A Armadilha de Renda Média Brasileira e a Força de Retomar a Industrialização

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Por LUIZ CÉSAR SILVA*

O problema estrutural da chamada “armadilha da renda média” é uma situação em que economias que alcançaram um nível intermediário de renda não conseguem avançar para o grupo de países de alta renda. O pressuposto básico, para que uma economia continue se desenvolvendo, é necessário transformar a estrutura produtiva, migrando de atividades baseadas em recursos naturais e mão de obra barata para setores mais intensivos em conhecimento e tecnologia (salários elevados). A dificuldade em realizar essa transição constitui o cerne da armadilha da renda média. Nesse cenário, a função da indústria é central, pois ela atua como o principal elo entre os elos produtivos de diversos setores da economia (o que chamamos em economia de efeito spillover-transbordamento). Quando os países conseguem transformar sua estrutura industrial em direção a produtos sofisticados (complexidade económica, bens high-tech) de maior valor agregado monetariamente, a armadilha é superada; caso contrário, ocorre a desindustrialização prematura, fenômeno observado no Brasil e em outras economias latino-americanas, durante a adoção do neoliberalismo.

O debate sobre a armadilha associa ao problema a baixa capacidade de inovação, a pouca absorção de tecnologias avançadas e a elevada desigualdade social. Nesses países, o crescimento econômico inicial é impulsionado por fatores como o aumento da mão de obra urbana e a acumulação de capital, mas essa dinâmica se esgota quando a produtividade não cresce e o setor industrial não se diversifica produtivamente. Superar essa fase exige investimento em educação, infraestrutura, pesquisa e inovação, além de um ambiente institucional sólido e estável. Ou seja, o Estado deve assumir a função decisória como indutor do desenvolvimento, criando condições para que o setor privado inove. No processo histórico, as grandes transformações tecnológicas do século XX foram, em grande parte, financiadas por políticas públicas e investimentos estatais em pesquisa, o que demonstra a importância de um Estado empreendedor e estrategista.

A partir dos anos 2000, observa-se em diversas economias o retorno do debate sobre a política industrial, especialmente após a crise de 2008, quando ficou claro que o mercado, sozinho, não seria capaz de sustentar o crescimento de longo prazo. Entretanto, não existe um modelo universal de política industrial, pois cada país tem uma trajetória institucional, social, cultural e produtiva própria. O que se faz necessário é um ambiente institucional que legitime e sustente as políticas industriais, evitando a simples reprodução de modelos importados. O estudo e a adaptação às condições locais são, portanto, essenciais para o sucesso de qualquer iniciativa.

Ao tratar do caso brasileiro, após um período de crescimento robusto, impulsionado pela industrialização entre as décadas de 1930 e 1980, o Brasil passou a experimentar estagnação e desindustrialização precoce. A pauta de exportações brasileira manteve-se, entre 1995 e 2020, concentrada em commodities agrícolas e minerais, enquanto a participação dos produtos manufaturados de média e alta tecnologia declinou. Essa concentração reforça a dependência de setores de baixa produtividade e reduz a complexidade econômica do país. O nível de sofisticação produtiva de um país está diretamente relacionado à sua renda per capita e à sua capacidade de crescimento. No caso brasileiro, a perda de complexidade evidencia a regressão industrial e tecnológica, dificultando a ascensão na “escada da renda”.

A desindustrialização prematura no Brasil é resultado de uma série de fatores interligados: valorização cambial decorrente da exportação de commodities, perda de competitividade da indústria nacional, déficit crescente na balança de manufaturados e migração da mão de obra barata para setores de serviços de baixa produtividade (baixos salários). Esse processo compromete a geração de renda e impede o avanço tecnológico e do desenvolvimento econômico. Em contraste, países que escaparam da armadilha, como Coreia do Sul, Irlanda, Israel e Singapura e China combinaram políticas públicas de longo prazo, investimentos expressivos em pesquisa e desenvolvimento e forte coordenação entre Estado, universidades e setor privado. Essas nações conseguiram, por meio de políticas industriais consistentes, construir setores de alta tecnologia e tornar suas economias mais diversificadas produtivamente.

Neste contexto, as políticas públicas exerceram uma função fundamental como instrumentos de superação da armadilha da renda média. Um conjunto de ações e incentivos influenciam a alocação de recursos, o comportamento das empresas e o desempenho de setores estratégicos, principalmente, pensando no longo prazo. A finalidade dessas políticas foi acelerar as transformações na estrutura produtiva, corrigir distorções de mercado e fomentar a inovação produtiva. As políticas industriais não se limitam ao setor produtivo propriamente dito, pois abrangem a economia como um todo, influenciando também áreas como o comércio, a infraestrutura e a educação. Dessa forma, devem ser concebidas como políticas de Estado – e não apenas de governo – orientadas por objetivos de longo prazo e sustentadas por mecanismos permanentes de monitoramento, avaliação e aperfeiçoamento

Na prática, as políticas industriais implementadas no Brasil entre 2003 e 2014 implementaram o grande marco (PITCE), lançado em 2004 durante o governo Lula. Essa política buscou fortalecer a competitividade da indústria brasileira, priorizando setores intensivos em tecnologia e conhecimento, como software, semicondutores e biotecnologia. A PITCE introduziu um arcabouço institucional, com a criação da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI), além de leis importantes como a Lei da Inovação, a Lei de Informática e a Lei da Biossegurança. Essas iniciativas consolidaram uma base para a promoção da inovação e para a integração entre universidades, institutos de pesquisa e empresas.

No segundo governo Lula (2008), foi lançada a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), com o objetivo de sustentar o ciclo de crescimento econômico e ampliar os investimentos. A PDP estabeleceu metas ambiciosas para o aumento da taxa de investimento, da participação brasileira nas exportações mundiais e dos gastos privados em pesquisa e desenvolvimento. Também pretendia expandir o número de micro e pequenas empresas exportadoras. A crise financeira internacional de 2008, entretanto, comprometeu a execução das metas e reduziu a capacidade de investimento público e privado. Ainda assim, a PDP marcou a consolidação do BNDES como principal agente de financiamento da política industrial e fortaleceu o diálogo entre Estado e setor produtivo.

Em 2011, já sob o governo Dilma Rousseff, foi lançado o Plano Brasil Maior (PBM), com o lema “Inovar para competir, competir para crescer”. O plano visava aumentar o investimento fixo, ampliar os gastos em P&D, fortalecer cadeias produtivas estratégicas e diversificar as exportações. O PBM combinava medidas horizontais e verticais, incluindo incentivos fiscais, desonerações tributárias e apoio à inovação tecnológica. Apesar dos avanços institucionais, o plano enfrentou dificuldades na execução e não conseguiu reverter a tendência de reprimarização da pauta exportadora. A concentração de crédito subsidiado em grandes conglomerados industriais e a ausência de mecanismos de contrapartida tornaram-se alvos de críticas, alimentando a percepção de que o Estado escolhia “campeões nacionais” sem critérios técnicos. Essa situação evidenciou a fragilidade institucional do país, marcada pela captura de políticas públicas por interesses privados e pela falta de coordenação e monitoramento eficientes.

O Brasil dispõe de instrumentos e experiências importantes, mas carece de uma estrutura metodológica e institucional capaz de articular as políticas de forma sistêmica e adaptativa. Para superar esse desafio, a adoção de uma metodologia denominada “Mapeamento por Matriz” é importante. Essa abordagem busca integrar a visão macroeconômica e setorial, mapeando os desafios, oportunidades e interdependências de cada segmento industrial. A matriz considera variáveis como tipo de tecnologia, grau de inovação, prazos de implantação, impacto esperado e nível de encadeamento produtivo. Além disso, incorpora a análise do ambiente institucional em quatro dimensões: infraestrutura de ciência e tecnologia, arcabouço regulatório, instrumentos de financiamento e mecanismos de governança. Essa metodologia permitiria formular diagnósticos mais precisos, orientar a alocação de recursos e facilitar o acompanhamento das políticas.

A aplicação do Mapeamento por Matriz possibilitaria ao país a direcionar melhor suas políticas industriais e tecnológicas, identificando os setores com maior potencial de sofisticação e os entraves que dificultam sua expansão. A transformação industrial contemporânea exige interdisciplinaridade e coordenação entre áreas antes separadas, como manufatura e pesquisa científica.

Em síntese, a saída do Brasil da armadilha da renda média depende de uma  transformação estrutural e institucional. É necessário que o país deixe de ser uma economia imitadora, baseada em commodities e importação de tecnologias, e se torne uma economia inovadora, com capacidade de produzir conhecimento e tecnologia próprios. Essa transição requer políticas públicas consistentes, um ambiente institucional sólido e a consolidação de uma cultura de planejamento de longo prazo. Entretanto, o contexto brasileiro é desafiador: o baixo dinamismo econômico, os juros elevados e as fragilidades institucionais dificultam a implementação de políticas duradouras. Ainda assim, apenas uma ação estatal coordenada, persistente e inovadora poderá remover a “pedra no meio do caminho” que impede o Brasil de retomar sua trajetória de industrialização e alcançar níveis mais elevados de renda e desenvolvimento.


*luiz césar silva é pós-doutorando em Economia pela Universidade do Porto; Doutor em Administração Pública pela Universidade do Minho (Portugal), Mestre em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro – Escola de Governo – FJP, Especialista em Controladoria e Finanças pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e Economista pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP. É Professor de Administração e Gestão Pública no Instituto Politécnico de Bragança, Escola de Administração Pública, Comunicação e Turismo de Mirandela (EsACT-IPB). Lecionou no Departamento de Relações Internacionais e Administração Pública da Universidade do Minho. Atualmente, é membro do Comitê Científico da revista “Public Administration Research: Canadian Centre for Science and Education”.

Foto de capa: IA

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