmara: violência policial marca ruptura democrática em Porto Alegre

Comissão de Ética sob pressão: como a Câmara tenta calar a oposição em Porto Alegre


Ilustração da capa: A cidade que expulsa seus trabalhadores – Imagem gerada por IA ChatGPT

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