A Constituição Satírica da República Rentista Brasileira

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Nota: aprovada em assembleia solene no plenário da B3, sob aplausos entusiásticos dos credores da dívida pública.

Preâmbulo: Nós, representantes do Mercado Financeiro, em nome da Ordem, do Superávit e da Santa Confiança dos Investidores, promulgamos a presente Constituição da República Rentista do Brasil, destinada a assegurar privilégios eternos aos detentores de juros, dividendos e títulos da dívida pública, perpetuando a austeridade como religião oficial do Estado.

Título I – Dos Princípios Fundamentais

Art. 1º – A República Rentista do Brasil constitui-se em Estado Neoliberal de Direito, fundamentado na inviolabilidade do capital, na sacralidade da indexação e na liberdade de isenção fiscal para os mais ricos.

Art. 2º – Todo poder emana dos rentistas, e em seu nome será exercido.

Art. 3º – Os objetivos fundamentais da República Rentista são:

I – garantir a remuneração do capital acima da inflação;

II – promover cortes permanentes de gastos sociais;

III – criminalizar qualquer tentativa de tributação progressiva;

IV – assegurar a hegemonia editorial da grande imprensa.

Título II – Dos Direitos e Garantias Rentistas

Art. 4º – São direitos inalienáveis dos rentistas:

I – isenção eterna de impostos sobre lucros, dividendos e rendimentos de juros;

II – correção monetária automática e compulsória;

III – socorro estatal em caso de crise, denominado “ajuste emergencial”;

IV – editoriais diários defendendo sua honra contra adversários heterodoxos.

Art. 5º – Nenhum corte incidirá sobre os privilégios rentistas. Todo ajuste será compensado por redução de investimentos públicos em saúde, educação e infraestrutura.

Título III – Da Organização dos Poderes

Art. 6º – São Poderes da República Rentista:

  1. o Poder Monetário, exercido pelo Banco Central independente;
  2. o Poder Midiático, exercido pela Grande Imprensa;
  3. o Poder Fiscal, exercido pelo Ministério da Fazenda sob consultoria de ex-alunos de Chicago.

Parágrafo único – Não há Poder Legislativo, pois O Mercado já legisla em tempo real via relatórios e boletins.

Título IV – Da Ordem Econômica

Art. 7º – A ordem econômica funda-se na supremacia do superávit primário e na vedação de qualquer política industrial capaz de reduzir a dependência externa.

Art. 8º – O trabalho será sempre secundário diante do capital, devendo ajustar-se à “realidade” por meio da precarização contínua.

Art. 9º – O capital estrangeiro gozará sempre de tratamento privilegiado, pois “traz confiança e know-how”.

Título V – Das Disposições Finais e Transitórias (Eternas)

Art. 10º – Fica estabelecido: toda crítica heterodoxa será considerada atentado contra a fé rentista e punida com linchamento editorial.

Art. 11º – Esta Constituição só poderá ser alterada mediante referendo convocado pela Faria Lima, com aprovação mínima de 2/3 de O Mercado.

Art. 12º – Em caso de dúvida, prevalecerá sempre a seguinte máxima: “cortar gastos para salvar os encargos com juros, manter isenções para preservar a confiança, e rezar diariamente pelo Tripé Macroeconômico. Amém.”

Dela surgiu uma “Declaração dos Direitos do Rentista”, como se fosse o catecismo oficial dessa Constituição.

Declaração dos Direitos do Rentista (proclamada solenemente na Praça da Bolsa de Valores, sob chuva de dividendos e aplausos da grande imprensa)

Preâmbulo

Os representantes iluminados da República Rentista, reunidos em assembleia solene de acionistas majoritários, reconhecem e proclamam a ignorância, o desprezo e a ousadia de propor tributação progressiva serem as únicas causas das crises de confiança de O Mercado.

Com isso, declaram os direitos sagrados, inalienáveis e perpétuos do Rentista Cidadão.

Artigo I: Todo rentista nasce livre de impostos e permanece isento até o fim de seus dias.

Artigo II: O fim de toda associação política é a preservação dos privilégios do capital, garantindo aos rentistas: juros reais, dividendos líquidos e editoriais favoráveis.

Artigo III: A soberania reside essencialmente em O Mercado; nenhum indivíduo, povo ou governo pode exercer autoridade sem emanar diretamente dele.

Artigo IV: A liberdade consiste no direito de ver o Estado cortar gastos sociais em benefício da tranquilidade dos credores.

Artigo V: A lei é expressão exclusiva da vontade rentista. Só o capital tem voz para determinar limites de déficit, teto de gastos e índices de correção monetária.

Artigo VI: Todos os homens são iguais perante os boletins do Banco Central, caso possuam títulos da dívida pública remunerados pela correção monetária e cupom.

Artigo VII: O direito de propriedade sobre juros compostos é inviolável e sagrado. Qualquer tentativa de taxá-los será considerada “confisco socialista”.

Artigo VIII: Os pobres têm direito a se sacrificar pelo equilíbrio fiscal. Esse é seu papel constitucional.

Artigo IX: Nenhum rentista poderá ser perturbado em suas crenças, restritas à fé no tripé macroeconômico e sua Santíssima Trindade do superávit primário-câmbio valorizado-meta inflacionária irrealista.

Artigo X: A imprensa é livre para criticar governos gastadores com os pobres, caso mantenha silêncio reverente sobre privilégios fiscais dos credores.

Artigo XI: A dívida pública é a verdadeira pátria do rentista. Servi-la com juros altos é dever de todos; questioná-la, jamais.

Para festejar a aprovação da Constituição da República Rentista do Brasil saiu uma passeata da B3, com a Ladainha do Superávit entoada em procissão solene da grande imprensa, com velas em forma de gráficos de linha e hinos à “confiança de O Mercado”.

Sacrossanto Mercado, ouvi-nos.

Juros isentos, protegei-nos.

Lucros e dividendos intocáveis, iluminai-nos.

— Que jamais se cogite taxar os santos rendimentos dos rentistas,

O mercado exige e nós obedecemos.

— Que todo corte recaia sobre saúde, educação e políticas sociais,

O déficit é pecado, mas o privilégio é virtude.

— Que o povo aceite resignado pagar impostos indiretos em cada pão, gás e feijão,

Pois tributar dividendos seria heresia.

— Que a correção monetária siga firme como muralha dos bem-nascidos,

Porque a culpa é sempre do gasto público.

— Que o colunista econômico aprenda a rezar a cartilha do tripé,

Sem dar voz aos profetas heterodoxos.

— Que Efe-Agá-Cê, Santo Malan e São Armínio sejam canonizados como doutores da austeridade,

E A Professora seja lembrada apenas como bruxa da inflação.

E todos, em uníssono, repetem:

“Cortar gastos para salvar os juros, privatizar para proteger dividendos, e silenciar qualquer ideia de justiça tributária. Amém.”


*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Foto de capa:  Reprodução

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Respostas de 2

  1. Comecei rindo 😀
    Acabei chorando 😭
    Mas a verdade é que é realmente tragicômico o palco em que desfilam esses atores/adoradores de O Mercado e sua cosmovisão rentista-neoliberal, tão pobre de espírito

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