A captura do Estado nacional brasileiro pelo rentismo (2)

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Por J. CARLOS DE ASSIS* e PAULO LINDESAY*

A marca do governoGetúlio Vargas foi criar a infraestrutura econômica do Brasil e pôr em marchaseu desenvolvimento industrial. Deixou um impressionante legado nessas áreas,assumido pelo presidente Juscelino Kubitschek, que governou o País de 1956 e1961. Juscelino foi o último representante no País do desenvolvimentismo até ogolpe de 1964, e governou com um “Plano de Metas” direcionado para as áreas de transportes,industrialização, alimentação, energia, educação, tendo a construção de Brasília como uma espécie de meta síntese.

O governo JK foi de caráternacional-desenvolvimentista e atribuiu ao Estado, como acontecera com Vargas, o papel de principal responsável pelo desenvolvimento econômico e social do Brasil. Sucedido pelo presidente Jânio Quadros, que renunciou depois de apenas 206 dias no poder, sob alegação do que chamou de pressão de “forças ocultas”, assumiu interinamente Paschoal Ranieri Mazzilli, que o entregou ao vice-presidente eleito, João Goulart, a despeito da oposição de militares.

Goulart exerceu a presidência por mais de dois anos, mas a aliança entre militares golpistas e as poderosas oligarquias econômicas modernizadas internas e externas o derrubou do poder em 1º.de abril de 1964, o que pôs fim à Quarta República (1946-1964), iniciando a ditadura militar que duraria de 1964 a 1985.

Em abril de 1964, obviamente sem qualquer legitimidade, o general Humberto Castelo Branco assumiu a presidência.  Nesse período, o estoque dadívi da pública externa brasileira era de cerca de US$ 3 bilhões. Praticamente não existia dívida interna, em consequencial da alta inflação.  Ao final da ditadura cívico-militar, em 1985, na redemocratização do Estado brasileiro, o estoque da dívida pública externa era de cerca de US$ 105 bilhões, tendo crescido mais de 32 vezes em relação ao valor inicial.

Nesse intervalo houve investimentos reais internos em infraestrutura, porém. Contudo, amarrada às correções monetária e cambial introduzidas na institucionalidade monetária brasileira criada pela ditadura, a dívida começou a crescer aceleradamente, puxada pela inflação ascendente, até explodir na virada da década de 70 para a 80 do século passado. 

No início da década, o Brasil havia vivido o denominado “Milagre Econômico”. Inicialmente tornara-se um enorme canteiro de obras financiado por crédito externo, porém, como dito acima, com a contrapartida de criação de infraestrutura interna. Entretanto, não era ainda a captura do Estado pelo rentismo. Essa captura tornou-se realidade a partir do momento em que, em pleno regime democrático, com o País em moratória, presidentes como Fernando Henrique Cardoso curvaram-se à imposição dos credores da Dívida Externa e subordinaram o Brasil às condições draconianas do sistema financeiro internacional para pagá-la.

Na década dos 70, quando a média anual do crescimento do PIB brasileiro foi de 10,8% – em 1973, o maior PIB da história do Brasil, ele chegou a 14% -, isso não significou melhora de qualidade de vida para a maior parte da população brasileira. De fato, os salários reais não acompanharam esse crescimento. De acordo com o que dizia o ministro da Fazenda, Delfim Neto, era preciso primeiro fazer crescer o bolo, para depois dividi-lo. O bolo cresceu. Mas não foi dividido.

No final da década, virou-se a chave da economia mundial. Especialmente no caso brasileiro, o País passou a viver sob a égide do grande capital financeiro rentista. Foi o início da chamada financeirização. Havia o agravante de políticas monetárias e fiscais extremamente favoráveis à especulação financeira, como a taxa de juros governada pela Selic e a política fiscal submetida ao fetiche do orçamento fiscal equilibrado, segundo as normas da Lei de Responsabilidade Fiscal do governo de Fernando Henrique Cardoso.

O capital financeiro rentista fez uma simbiose com os demais capitais, inclusive o capital produtivo, proporcionando-lhes crescente apropriação da renda produzida pelos trabalhadores e pela sociedade em geral. Pressionaram os governos para flexibilizar direitos trabalhistas e previdenciários, reduzir salários e postos de trabalho, e enxugar direitos sociais

Nos anos 80, a denominada década perdida, havia explodido a crise da Dívida Externa dos países emergentes. As duas principais taxas de juros aplicadas às relações bancárias internacionais(Prime e Libor) tiveram um crescimento descontrolado, afetando grande parte da economia mundial. Saíram de 4% a 5% ao ano no início dos anos 1970 e chegaram amais de 20% no fim desse período, puxadas por uma decisão unilateral do FED, banco central norte-americano.  

Com isso houve uma burla à Convenção de Viena, da qual o Brasil é signatário, a qual proíbe alta flutuação da taxa de juros unilateralmente. Em consequência, houve uma quebra generalizada de países emergentes, em desenvolvimento e pobres, especialmente da América Latina. O México foi o primeiro a quebrar.

No Brasil, depois de uma tentativa frustrada de estabilizar a economia com o Plano Cruzado, o presidente José Sarney pediu uma moratória da dívida em 1987. Não se tratou, porém, de um ato de coragem frente à banca internacional. Simplesmente faltaram recursos para pagá-la.

Um ano depois, duas fraudes de consequências desastrosas para o País aconteceram na promulgação da Constituição de 1988.  Uma direta e outra indireta. A primeira foi confessada em entrevista ao UOL pelo próprio constituinte que a fez, o então jovem deputado gaúcho do PSDB, Nélson Jobim, com o provável suporte de seu partido.  

O Regimento Interno da Constituinte não admitia alterações substanciais de mérito, no segundo turno, na votação de relatório que não fosse votado em primeiro turno. Permitiam-se apenas ratificações de forma nas redações dos artigos. Acontece que a alínea “b”, no inciso “II”, parágrafo 3 do Artigo 166 da Carta foi introduzida nela de forma fraudulenta por Jobim, pois não tinha sido votada em primeiro turno.

Isso representou a garantia de um privilégio ao pagamento do “Serviço da Dívida Pública” que afeta a economia brasileira, profundamente, até hoje. É que o parágrafo mencionado possibilitou a entrada de recursos financeiros no País, independentemente de sua destinação, o que possibilitou aos aplicadores estrangeiros especular livremente com a entrada e saída de recursos no mercado rentista sem qualquer controle. E este foi um ponto de partida decisivo na explosão da Dívida Pública.  

De fato, entre 1985 e 1987, o pagamento médio por conta do serviço da Dívida Pública Geral dos governos foi de 13,75% do orçamento federal total. Em 1988, ano da promulgação da Constituição Federal, havia subido para 19,81%. Em 1989, foi para 63% e, na eleição de Collor de Melo, em 1990, chegou ao maior patamar da história –70,57%. Nos anos subsequentes, em média, 50% da Despesa Geral têm-se destinado ao pagamento dos serviços da Dívida Pública (ou orçamento financeiro).

A fraude do deputado Nélson Jobim garantiu, na prática, que o orçamento financeiro não tenha limites e nem necessidade de dotação orçamentária. O que entra livremente como aplicações financeiras na economia sai livremente. O governo tem que pagá-lo como obrigação constitucional, diante de uma espécie de ícone sagrado das contas públicas. Quando o governo, como atualmente, decide perseguir uma meta de equilíbrio fiscal a qualquer custo, e as despesas projetadas são maiores que as receitas, obriga-se a fazer cortes no orçamento primário, para acomodá-lo ao tamanho do orçamento financeiro, qualquer que ele seja.

No projeto da Lei Orçamentária Anual de 2025, a previsão de pagamento do serviço da Dívida Pública Federal é de cerca de R$ 2,529 trilhões, ou 44,36% da despesa geral prevista da União, de R$ 5,700trilhões. Nos últimos 24 anos, o fundo público federal foi sangrado em mais de R$23 trilhões com pagamentos ao serviço da Dívida Pública Federal (Juros e Amortizações).Desse total, somente com juros da Dívida Pública, foram gastos cerca de R$ 4,2trilhões. O resultado desses desvios de recursos públicos para a especulação financeira serviu de garantia de lucros crescentes e vitalícios aos banqueiros e às grandes corporações, detentoras de quase a totalidade dos títulos públicos federais que giram no mercado financeiro especulativo.

Diante dessa sangria desenfreada em favor dos milionários e bilionários, mais de 9 milhões de brasileiros ainda vivem na extrema pobreza, cerca de 60 milhões na pobreza, mais de 49 milhões não têm saneamento básico e cerca de 30 milhões não têm acesso à rede de abastecimento de água. Isso corresponde a 13,4% da população brasileira. Esses são os dados oficiais mais atualizados, que melhoram sempre em governos mais progressistas. Mas, no passado recente, nos governos neoliberais ou de extrema-direita, a situação era bem pior. Antes, não estávamos vivendo num mar de rosas, mas avançamos alguns passos.

Mesmo com o pagamento cerca de R$ 19trilhões em amortizações, o estoque da Dívida Bruta do Governo Geral não parou de crescer. O saldo apurado até dezembro de 2024 alcançou cerca de R$ 8,984 trilhões ou 76,1% do PIB. Com custo médio anual da dívida pública federal em 11,17%, segundo o relatório mensal da Dívida Pública Federal, somente os juros chegaram  a mais de R$ 1 trilhão em 2024. E sem considerar os recursos sangrados dos cofres públicos a título de amortização, cerca de R$ 1,645 trilhão.

A segunda fraude constitucional acima mencionada foi o não cumprimento até agora, décadas depois da promulgação da Carta, do Art. 26 dos Atos de Disposições Constitucionais Transitórias. A Carta de 1988 estabelece que o Congresso Nacional deve realizar um exame analítico e pericial dos fatos e atos que geraram o endividamento externo do Brasil. Isso nunca foi cumprido pelos órgãos de fiscalização, pelo Poder Executivo, Legislativo e até pelo Judiciário.

 Na promulgação da Constituição, o saldo da dívida interna era insignificante.
Se houvesse a realização de uma auditoria da Dívida Pública na época, com transparência, saberíamos verdadeiramente qual a característica, o perfil dessa dívida e os detentores desses títulos. Saberíamos se é legal ou ilegal, legítima ou ilegítima, ou odiosa. Ou, ainda, se é uma peça de ficção científica para garantir lucros crescentes e vitalícios para o grande capital financeiro rentista e as grandes corporações.  Infelizmente, nem a esquerda, nem a direita ou a extrema-direita têm interesse em abrir a caixa preta do endividamento brasileiro. Ninguém quer colocar o guiso no gato. 

Hoje, o Brasil caminha a passos largos para o projeto de digitalização dos serviços públicos. Isso afasta a população mais necessitada do contato presencial com os servidores, responsáveis pela execução dos serviços prestados pelo Governo. Com o avanço da Inteligência Artificial, da automação, da robótica e das plataformas eletrônicas, serão cada vez menos servidores públicos de carne e osso na ponta da execução das políticas públicas e o atendimento direto à população.

O MARE (Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado) foi criado em 1995 para formular e implementar a política de reforma administrativa do Brasil. Idealizado pelo então ministro Bresser Pereira, sua criação, na visão do governo Fernando Henrique, representava um marco para a inserção da reforma administrativa como prioridade na agenda governamental. Tendo a marca da privatização dos serviços públicos, enfrentou a oposição frontal dos funcionários governamentais e de grande parte da população. Ambos foram ignorados.

De qualquer forma, aí se deu o ponta pé inicial no processo da reforma.
O governo Fernando Henrique Cardoso aprovou e sancionou a Emenda Constitucional19/1998. Nela identificam-se vários elementos que corroboram para a fragilização e precarização do Estado brasileiro, nos anos 90, que perduram até os dias atuais.

O denominado Estado Mínimo, idealizado por Bresser Pereira, tem como lógica e mecanismos de controle regras introduzidas pelo MARE. A partir da aprovação e sanção da Emenda Constitucional19/1998, e alteração no artigo 39, o Estado brasileiro deixou de instituir no âmbito da competência da administração pública o Regime Jurídico Único (RJU) e o Plano de Carreira dos servidores, sendo instituído o Conselho de Política de Administração e Remuneração de Pessoal.

Essa alteração foi questionada judicialmente pelos partidos políticos PT, PDT, PSB e PCdoB através da ADI 2135,julgada pelo STF no dia 6 de novembro de 2024.
Essa ADI acabou com a obrigação dos entes federados de admitirem servidores públicos pelo Regime Único Estatutário (Lei 8112/1990). Por outro lado, determinou que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselhos de política de administração e remuneração de pessoal, integrados por servidores designados pelos respectivos Poderes.

Foram fixados, na ADI, os padrões de vencimento e os demais componentes do sistema remuneratório, que deverão observar:

I – a natureza, o grau de responsabilidade e a complexidade dos cargos componentes de cada carreira;

II – os requisitos para a investidura;

III – quem são os servidores estáveis excepcionais.

Estabeleceu, ainda, como servidores públicos estáveis os admitidos sem concurso cinco anos antes da promulgação da Constituição Federal. Definiu como não estáveis aqueles admitidos sem concurso público, a partir de 5 de outubro de 1983, até o primeiro concurso no órgão de origem. Com a promulgação da Constituição, surgiu mais uma definição: os servidores públicos são estáveis efetivos, após três anos de efetivo exercício em estágio probatório, em decorrência do seu concurso público. Isso tem influência direta numa possível Reforma Administrativa. Seja ela constitucional– PEC 32, ou infraconstitucional (decretos, leis, portarias ou qualquer outro instrumento legal).

            Mais um marco importante nos pilares da precarização do Estado brasileiro foi aprovado e sancionado, no governo Itamar Franco, pela lei 8745/1993, que rege o trabalho temporário nos serviços públicos. Essa dispõe sobre a contratação por tempo determinado para atender à necessidade temporárias de excepcional interesse público, nos termos do inciso IX do art. 37 da Constituição Federal, e dá outras providências. Entretanto, sofreu algumas atualizações para pior.

 Em 1999, a lei 9848 incluiu no artigo 20, inciso III da lei 8745/1993, além da realização dos recenseamentos por serviços contratados por tempo determinado, serviços referentes a outras pesquisas de natureza estatística efetuados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Isso possibilitou uma manobra política/jurídica, aumentando a força de trabalho temporária no Instituto, em detrimento dos servidores concursados no Regime Jurídico Único. Os efeitos são visíveis atualmente, na forma de uma trajetória de crescimento desses servidores temporários.

Podemos observar o cenário de precarização da força de trabalho no IBGE no gráfico abaixo.


Leia também A captura do estado brasileiro pelo rentismo (1).

* Jornalista e economista, doutor em Engenharia da Produção pela UFRJ.

** Diretor da ASSIBGE-SN/Coordenador do Núcleo Sindical Canabarro/Coordenador da Auditoria Cidadã da Dívida Núcleo RJ.

Publicado originalmente na Tribuna da Imprensa online (tribuna.com.br).

Foto de capa: Reprodução

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Respostas de 2

  1. É um belo roteiro que explica como um uspiano, FHC, agiu para a destruição da estrutura estatal construída pelo Getúlio. Foi o tardio revide a Revolução de 1930, revide que se tentou na contrarrevolução de 1932 e não conseguiu.

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