Por JORGE BARCELLOS*
No dia 25 de setembro estreou na Globoplay o documentário Chico Anysio: Um homem à procura de um personagem. Dirigido e escrito por Bruno Mazzeo, filho do humorista, a obra mergulha na vida, carreira e trajetória do humorista e seus personagens. Três dias antes, no dia 22, a Câmara Municipal de Porto Alegre retomou a discussão sobre o projeto de lei 671/23, que propõe a instalação de câmeras nas salas de aula das escolas municipais, aprovando-o no último dia 1º.
A proximidade das datas só pode ser coisa do destino. Vi o documentário e gostei bastante. Vi a lei e confesso que tenho minhas dúvidas. Alerta de spoiler: ao final do documentário, descobri que o processo de modernização da Rede Globo foi o responsável pela entrada em depressão de um notável artista, como também pela extinção de um de seus mais importantes programas, a Escolinha do Professor Raimundo. A necessidade de renovação, associada a um novo tipo de gestão, extinguiu um programa de sucesso. Pior, fez mal às pessoas que faziam parte dele, como o próprio Chico Anísio. Temo que esse seja o mesmo destino da adoção de câmeras em nossas salas de aula: elas têm o notável objetivo de modernizá-las, garantir a segurança da comunidade escolar, mas temo que seus efeitos possam levar a um futuro triste e desolador. Espero estar errado.
Representações da escola na literatura
A lição vem da literatura e da televisão. A escola é uma das mais importantes instituições da educação, objeto de políticas públicas importantes, mas também é cenário de produtos da cultura brasileira. Elas primeiro repercutiram na literatura (disponível em https://abre.ai/nH8s ): de “O Ateneu”, de Raul Pompeia, transformando-o num clássico por narrar a vida escolar de Sérgio, um jovem aluno do Ateneu, uma escola só para meninos à “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, que registra as lembranças escolares da infância de Leonardo nas escolas do Rio de Janeiro do século XIX, num tom crítico, até chegar a “Minha Vida de Menina”, de Helena Morley, baseado no diário real de uma jovem em Diamantina, Minas Gerais, no final do século XIX, tudo se passa em relação a escolas. O próprio clássico “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, reflete sobre a importância da educação para transformar o mundo em um lugar ausente dela.
Acostumamos a ver a escola tratada pela literatura, mas a inovação da Escolinha do Professor Raimundo foi trazê-la para as telas da televisão. Em realidade, o formato da Escolinha veio do rádio e o primeiro programa nele foi a “Escolinha da Dona Olinda”, transmitida pela Rádio Record nos anos 30. A Escolinha do Professor Raimundo veio depois, em 1952, criada por Haroldo Barbosa, na Rádio Mayrink Veiga, onde Chico Anysio interpretava o professor, então base das piadas de apenas três alunos, que o documentário sobre Chico Anysio registra. Só depois, com o advento da televisão, o programa assumiu a versão televisiva que conhecemos. Primeiro em forma de esquete que foi ao ar na TV Rio, exibida dentro do famoso programa Noites Cariocas, passando após, para a TV Excelsior e Tupi, chegando à Globo em 1973, na forma de esquete dentro do Chico City até conquistar um programa próprio. É interessante como o documentário registra esses momentos, já que descobrimos que Chico Anísio sai da TV Excelsior antes de ela ser fechada pelos militares, e na Globo, vemos o humorista estabelecer uma notável relação crítica com eles, por meio de seu personagem Salomé, a Viúva de Taubaté.
A escola na televisão: Escolinha do Professor Raimundo
Na origem, Chico Anísio teve a ideia da escolinha e chamou Cassiano Filho, Paulo Ghelli e Cininha de Paula como diretores, esta última, entrevistada no documentário. O primeiro episódio oficial do programa como o conhecemos foi ao ar em 4 de agosto de 1990, gravado nos estúdios da extinta TV Tupi, nos estúdios Tycon (atual Casablanca Estúdios). Ia ao ar aos sábados e eu me lembro de ver a escola e achá-la engraçada desde minha adolescência. O programa passou por muitos horários: passou para os sábados, quartas, voltou ao sábado e foi para os domingos, reunindo quase 40 atores. Com isso, o programa foi se desgastando, saindo do ar em 1995, substituído por Malhação, voltando como quadro no Zorra Total e sua última temporada foi em 2001. As entrevistas acompanham a trajetória de Chico Anísio e sua luta pela preservação da escolinha, sua forma de garantir o sustento dos atores, ao mesmo tempo em que mostram que, nos novos tempos neoliberais de produtividade e lucro máximo, não havia mais lugar na grade da emissora para um dos pais fundadores da televisão brasileira.
O sucesso da fórmula está no fato de que outras emissoras imitaram o formato, como a Escolinha do Barulho, exibida na RecordTV entre 1999 e 2001, a Escolinha do Gugu, que foi ao ar também na RecordTV entre 2011 e 2013, a Escolinha do Golias, que foi ao ar no SBT nos anos 90, e o remake do canal Viva de 2015, em que Bruno Mazzeo, o diretor do documentário, interpreta o pai. Mas foi o caso da Escolinha do Professor Raimundo original na televisão que me deu o estalo para esse artigo. Lembro do programa e olho o projeto de lei aprovado e penso que é quase como se o autor quisesse voltar no tempo a uma Escolinha do Professor Raimundo, que era, como produto de televisão, gravada com câmeras. O problema é que isso era o real, da indústria, não era o simbólico, da dramaturgia. No simbólico, como nas escolas reais, Chico Anísio sabia que a escola é baseada em relações de confiança e conversação. Quando eu a assistia, como aluno, eu reconhecia situações que, se hoje fogem ao politicamente correto, na época produziam a identificação que foi importante para a formação do profissional que vim a ser. Eu também sabia que, como no programa, dar aulas era estabelecer uma relação de confiança, base para a boa conversação, fundamentais no programa e na vida real. Voltarei adiante a este ponto.
Ao longo de minha vida estudantil, vi isso acontecer: quando o meu professor de geografia do cursinho me deu uma “sacudida” com suas mãos para que estudasse mais e eu o fiz, isso me ajudou a passar no vestibular; quando o professor de metodologia na universidade insistiu gritando “escreva mais!”, isso me ajudou a ser o pesquisador que sou hoje. Eu, como professor, segui esse receituário: é preciso conquistar a confiança dos alunos, é preciso saber, é preciso não desistir do aluno, mas principalmente é preciso reconhecer o Outro. É por isso que, nos últimos anos, via com tristeza salas de aula com alunos conquistados pelo bolsonarismo em sua caçada a professores de esquerda com as câmeras de seus celulares. Eu espero estar errado, mas agora anuncia-se o início de uma era em que direções com a mesma mentalidade poderão fazer o mesmo, já que as aulas podem ter seu áudio gravado e diretores ou administradores terão recursos para reprimir e perseguir professores por motivos ideológicos. É o retorno do macartismo? É sério isso, gente? Tem alguém aqui contra ensinar alunos pobres que são explorados pelo capital, que têm o direito de lutar por um mundo melhor, sem desigualdade, por melhores remunerações, por uma educação crítica, ao contrário do pregado pela precarização ou isso virou luxo pedagógico destinado aos mais ricos?
Nesse universo vigilante neoliberal da escola, ações como esta não passam de cerceamento da liberdade de cátedra, é intimidação, e eu vi o exercício desse poder nos meus últimos anos de visita às escolas, onde muitos professores críticos temiam por seu futuro. É preciso que todos saibam que há limites tanto no ato de ensinar quanto no ato de supervisionar o que um professor ensina, porque seu ultrapassamento só é possível por acordos inter pares. Todos aqueles que ultrapassaram, à época de minha formação, algum limite que hoje seria impensável foram porque, de alguma forma, o concedi por essa intimidade e confiança, e seus gestos foram fundamentais para ir adiante. Não vejo os alunos e professores de hoje autorizando a inserção de câmeras em sua sala de aula. Políticos podem estar imbuídos das melhores intenções quando fazem leis dessa natureza, mas talvez não percebam os problemas que podem criar na cultura escolar quando o fazem.
A escola como organização cultural
A Escolinha do Professor Raimundo era sem câmeras, como entendo que deveriam ser todas as escolas. Eu posso estar errado e o vereador, correto, pois a segurança também é uma necessidade. Mas será esta a melhor forma de fazê-lo? É verdade que a escola da televisão é uma reconstrução da escola real, é uma simplificação, é claro, que transforma o processo pedagógico no interior da Escolinha reduzido a uma sucessão de acertos e erros por parte dos alunos. Ainda que a Escolinha do Professor Raimundo seja um espetáculo televisivo, Luciana Cristina Porfírio, em As narrativas escolares pelas lentes da cultura da mídia: o humor como um campo de representação (disponível em https://abre.ai/nH8x ), mostra que, ainda assim, nesse programa vemos a representação da escola e o tipo de relação aluno-professor que se estabelece como ideal em uma época. Se no cinema americano vemos salas de aula sempre como histórias de professores tidos como bons porque salvadores de estudantes vistos como desajustados e marginalizados sociais numa narrativa que apresenta uma sequência desordem-ordem” (p. 89), no rádio dos anos 30 vemos a escola no interior do debate sobre a missão do veículo “dentro do tema erudição versus entretenimento e diversão, criticado por intelectuais, principalmente escritores ligados à imprensa e à cultura impressa que viam-no como um veículo imediatista e loquaz, sem a nobreza e a perenidade da palavra impressa”.
Nesse sentido, outros programas que antecederam a escolinha, como “Cenas Escolares”, “Escolinha da Dona Olinda” e “Escolinha Risonha e Franca”, deram a base para os programas televisivos em que o foco está nas representações de alunos desejados conforme seu sucesso e fracasso no processo de ensino. É o caso da Escolinha do Professor Raimundo. Em que pese um processo de ensino questionável, ali a escola é vista sempre como um lugar de socialização e encontro dos personagens: “a incorporação de valores como afetos, tolerância, amizade, atitudes, enfim, uma série de crenças assimiladas inconscientemente ao longo da vida e fora dela, numa típica narrativa que tenta mostrar, nas entrelinhas, que se vive e se aprende a liberdade e a igualdade social dentro do pequeno grupo escolar.” Era o que acontecia na Escolinha do Professor Raimundo. Ali não havia ensino de massa; cada personagem era único e era tratado como único pelo professor. Cada aluno tinha uma relação com o professor, que era espontânea e de confiança. Num mundo como esse, não são possíveis câmeras, pois elas iriam inibir a espontaneidade e abalar a confiança. Como se poderiam permitir as liberdades que a relação aluno-professor autoriza se as câmeras as inibem? É só olhar os personagens da escolinha.
Alunos inesquecíveis precisam de espaços livres
Seu Sandoval Quaresma, interpretado porBrandão Filho, era o aluno que começava a responder corretamente as perguntas do professor Raimundo, mas geralmente na última pergunta “e surja o bordão da piada “pô, tava indo tão bem”. Bertholdo Brecha, nome criado em referência ao escritor Berthot Brech, interpretado por Márcio Tupinanbá, transforma em aluno um personagem do ator, o Deputado Baiano, que tinha como bordão “Venha!” servindo de escada para a piada que finalizava Chico.
Samuel Blaustein, interpretado por Marcos Plonka, era dono do bordão “fazemos qualquer negócio”, baseado no estereótipo do judeu que só pensa em lucro, enquanto dona Cândida, personagem de Stela Farias,interagia com o professor com piadas de duplo sentido, mas que, ao final, encontrava uma maneira de relacioná-la à situação nacional. Lúcio Mauro interpretava Valdemar Vigário, paraense que trazia histórias do professor para melhorar a nota em sala de aula. Aqui, professor e aluno constroem juntos um diálogo, e talvez seja um dos momentos em que o artifício que todos os alunos assumem, o de ser escada para Chico Anísio, se rompe. A sala de aula é um lugar de encontro, fazem-se piadas, produzem-se e compartilham-se emoções e segredos que, para existir, precisam da confiança entre pares. É isso que as câmaras eliminam: a privacidade do espaço em comum.
O documentário assinala o quanto a Escolinha do Professor Raimundo era representativa da escola brasileira. E o próprio Chico Anísio assinalava que isso era mérito dos excelentes atores que dispunha. Vemos no documentário que ele mesmo se envolveu com seus atores, como o professor que se envolve e busca resolver os problemas de seus alunos além do dever, procurando manter o salário de cada um sempre ao longo do programa, pois sentia-se responsável, ajudando-os de alguma forma, sacrificando-se por eles…como um professor! Mesmo quando o programa perdeu índices de audiência que levaram a ser retirado da grade de programação, Chico Anísio dizia que preferia o retorno do público na rua do que as pesquisas do Ibope. No documentário, perguntado por Marília Gabriela numa entrevista se seus personagens auxiliavam na conscientização do público, dizia que sim, pois o que fazia era o retrato do que era o país, o mostrava, o encenava. “Não é minha responsabilidade resolver os problemas, mas mostrá-los para que as autoridades assumam sua responsabilidade.” Daí o bordão “É o salário, ó”, é aquele que retrata ao mesmo tempo a importância e a desvalorização do professor.
Rituais escolares não sobrevivem as câmeras
O problema não é somente da quebra da confiança que os instrumentos de vigilância fazem, argumento central dos educadores que questionam as câmeras nas escolas. Existe um argumento a mais, que os próprios educadores não consideram: as câmeras corroem os próprios rituais em que a experiência de sala de aula se baseia. Peter McLaren, em Rituais na Escola (Vozes, 1992), afirma que a escola não é um conjunto apenas de atores e processos de ensino: é um espaço de rituais que moldam relações de poder, a cultura e a identidade dentro da escola. Para o autor, a sala de aula é um espaço ou lugar onde rituais simbólicos são praticados e que reforçam as relações de hegemonia ou resistência. Eles envolvem gestos, símbolos e performances, produzem atores – exatamente como a escola do professor Raimundo retrata – mas também as formas de subverter as próprias arbitrariedades que se produzem no contexto de confiança do espaço escolar, onde se constrói e desafia a igualdade entre alunos e professores. Numa sala com câmeras, um terceiro sujeito é introduzido em seu interior, o que rompe o campo ritual: os alunos e professores não sabem quem os observa e nem as regras que ele elegeu para observação; não dialogam com esse terceiro sujeito que intervém, e nem têm possibilidade de refletir sobre as interações que ele deseja promover. Não há pontes entre esse terceiro olho e a cultura e saberes produzidos na sala de aula. Entretanto, os rituais da sala de aula são fundamentais para a manutenção da escola tradicional, pois garantem que todos conhecem e respeitam hierarquias, ideologias, ao mesmo tempo em que contestam as práticas autoritárias. Quando uma câmera é introduzida numa sala de aula, ela intervém autoritariamente em sua organização. É por isso que há inúmeros exemplos de resistência à sua implantação. É uma medida que não vê a escola como ela é, um espaço sociocultural complexo, mas apenas como espaço de ensino para exercício do poder. Por isso, ao serem introduzidos na escola, eles alteram a rotina escolar.
Peter McLaren usa exemplos específicos para ilustrar rituais escolares que incluem práticas cotidianas e simbólicas vivenciadas pelos alunos e professores, seja o desafio às regras da escola que certas brincadeiras realizam, mostrando, de forma sutil, que os estudantes também reconhecem ou se opõem a determinadas normas, impulsionando novas formas de troca e negociação, mostrando como os rituais podem funcionar como formas culturais de resistência e negociação da autoridade. As câmaras interferem nesses rituais estabelecidos porque interferem naquilo que McLaren chama de ‘estado de estudante’, os comportamentos esperados dos alunos. As câmeras reforçam a obediência, quietude e conformidade, reiterando uma determinada hierarquia de sala de aula que não admite contestação ou conversação. É um reforço do controle disciplinar, que, entretanto, não funciona apenas para os alunos, mas também para os professores. Ao serem introduzidos em sala de aula, as câmeras desequilibram a ambiguidade sobre a qual se baseiam os rituais escolares, como meio de reprodução da autoridade e sua contestação.
Não se espiona o processo de ensino
Um exemplo é o que McLaren chama de “palhaço de sala de aula”, o aluno gozador, pois é o aluno que afeta diretamente uma sala de aula pela crítica que produz em seu professor: “[O] palhaço de sala de aula banaliza as transações de ensino e, deste modo, demonstra a arbitrariedade dos axiomas culturais sagrados e dos produtos endeusados que mantém o universo simbólico da sala de aula.” Eles forçam o professor a rever seus métodos “possuidor de um zelo desproporcionado de “ser uma besta”, o palhaço de classe simbolicamente desfaz ou retrata os que os rituais de ensino se esforçam por constituir — o “estado de estudante” e seus concomitantes de coisificação da ordem cultural; na verdade, ele tacitamente des-coisifica a ordem cultural. O palhaço serve para atenuar o enraizamento da realidade da sala de aula.” (McLaren, 1992: pp. 221s) Ao olho vigilante da câmara, é um sujeito fora do comportamento esperado, fora da ordem e precisa ser reprimido. No campo dos rituais escolares, não, porque ele tem significado no contexto. No filme Sociedade dos Poetas Mortos (Dir. Peter Weir, 1989), o professor John Keating é espionado por sua metodologia heterodoxa que produz inspiração nos alunos, que começam a incomodar a administração da escola. O que perturba a direção é exatamente ele inspirar os alunos a pensarem por si mesmos, valorizando a si próprios. Espero estar errado: a monitorização das aulas não é exatamente transformar as câmeras em novos espiões? Eu espero que não, mas entendo que elas dão um poder importante a administradores, podem ser usadas como forma de controlar o modo como os professores dão aulas. É o contrário da posição de John Keating ou do Professor Raimundo: eles precisam de liberdade para fazerem seu ensino ser o que é, um sucesso. As câmeras tiram.
Por interferirem na cultura escolar, a instalação de câmeras tem sido objeto de recusa por estudantes em todo o país. Em uma escola em São Paulo (disponível em https://abre.ai/nHX1), 107 estudantes foram suspensos após protestarem contra a instalação de câmeras dentro das salas. O que aconteceu? Os alunos não foram previamente avisados e se sentiram assustados com os equipamentos, o que provocou uma manifestação no recreio de repercussão nacional. O debate na comunidade considerou o uso das câmeras como invasão à privacidade e produtora de constrangimento aos alunos, com manifestações da Ordem dos Advogados do Brasil para possíveis penalidades legais para a direção da escola. Em São José dos Campos (disponível em https://abre.ai/nHX7), a instalação de câmeras até nos banheiros (voltadas para os lavatórios) para evitar depredações e bullying gerou reclamação de uma mãe que solicitou a retirada dos equipamentos, gerando novas dúvidas quanto à privacidade dos alunos. Por essa razão, a medida tem sido criticada por educadores, já que a escola pressupõe ser um espaço em que a naturalidade e liberdade de alunos sejam preservadas, ao contrário do que fomentam as câmaras, que inibem expressões autênticas de opiniões, da emoção e minam a autoridade do professor.
Por quê? Porque elas aumentam a sensação de que a escola é algo que ela não é: uma prisão. Ela gera um clima de desconfiança porque suscita a percepção de que todos são tratados como suspeitos, dificultando o diálogo e transformando a escola em algo voltado para o controle, não para a aprendizagem. Inclusive, segundo alguns psicólogos, pode fomentar o comportamento paranoico devido à hipervigilância das câmaras, afetando seu desenvolvimento. Por essa razão, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC, disponível em https://abre.ai/nHYa) julgou inconstitucional uma lei municipal que obrigava a instalação de câmaras em todas as áreas das escolas públicas, inclusive nas salas de aula e dos professores, atendendo à solicitação do Ministério Público, que argumentou que a medida restringia direitos fundamentais. O tribunal considerou que a instalação dentro das salas de aula impõe uma restrição sensível à liberdade de cátedra, intimidade e imagem, tornando-se uma norma desproporcional, aceitando, entretanto, a instalação de câmeras em áreas comuns, mas não dentro das salas, por afetar direitos fundamentais ligados à educação.
Reações contra câmeras
Em Porto Alegre, o Sindicato dos Professores (disponível em https://abre.ai/nHYi) já ajuizou ação civil pública contra a instalação de câmeras dentro das salas de aula de uma escola privada, alegando que o monitoramento restringia as liberdades essenciais dos professores, ainda citando o uso das imagens para fins disciplinares e pressões no ambiente de trabalho. A escola alegou que o objetivo era segurança e que as imagens não eram usadas em tempo real. A juíza acolheu a ação, destacando que a prática afrontava direitos constitucionais dos docentes e estudantes, assim como orientações dos conselhos de educação para não usar câmeras internamente nas escolas, mas foi voto vencido. O debate continua.
A dificuldade está em encontrar um meio termo aceitável para a medida. Enquanto a fundamentação das decisões contrárias se fundamenta na tese da violação dos direitos fundamentais, especialmente da liberdade de ensinar e aprender, privacidade, direito à imagem e intimidade de alunos e professores, a ideia central é que ela é vista como prejudicial à relação pedagógica baseada na espontaneidade. É também vista como prejudicial à liberdade de cátedra, já que a vigilância constante afeta a naturalidade do professor e pode significar cerceamento a metodologias e conteúdos, constituindo abuso de poder no direito do trabalho. A fundamentação também se encontra na falta de justificativas concretas e proporcionais, já que o monitoramento constante na sala de aula é algo sensível, ainda que, visando à proteção coletiva, nos espaços de liberdade de campo da decisão da autoridade.
Por isso, as decisões que permitiram a instalação de câmeras defendem a autonomia administrativa das instituições na determinação de medidas de segurança, mas é preciso lembrar que isso depende da autorização prévia dos pais, alunos e professores, além de um regulamento claro de seu uso. O argumento da prevenção ao bullying tem sido utilizado para justificar a instalação das câmeras, evitar violência e vandalismo, ainda que, em se tratando de um espaço ritual, essas situações possam ocorrer fora dos espaços escolares. Onde ficam os limites entre liberdade e disciplina na sua instalação? É um tema difícil para educadores, legisladores e autoridades. Entendo que, em ambas as posições, o legislador deve considerar a importância de seguir uma fundamentação rigorosa para atender não apenas ao disposto na Constituição, como ao Código de Processo Civil. Não se pode criar leis baseadas na “onda” segurativista, nem em fundamentos genéricos de necessidade de segurança. O comentarista Paulo Germano, do Jornal do Almoço da última quinta-feira, apontou a questão: “Há situações numa determinada escola que assim o exijam?” É preciso perguntar se a comunidade escolar está de acordo e, por isso, o judiciário tende a analisar caso a caso, exatamente na linha de McLaren, em que cada escola é uma cultura.
Mais reflexão, mais reflexão!
A discussão precisa ir mais devagar. É preciso refletir sobre os motivos que levaram outros países a serem contrários à instalação de câmeras em sala de aula. Por exemplo, a China, notória por seu autoritarismo, tem debatido intensamente sua instalação e argumentado justamente na defesa da privacidade, da ética educacional e da liberdade acadêmica. As escolas chinesas que instalaram câmeras para transmissão ao vivo receberam críticas pelo mesmo argumento, que considera a vigilância constante uma violação dos direitos dos estudantes e uma ameaça à liberdade no ambiente escolar, o que resultou na sua interrupção por muitas escolas. É o mesmo debate nos Estados Unidos e no Reino Unido, países que já instalaram câmeras em muitas escolas, que agora se veem diante de preocupações e debates sobre o impacto da vigilância na privacidade dos estudantes e professores. Hoje questiona-se no Reino Unido as câmeras corporais em professores para processos disciplinares, o que tem sido usado como argumento da crítica à extrema vigilância. Seriam as câmeras de nossas salas de aula a primeira etapa da sua instalação futura nos corpos dos professores, como já acontece com policiais? Não seria essa a visão de futuro também de Shoshana Zuboff, em A Era do Capitalismo de Vigilância (Intrínseca, 2020)? Que passo é esse que estamos dando em nossas escolas?
Em certo sentido, esse debate recoloca, sob novo formato, a discussão sobre a existência de celulares em sala de aula. Eles também são criticados pela invasão da privacidade e pelo impacto nas relações entre alunos e professores. Foram criticados, inclusive, como instrumento da extrema direita em acusar professores críticos em escolas durante o bolsonarismo. A partir daí, inúmeras leis contra o seu uso foram desenvolvidas em países como França, Espanha, Grécia, Finlândia, Holanda, Itália, Suíça, México, Estados Unidos, Canadá e Portugal, entre outros. Nesses países, há proibição total ou parcial do celular na escola e em sala de aula, especialmente para evitar distrações e promover melhor aprendizado. Entendo que as legislações proibindo celulares em sala de aula têm sido maiores do que as que permitem, na minha observação, o que aponta uma tendência de evolução do problema.
No âmbito federal, ainda não há uma legislação específica regulamentando a instalação de câmeras em salas de aula, mas está em análise no Congresso o Projeto de Lei 5343/2019, que trata de monitoramento em ambientes escolares, com restrições, como a exclusão de banheiros do monitoramento permanente e limitações no armazenamento das imagens por até 90 dias. Entretanto, foi publicada em janeiro de 2025 a Lei nº 15.100, que proíbe o uso de aparelhos celulares em sala de aula para fins de proteção à saúde mental e psíquica das crianças. Seria esse o caminho para a legislação sobre câmeras nas salas de aula? Ainda que seja competência do legislador legislar sobre assuntos locais, o campo educacional tem-se revelado reticente à sua interferência, porque outras normas impactam esse tema, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante o respeito à inviolabilidade da imagem, identidade, autonomia e dignidade das crianças e adolescentes (Artigo 17), e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que regula a coleta, armazenamento e compartilhamento de dados pessoais. Além disso, há órgãos específicos, como o Conselho Municipal de Educação, que já se manifestaram contrários a sua instalação desde 2013, pela Indicação 008/2013 (disponível em https://abre.ai/nIms ). Se o Conselho é contra, por que insistir?
Não é confiança, é conversação!
Por essa razão, é preciso pesquisar mais. Um estudo feito com 208 professores da rede pública do Espírito Santo (disponível em https://abre.ai/nHY2) mostrou que a vigilância via câmeras tem efeitos tanto positivos quanto negativos sobre o desempenho, sendo que os aspectos positivos aumentam a satisfação no trabalho, enquanto os negativos reduzem o desempenho docente. Essa mesma pesquisa aponta que a sensação de estar sendo monitorado pode causar tensão e insegurança, que comprometem a agilidade e a qualidade do trabalho do professor em sala de aula. Assim, o uso de câmeras demanda um equilíbrio cuidadoso para não prejudicar o ambiente pedagógico e profissional.
Talvez por isso o exemplo da Escolinha do Professor Raimundo seja importante. Ele mostra que, antes de um espaço de ensino, a sala de aula é um espaço de conversação. Eu me lembro de que já passei na sala de aula pela situação de um daqueles personagens de Chico Anísio que tem dificuldades de expressar o que pensa e o que sente. Eu me lembro que eu era assim, tímido para me expressar, tinha muita dificuldade de escrever, só superando minha vergonha pelo empenho de meus professores. Sei que, se tivesse câmeras, seria pior. Na sala de aula, a expressão de conhecimentos e de sentimentos tem sua importância. Está superada a ideia de que o professor ensina e o aluno aprende, a chamada educação bancária de que fala Paulo Freire. A educação é, em primeiro lugar, dialógica, realizada num espaço em que alunos e professores conversam sem ninguém espiando. Numa sala de aula com câmeras, isso fica mais difícil. Quem consegue realmente dizer o que pensa quando está sendo vigiado?
Para Theodore Zeldin, em Conversação: como um bom papo pode mudar a sua vida (Record, 2001), as inovações tecnológicas sempre afetam o modo como conversamos. E, às vezes, para pior. Primeiro foi o celular, que, quando levado para o interior da sala de aula, provocou transtornos de toda a ordem, como distração dos alunos, captação de imagens ilegais, etc. Ainda que alguns professores tenham tentado incorporá-lo como ferramenta de ensino, a maioria afirma que a experiência de ensino acontece fora das telas, e não nelas. Pior, já há aqueles que afirmam que as tecnologias funcionam ao contrário do processo pedagógico, colaborando para o “emburrecimento” dos alunos. Tanto Nicholas Carr em A Geração Superficial – O que a Internet está fazendo com os nossos cérebros (Agir, 2010), quanto Mark Bauerlein em A Geração Mais Burra (Tarcher, 2008) são unânimes em afirmar que as tecnologias que os alunos usam nos aplicativos os tornam mais ignorantes, o que secretamente parece dizer que, no fundo, nossos alunos desejam apenas conversar. Mas eles fazem parte de um conjunto de tecnologias de opressão do homem: a informática no meio do trabalho e o uso de câmeras não se tratam de facilitadores; eles também são um mecanismo de exercício de controle e poder.
Nada disso acontece na sala de aula do professor Raimundo, por quê? Por que ali não há câmeras. Os alunos são livres para interagir com o professor. Na minha opinião, as câmeras em sala de aula não são a solução para os problemas de segurança de sala de aula, mas para os das empresas de tecnologia de segurança, que assim passam a vender mais. O setor de segurança eletrônica também possui uma área dedicada às escolas, que abrange tecnologias como câmeras de vigilância, softwares de gerenciamento de vídeo, controle de acesso e sistemas integrados, e movimenta bilhões de reais anualmente. É importante para ela que instituições educacionais públicas demandem soluções de segurança para proteção de alunos, professores e funcionários. Como um todo, essa indústria já faturou no país 14 bilhões nesse ano no Brasil. Agora vai faturar mais. Empresas do Grupo Intersept, especializadas em segurança para escolas, o Grupo Souza Lima, que atua em Porto Alegre, e tantas outras são candidatas a lucros nesse sentido.
Entendo que é preciso dar um passo atrás. Temos problemas de segurança? Com certeza. Na Escolinha do Professor Raimundo, nova geração, há cenas em que Zé Bonitinho aparece acompanhado por seguranças da escola. Era assim na escolinha. Podia ser assim nas nossas escolas. Entendo que não precisamos de câmeras mas de mais seguranças nas escolas, servidores aprovados em concurso e qualificados para isso. Não há câmeras na Escolinha do Professor Raimundo porque ela tem guardas. Talvez eles tenham mais sucesso do que câmeras em sua função.
Publicado originalmente Sler.
*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524
Foto de capa: Reprodução: Prefeitura de Sobral. Fonte: https://abre.ai/nIjW





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