A captura do estado brasileiro pelo rentismo (3)

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Por J. CARLOS DE ASSIS* e PAULO LINDESAY*

No início da década de 1990, no governo Collor de Melo, iniciou-se o programa de privatização do parque estatal brasileiro. O discurso dos presidentes Fernandos, Collor e Fernando Henrique, debaixo de forte pressão do governo norte-americano, era que “precisávamos privatizar as estatais para pagar a Dívida Pública”. 
Assim, grande parte do patrimônio público brasileiro foi privatizada. Contudo, o estoque da Dívida Pública Federal e dos Estados não diminuiu. Pelo contrário, seguiu uma trajetória de crescimento.

Além disso, não houve, no período, qualquer melhoria na qualidade de vida da população brasileira e investimentos novos substantivos na infraestrutura econômica desde o governo Fernando Henrique. Ficou caracterizado que a Dívida Pública, sem qualquer contrapartida de investimentos na economia, serviu apenas para garantir lucros crescentes e vitalícios ao grande capital financeiro rentista e às grandes corporações que o manipulam.

Em outubro de 1994, Fernando Henrique surfou na onda da aprovação do Plano Real, que traria uma tremenda perda de renda para os trabalhadores.   Ele havia passado um período nos EUA e, ao assumir a presidência em janeiro de 1995, um de seus primeiros atos foi enviar ao Congresso Nacional projetos de emendas constitucionais alterando o capítulo da Ordem Econômica em cinco itens:

  1. Igualou empresa estrangeira a empresa nacional, abrindo o subsolo às multinacionais.
  2. Quebrou o monopólio da “navegação de cabotagem”, abrindo os rios brasileiros às embarcações estrangeiras para escoar as riquezas do País; e vendeu a Vale do Rio Doce pelo valor pífio de R$ 3,3 bilhões, sendo que já no fim do primeiro ano após a privatização o lucro da empresa chegou a quase R$ 10 bilhões.
  3. Quebrou o monopólio das Telecom e vendeu a Telebrás por R$ 13 bilhões, após gastar R$ 20 bilhões para saneá-la. Além disso, extinguiu o Centro de Pesquisa das Telecomunicações – CPQD.
  4. Quebrou o monopólio do gás canalizado. A Shell comprou a Comgás, maior distribuidora de gás do país.
  5.  Tirou a Petrobras da condição de operadora única do monopólio estatal do petróleo da União, através da Emenda Constitucional n0 9/1995.

O governo Bolsonaro, com o ministro da Economia, Paulo Guedes, utilizou o mesmo discurso de Collor e FHC: era preciso “privatizar para pagar a Dívida Pública”. Entretanto, o estoque da Dívida Pública Federal não parava de crescer. Em janeiro de 2019, era cerca de R$ 5,302 trilhões, ou 75,4% do PIB. Ao final do mandato de Bolsonaro, chegou a cerca de R$ 7,224 trilhões, ou 71,7% do PIB corrente. Entre 2019 e 2022, apesar da redução dívida/PIB, o estoque da Dívida Bruta do Governo Geral cresceu aproximadamente R$ 1,922 trilhão. Mas não parou aí.

Nas tabelas especiais das Estatísticas do Bacen, vê-se que, no governo Lula, em dezembro de 2024, o estoque da Dívida Bruta do Governo Geral chegou a cerca de.
R$ 8,984 trilhões, ou 76,1% do PIB. Um crescimento de cerca de R$ 1,727 trilhão entre 2023 e 2024. Em pouco mais de 72 meses, os governos Bolsonaro e Lula fizeram o estoque da DBGG aumentar cerca de R$ 3,682 trilhões.

Apesar da redução do estoque da Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) em relação ao PIB, em janeiro de R$ 8,939 trilhões ou 75,3%. Não pagamos juros da dívida com PIB, mas em relação ao custo anual da dívida pública em relação à DBGG. Os dados do Banco Central do Brasil apontam que, em 2024, o governo federal sofreu uma sangria no seu fundo público federal, cerca de R$ 950 bilhões, a título de juros consolidados do setor público. Como podemos observar, não dá para comemorar a redução da dívida em relação ao PIB, com uma sangria de quase um trilhão de reais em juros.

Em novembro de 1995, ainda no Governo Fernando Henrique, havia sido aprovado e implementado o Proer, ou Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional, amplamente incentivado e subsidiado pelo governo federal. O programa, voltado para o setor privado, permitiu ao Banco Central a utilização de recursos públicos (como depósitos compulsórios) para organizar e garantir a aquisição ou fusão de bancos e outras instituições financeiras em dificuldades.

Para os bancos públicos estaduais, criou-se o Proes (Programa de Incentivos à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária), também visando a sua fusão com grandes bancos privados. Os custos correspondentes, inicialmente assumidos pelo Governo federal, foram finalmente repassados aos governos dos respectivos estados mediante transferências de seus passivos com financiamento federal, a um custo, na época, de R$ 400 bilhões para os estados.

Essas duas iniciativas, Proer e Proes, constituíram o passo definitivo para a concentração bancária comercial no Sudeste do País, representada por três grandes bancos privados (Bradesco, Itaú e Santander, este estrangeiro), e dois públicos (Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal).  De fora ficaram apenas bancos de desenvolvimento regionais e bancos privados sem maior expressão, o que deixou as demais regiões sem uma estrutura bancária comercial própria, que pudesse facilitar o acesso presencial da clientela regional.

Na década de 90, Fernando Henrique havia aprovado a chamada lei Kandir, que se tornaria um dos principais pilares econômicos de seu governo. Consistia em fomentar o aumento das exportações brasileiras mediante benefícios às grandes empresas exportadoras de produtos primários e semielaborados, com imunidade de ICMS, a partir da aprovação da Lei Complementar n0 87/1996. Com compromisso de restituir as perdas das receitas de ICMS, por meio das transferências obrigatórias do Tesouro Nacional. Transferências essas que, ao longo dos anos, foram insatisfatórias aos Estados e seus Municípios.

Como se tratava de um tributo estadual, o governo se comprometeu, por lei, a repassar aos estados os valores correspondentes ao imposto. Assim, entre 1999 e 2018, as empresas deixaram de pagar aos estados, a título de imunização de ICMS, cerca de R$ 637 bilhões. Entretanto, nesse período, a União lhes repassou, através das transferências obrigatórias consolidadas, ridículos R$ 45 bilhões, de acordo com dados oficiais do Tesouro Nacional. Se deflacionarmos esses valores pelo IPCA/IBGE entre junho de 2018 e dezembro de 2024, chega-se a mais de R$ 907 bilhões.

Em maio de 2020, o plenário do STF, surpreendentemente, homologou um acordo de compensação entre os Estados e a União relativo às perdas de arrecadação decorrentes das isenções do ICMS pela lei Kandir.   Pelo acerto, a União deverá repassar a estados e municípios, em parcelas anuais, somente R$ 65 bilhões, em 17 anos (2020 a 2037). Quando se considera a dívida total atualizada de R$ 907 bilhões, esse valor é ridículo. Isso não é acordo, mas lesa a Pátria.

De fato, o infame acordo homologado pelo STF ficou longe de reconhecer todos os créditos dos entes federativos junto à União por conta da lei Kandir. Sob pressão do governo Bolsonaro, os estados que o assinaram tiveram de renunciar a qualquer demanda judicial posterior relativa a eles. Diante disso, o então presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, articulou um projeto de lei para pagamento das dívidas estaduais, tornando devedores os estados que, em essência, eram credores do governo. Mas ninguém protestou.

Com a revogação do Art. 91 do ADCT e sem anulação dos efeitos da Lei Kandir, os Estados e Municípios continuarão a amargar prejuízos ainda maiores por não haver mais sequer a previsão de compensação por parte da União das perdas de receitas de ICMS, já que continuará sendo dada imunidade de ICMS às empresas exportadoras de produtos primários e semielaborados. Os grandes empresários do agro, do setor da mineração, do setor energético etc. são os maiores beneficiários desse processo.   Os Estados, os grandes perdedores!

Também beneficiou a maior dessas grandes empresas exportadoras a lei n0 11.371/2006, que flexibilizou a exigência de cobertura cambial nas exportações, passando o Conselho Monetário Nacional (CMN) a deter competência para estabelecer o percentual dos recursos de exportação que pode ser mantido no exterior. Naquele ano, o CMN estabeleceu o percentual de 30% como limite. Em 2008, ele foi elevado para 100%. Com essa flexibilidade, na prática, parte das reservas externas brasileiras está privatizada!

Em 2003, dois importantes pilares em benefício do grande capital financeiro rentista e das grandes corporações privadas, contra interesses nacionais, foram aprovados. O primeiro foi a Emenda Constitucional 40.   Ela acabou com as amarras constitucionais do sistema financeiro nacional, revogando todo o conteúdo do artigo 192 da Constituição, e mantendo somente o preâmbulo do artigo que limitava, no Brasil, juros reais acima de 12% a.a., após aprovação de uma lei complementar.

A segunda foi a Emenda Constitucional 41, a reforma da Previdência Social do governo Lula. Ela acabou com a paridade e integralidade nas remunerações e benefícios (aposentadoria e pensão) dos servidores públicos federais. A partir desse período, esses servidores, admitidos por concursos públicos, aposentaram-se com a média aritmética simples das 80 maiores remunerações. Além disso, a emenda impôs contribuições previdenciárias aos aposentados e pensionistas com benefícios acima do teto do INSS. Hoje, após o aumento do salário-mínimo, de R$ 8.157,41

Os ataques ao Regime de Previdência Própria Social (RPPS) dos servidores públicos federais não se resumiram a isso. Em 2012, a então presidente Dilma Rousseff, sob o argumento de déficit previdenciário, aprovou a lei n0 12.618, instituindo a Previdência Complementar para os servidores (as) públicos admitidos a partir de 2012. Trata-se de um regime com contribuição solidária, até o teto do INSS. Acima desse valor, a contribuição previdenciária passa a ser individual, com valor definido e benefício incerto, que dependerá do resultado das aplicações financeiras do patrimônio do FRUNPRESP no mercado financeiro, em favor do mercado.

O patrimônio desse fundo, administrado pelos bancos, acumulou até fevereiro de 2025 cerca de R$ 11,600 bilhões, totalmente investido mercado financeiro, principalmente em títulos da Dívida Pública Federal.   Para piorar, o governo Bolsonaro possibilitou que qualquer servidor público federal, admitido antes de 2013, pudesse aderir à Previdência Complementar. Alguns desavisados, aderiram a essa armadilha. Em fevereiro de 2025, o número total de participantes é 115.600 servidores (as), concursados ou não.

Outra armadilha armada para os servidores públicos federais do RPPS, de acordo com lideranças sindicais dos funcionários, foi a migração do RPPS para se aposentar pelo RGPS, recebendo uma média de benefícios reajustada pelo IPCA, mas sem paridade e integralidade nas carreiras. Havendo as reestruturações das carreiras públicas federais, esses servidores serão excluídos.

No Boletim de Estatística de Pessoal, vê-se que a quantidade de servidores públicos federais, em fevereiro de 2025, caiu para 1.216.481, sendo 572.362 servidores ativos do RJU (Regime Jurídico Único). Desse total, cerca de 115.600, ou 20,20%, estão sob regime previdenciário híbrido (FRUNPRRESP).   Até o teto do INSS, como já mencionado, a contribuição é solidária. Acima disso, passa a ser individual, pela previdência complementar.  Essa tende ao crescimento, em função dos próximos concursos públicos.

Fonte:  Painel de Estatística de Pessoal – PEL


Há 412.539servidores aposentados e 231.580pensionistas. Isso significa que haverá problemas atuariais no Regime Próprio de Previdência Social, como citado na Emenda Constitucional n0 103/2019 do Governo Bolsonaro. Consequentemente, poderá haver problemas nos pagamentos dos benefícios do RPPS. É que, com a redução do fundo previdenciário próprio, quem vai financiar as atuais e futuras aposentadorias e pensões?

Entre 2019 e fevereiro de 2024, em pouco mais de 74 meses, o Poder Executivo Federal perdeu cerca de 57.103 servidores (as) públicos. Tem possibilidade de incorporar mais de 68.045 servidores (as) ao quadro de aposentados, nos próximos anos, por se encontrarem em Abono de Permanência. Além disso, perderá funcionários por conta do avanço tecnológico com o governo digital, a inteligência artificial e as plataformas eletrônicas, abrindo caminho para as contratações de servidores temporários para funções permanentes do Estado.

Sem considerar o julgamento do STF da ADI 2135, que desobrigou os entes federativos (União, Estados e Municípios) a admitirem, mesmo por concursos públicos, servidores públicos pela lei n0 8112/1990. O atual Regime Jurídico Único (RJU). Além da possível aprovação da PEC 32, a reforma administrativa constitucional, proposta pelo governo Bolsonaro, que foi aprovada na comissão especial e poderá ser levada a votação ao plenário do Congresso Nacional.

Não parou aí, o governo federal estuda uma proposta de reforma administrativa infraconstitucional, por várias medidas infralegais. Inclusive, uma comissão do MGI e CGU está estudando o decreto-lei n0 200/1967. A primeira reforma administrativa do governo militar, para apresentar em 2025, um projeto de reforma administrativa infraconstitucional. O que poderá retornar ao Estado loteado das décadas de 70, 80 e 90. Abrindo espaço para criações e contratações pelas fundações públicas de direito privado.

Com isso, tende a aumentar a precarização na administração pública federal, especialmente no atendimento direto ao cidadão comum, com o que o Estado retornará à condição de espaço público loteado das décadas de 60 a 90 do século passado, cuja gestão fica distribuída entre vários atores públicos e privados. Com isso, apresenta-se como mero subsidiário (financiador) de políticas públicas e projetos sociais executados pela iniciativa privada lucrativa.

A presidenta Dilma Rousseff, em 2015, aprovou a lei n0 13.135, alterando o recebimento do benefício de pensão dos servidores públicos federais que tinha caráter vitalício, independentemente da idade dos beneficiários. O direito à percepção de cada cota individual cessará diante de várias condições. Uma delas, se o óbito ocorrer sem que o segurado tenha vertido 18 contribuições mensais, ou o casamento ou a união estável tiverem sido iniciados em menos de dois anos antes do óbito do segurado.

A partir dessas alterações, o governo colocou alguns parâmetros para o recebimento do benefício da pensão. Segundo o IBGE, as mulheres tendem a viver mais que os homens no Brasil.  Sua expectativa de vida é maior devido a uma combinação de fatores biológicos, sociais e comportamentais.  Em 2023, a expectativa de vida era de 79,7 anos, enquanto a dos homens era de 73,1 anos.  O IBGE projeta que essa diferença diminuirá até 2070, quando a expectativa de vida das mulheres será de 86,1 anos e a dos homens de 81,7 anos.

Diante disso, a maior parte das pensões será paga às mulheres.   Assim, nos intervalos colocados na lei n0 13.135/2015, aos 43 anos a pensionista receberá o benefício de pensão por 20 anos. Isso significa afirmar que, aos 63 anos, essa pensão cessará. Como uma pensionista, com idade avançada, poderá conseguir uma colocação no mercado de trabalho? Apenas as pensionistas, com idade acima de 44 anos, inclusive, terão direito à pensão vitalícia.

Outra iniciativa importante em direção à precarização dos serviços públicos, mas com efeitos para a sociedade em geral, foi a aprovação, no governo Temer, da Emenda Constitucional 95/2016 – Denominada Emenda do Teto de Gasto, ou PEC do fim do mundo, conforme passou a ser chamada pelos seus críticos. Ela limita o crescimento das despesas primárias do orçamento federal à atualização pelo IPCA do ano anterior.

É de se destacar que, entre 2015 e 2016, o PIB do Brasil caiu quase 8%. Portanto, foi sob a égide das despesas primárias rebaixadas que começou a ser aplicada a emenda do fim do mundo. Mas, como já visto, não há nenhuma limitação aos gastos financeiros para pagamento do serviço da dívida pública federal. Estão garantidos o privilégio de pagamento e a sustentabilidade da dívida, constitucionalmente (Art. 166, parágrafo 3, inciso II, alínea “b”).

As restrições ao orçamento primário, em face da meta fiscal prevista no “arcabouço” de déficit de no máximo 0,25% do PIB, têm implicado cortes recorrentes nas despesas sociais e investimentos de infraestrutura do Estado, a fim de que sejam enquadrados nos limites legalmente incontroláveis do serviço da dívida, em favor especialmente do capital financeiro especulativo.

É também em seu favor que, mediante uma engenharia na gestão do orçamento primário, o governo limita o gasto efetivo para sobrar mais recursos para o pagamento da Dívida Pública. Essa engenharia consiste em liquidar valores orçamentários, mas não os executar em sua totalidade, a fim de que o superávit possa ser aplicado no pagamento da amortização da Dívida, conforme garantido pela lei 11.943/2009 – Art. 13.

Em 2019, Bolsonaro foi eleito, e com ele viabilizou-se uma reforma da Previdência Social tentada, mas não realizada, por Michel Temer. A reforma trouxe vários prejuízos para a classe trabalhadora, principalmente aos servidores públicos nas três esferas de governo. Houve mudança nas idades das aposentadorias, alteração no recebimento do benefício de pensão (limitada a 50% da remuneração pelo instituidor da pensão), etc.

Pelas alterações dos artigos 40 e 149 da Constituição Federal, avançou o projeto de precarização e ataques aos servidores públicos e ao Regime Próprio de Previdência Social. Criou-se o regime de previdência complementar para servidores públicos ocupantes de cargo efetivo, observado o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social para o valor das aposentadorias e das pensões em regime próprio de previdência social.

Aqui, com a simples introdução do verbo instituirão, a Previdência Complementar deixa de ser uma opção dos entes federados e passa a ser uma obrigação. O Abono de Permanência fica limitado até a contribuição previdenciária, deixando de ser a contribuição previdenciária integral para ser um valor até, no máximo, igual à contribuição integral. Tudo isso será definido por lei dos respectivos entes federativos.

Fica revogado da Constituição Federal o parágrafo 21 do artigo 40, que garantia o direito à isenção da contribuição previdenciária aos aposentados com deficiência, até dois tetos do INSS. Isso levou alguns servidores públicos nessa condição a contribuírem para a Previdência Social até o teto do INSS. E vedou a existência de novos regimes próprios de previdência social, criando requisitos para sua extinção e migração para o Regime Geral de Previdência Social.

O governo Bolsonaro, prevendo o déficit atuarial no Regime Próprio de Previdência Social dos Servidores Públicos, realizou alterações no artigo 149 da Constituição Federal. No parágrafo 10, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, por meio de lei, contribuições para custeio de regime próprio de Previdência Social, cobradas dos servidores ativos, dos aposentados e dos pensionistas, que poderão ter alíquotas progressivas de acordo com o valor da base de contribuição ou dos proventos de aposentadoria e de pensões.

Não parou aí. No parágrafo 10-A, prevê-se que, quando houver déficit atuarial, a contribuição ordinária dos aposentados e pensionistas poderá incidir sobre o valor dos proventos de aposentadoria e de pensões que supere o salário-mínimo. No parágrafo 10-B, persistindo o déficit atuarial, para equacioná-lo é facultada a instituição de contribuição extraordinária no âmbito da União por parte de servidores públicos ativos, aposentados e pensionistas.

Persistindo ainda assim o déficit atuarial, será assinado, simultaneamente com outras medidas, um verdadeiro cheque em branco na Constituição Federal, com risco enorme para o Fundo Próprio de Previdência Social dos servidores. De fato, observa-se que a criação da Previdência Complementar (FRUNPRESP) e a Reforma da Previdência Social de Bolsonaro pavimentaram o caminho para a destruição do Regime Próprio de Previdência Social e do Regime Geral da Previdência Social.  Criou-se total incerteza para as futuras aposentadorias da Previdência Complementar dos servidores federais, já que 100% do patrimônio da fundação, de cerca de R$ 11,600 bilhões, como dito acima, está aplicado sob a tutela do mercado e das grandes corporações.

A Emenda Constitucional 126/2023 autorizou que uma lei complementar pudesse instituir o Novo Arcabouço Fiscal. Seu pilar central é a sustentabilidade da dívida pública, e não garantir investimentos em políticas públicas ou em investimentos diretos na infraestrutura do Estado. Para manter a sustentabilidade da Dívida Pública, o governo precisa desidratar o orçamento primário da União. Dessa forma, sobrará mais dinheiro para sustentar os lucros crescentes e vitalícios do grande capital financeiro rentista e das grandes corporações.

A Medida Provisória 1286/24 traz reajustes salariais de 2025 e 2026 para 38 categorias de servidores públicos federais. Não é simplesmente um aumento de remuneração. É, de fato, uma reestruturação de carreiras e uma parte da reforma administrativa infraconstitucional, sendo mais uma etapa da transformação do Estado, segundo a ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, que apresentou numa live as linhas gerais da medida provisória. Após a sanção e publicação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), no dia 30 de dezembro, o governo Lula, no dia seguinte, editou a Medida Provisória que garantirá a retroatividade do reajuste a janeiro de 2025.

Pode-se concluir que os efeitos do “arcabouço legal” aprovado ao longo das décadas pelos governos de plantão no Palácio do Planalto são tão nefastos aos serviços públicos e aos servidores quanto à maioria da população brasileira. Não se pode deslocá-los do “arcabouço legal” aprovado pela reforma administrativa constitucional proposta pelo governo Bolsonaro, PEC 32, e nem das alterações infraconstitucionais, pautadas pelo governo Lula.

São processos encadeados, com um único objetivo: mediante o esmagamento do orçamento primário e a degradação do serviço público, garantir, pelo estrangulamento contínuo das despesas e investimentos governamentais de interesse para a população, lucros crescentes e vitalícios ao grande capital financeiro rentista e às grandes corporações transnacionais e nacionais, a partir da sua principal ferramenta – a dívida pública.


Leia também A captura do estado brasileiro pelo rentismo (2).

* Jornalista e economista, doutor em Engenharia da Produção pela UFRJ.

** Diretor da ASSIBGE-SN/Coordenador do Núcleo Sindical Canabarro/Coordenador da Auditoria Cidadã da Dívida Núcleo RJ.

Publicado originalmente na Tribuna da Imprensa online (tribuna.com.br).

Foto de capa: Andrii Yalanskyi/GettyImages

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Uma resposta

  1. Em relação ao crescimento dívida pública do governo federal, há um outro agravante que é a atual política monetária e a falta de sincronia desta com a política fiscal. Observamos a escalada da taxa SELIC e sua aproximação dos índices observados nos piores momentos do Governo Dilma. Não acredito que a política monetária dê conta de reduzir a atual pressão inflacionaria. Mas creio que se não houver uma busca de sincronia entre a política monetária e fiscal, o custa da dívida e seu estoque poderão se tornar insustentáveis.

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