Por MARIA LUIZA FALCÃO SILVA*
O Sul Global está diante da mais decisiva encruzilhada desde a descolonização.
O Espírito de Bandung: A Primeira Rebelião do Sul
Em abril de 1955, na cidade indonésia de Bandung, 29 países asiáticos e africanos recém-independentes decidiram que não aceitariam mais uma ordem global definida por quem os havia colonizado, espoliado e submetido a séculos de violência. Liderados por Nehru, Nasser, Sukarno, Zhou Enlai e Tito, aqueles países ousaram formular uma agenda internacional autônoma, com princípios de soberania, não ingerência e cooperação entre povos.
Esse movimento deu origem ao Movimento dos Não-Alinhados e ao G77, que foi durante décadas a maior expressão diplomática da luta por um multilateralismo real.
A Persistência das Estruturas de Dominação
O mundo de 2025 confirma que o colonialismo formal acabou, mas a lógica colonial não. Conflitos fabricados, guerras sustentadas, sanções unilaterais, confisco de ativos soberanos e intervenções militares continuam a ser instrumentos de dominação.
A retórica norte-americana da “ordem internacional baseada em regras” subsiste apenas quando conveniente aos interesses de Washington. Quando não convém, as regras evaporam, substituídas por violência, pressão diplomática e manipulação de organismos multilaterais.
China e Índia: O Novo Eixo do Poder Mundial
O desaparecimento da URSS e a ascensão simultânea de China e Índia constituem a maior transformação geopolítica desde a Segunda Guerra Mundial. Ambas deixaram de ser potências emergentes para se tornarem polos de poder. A China tece redes de infraestrutura capazes de moldar o século XXI; a Índia afirma sua autonomia estratégica com vigor diplomático crescente.
Essas duas nações, que em 1955 buscavam reconhecimento e desenvolvimento, hoje são alicerces de uma nova arquitetura internacional. Seu protagonismo dentro do BRICS altera o equilíbrio global e exige que outros países do Sul — entre eles o Brasil — se posicionem com firmeza.
A Sombra de Trump sobre o Sul Global
Nenhum país tem hoje impacto tão corrosivo sobre a governança internacional quanto os Estados Unidos sob Donald Trump. O retorno de Trump à Casa Branca em 2025 reacendeu práticas que lembram os piores momentos da Guerra Fria — só que agora ampliadas por um desprezo absoluto pelas normas diplomáticas.
Trump retoma ataques à África do Sul, comportamento já exibido em seu primeiro mandato, quando se referiu de forma abertamente racista a países africanos. Em 2025, após encontro com o presidente Zelenski na Casa Branca, Trump tentou humilhar Cyril Ramaphosa no Salão Oval, insinuando que a África do Sul seria um país “instável, corrupto e racista contra descendentes de ingleses”.
Além de ofensiva, a declaração é uma mentira histórica grotesca: os africâneres não são descendentes de ingleses, mas sim de colonizadores neerlandeses, franceses e alemães, que sustentaram o regime do apartheid durante décadas. Trump distorce deliberadamente essa realidade para inflamar setores supremacistas nos Estados UUnidos (EUA) e fragilizar lideranças africanas que se recusam a se alinhar a Washington.
A hostilidade não se limita à África. Após fracassar em cooptar governos progressistas latino-americanos, Trump voltou a ameaçar intervenções, como a pressão militar recente sobre a Venezuela e insinuar ações contra o Brasil, em linha com a retórica irresponsável dos filhos do ex-presidente Jair Bolsonaro, hoje condenado a 27 anos e três esses de cadeia por tentativa de golpe de Estado. Na prática, Trump vê a América Latina como quintal geopolítico — uma visão anacrônica que contradiz toda a lógica multipolar do século XXI.
Suas políticas ampliam a desigualdade global, agravam conflitos e tornam o mundo mais instável. Trump é o anti-Bandung: unilateralista, agressivo, negacionista e empenhado em ressuscitar uma ordem imperial que já não existe.
A África do Sul e a Hora da Virada
Nada disso ocorre por acaso. O G20 em Johanesburgo, que ocorrerá nos dias 22 e 23 de novembro, será um palco onde Trump tenta medir forças com países que não reconhecem sua autoridade moral. Cyril Ramaphosa, líder experiente, empresário bem-sucedido e herdeiro político de Mandela, tem resistido às pressões e mantém o foco na agenda real do continente: desigualdade, clima, tecnologia e soberania.
Esta será a primeira vez na história que a África do Sul sedia o encontro e a segunda vez que o continente africano recebe uma cúpula do G20 (a primeira foi em 2023, na Índia, com ampla participação africana, mas não sediada pela África).
A África do Sul, país mais desigual do planeta segundo o Banco Mundial, escolheu fazer do combate às desigualdades o eixo central da cúpula. E encontrou apoio inesperado: centenas de economistas de renome mundial, incluindo Joseph Stiglitz Janet Yellen, lançaram uma carta conclamando a criação de um Painel Internacional sobre Desigualdade, inspirado no IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, em português).
O mundo enfrenta uma emergência de desigualdade tão grave quanto a emergência climática.
O relatório conduzido por Stiglitz revela números devastadores:
- entre 2000 e 2024, o 1% mais rico capturou 41% de toda a nova riqueza global,
- 2,3 bilhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar,
- a desigualdade extrema ameaça a própria democracia.
E é profundamente simbólico que seja justamente a África — epicentro da brutal desigualdade herdada do colonialismo — quem lidere a discussão global sobre o tema.
Brasil, COP-30 e a Nova Arquitetura do Desenvolvimento
Em paralelo, o Brasil vive um momento de protagonismo internacional raro: preside o BRICS, organiza a COP-30 em Belém, lidera debates sobre reformas na Organização das Nações Unidas (ONU) e atua como ponte entre diferentes regiões do Sul Global. Lula assumiu o papel que o mundo parecia não ter mais: o de articulador civilizatório.
A COP-30 será o contraponto moral às políticas predatórias de Trump: clima, floresta, povos originários e justiça ambiental contra negacionismo, petróleo e militarização. O Brasil é hoje a antítese da agenda trumpista: constrói alianças multirregionais, fortalece o multilateralismo e devolve centralidade ao combate à fome e à miséria.
De Bandung a Joanesburgo: A História Volta a se abrir
O mundo que parecia órfão de lideranças, agora reencontra figuras capazes de dar direção histórica: Xi Jinping, Narendra Modi, Luiz Inácio Lula da Silva, Cyril Ramaphosa. Cada um à sua maneira encarna um polo de estabilidade e projeto — algo que o Ocidente, mergulhado em crises internas, já não consegue oferecer.
Bandung foi o primeiro sopro dessa insubordinação criativa. Johanesburgo pode ser seu renascimento — mais forte, mais amplo, mais consciente da urgência civilizatória que enfrentamos.
O grito de 1955 era pela soberania.
O grito de 2025 é pela soberania com igualdade e dignidade.
Se o século XXI tiver líderes à altura de seus desafios, será um século de multipolaridade responsável. Se prevalecerem Trump e seus imitadores, será apenas a repetição — mais violenta e mais desigual — dos piores momentos do século XX.
O destino, agora, está nas mãos do Sul.
*Maria Luiza Falcão Silva é PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (ABED). Entre outros, é autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England/USA.
Foto de capa: VCG





Respostas de 2
Excelente texto. Parabéns!
Excente reflexão, além de muito informativo. Parabéns!