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Zero Hora e a tragédia como erro técnico

Zero Hora e a tragédia como erro técnico

Artigo por RED
25/05/2024 17:00 • Atualizado em 26/05/2024 14:58
Zero Hora e a tragédia como erro técnico

De TARSO GENRO*

 

De repente uma boa parte da grande imprensa, especialmente abrigada na Zero Hora, começou a defender a tese de que seria errado discutir o que vem ocorrendo na cidade, do ponto de vista da posição política dos seus agentes públicos. As discussões devem ser sobre técnicas e gestão administrativa, alegam seus porta-vozes, sem explicar – todavia – como separar técnicas de controle climático e gestão do Estado, sem vincular esses temas às escolhas políticas dos agentes públicos. A sua visão ideológica, mais negacionista ou menos negacionista -nesta visão dos proeminentes jornalistas daquele órgão de imprensa – não tem importância para o que devemos construir no futuro. Até parece que o Prefeito da cidade não é um rematado bolsonarista-negacionista de primeira hora e que suas omissões nada tem a ver com a sua ideologia e com a dimensão da nossa tragédia.

 

A hecatombe de Porto Alegre tem revelado, não só a decadência das funções públicas do Estado provocada pela inércia e omissão deliberada de gestão dos “liberais” e negacionistas da cidade, mas também porque os resultados da tragédia serão expostos – ainda no cenário da nossa vida – de forma reiterada e previsível. A ofensiva nacional contra o poder público e contra os rituais da política democrática, contra o serviço público em particular – e até contra políticas compensatórias timidamente social-democratas – teve um momento bem marcado no ciclo democrático que começou em 88. Foi um momento simbólico e que, construído como foi, processualmente foi transformando o PSDB num partido palidamente centrista até fazê-lo um quase anexo do bolsonarismo em escala nacional.

 

Lembro-me quando o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, um intelectual renomado e um democrata comprovado disse – num momento de exaltação do seu Governo – que a “era Vargas” tinha terminado. Foi em 14 de fevereiro de 1995, por ocasião da sanção da Lei das Concessões, destinada “a separar a função regulatória e fiscalizadora, tarefa do Estado ” -disse o Presidente – “da ação do investimento e da ação da competição”. Fernando Henrique nunca foi um negacionista nem um Presidente autoritário ou mentiroso, mas ele revelava naquela solenidade uma mudança de direção dos ventos socialdemocratas no mundo, que levariam os partidos deste campo – de uma posição de “centro-esquerda” e de “centro” para a “centro-direita” ou mesmo para a direita clássica, em determinadas regiões. A mudança das funções públicas do Estado estava no centro deste movimento.

 

A vantagem da nova Lei, segundo FHC, estaria “no poder que as empresas” teriam de “explorar bens em benefício do público, lucrando com a cobrança de tarifas.” Tal Lei estava baseada na reformulação da doutrina da “importância das estatais”, que passariam a ser eliminadas para que o Estado pudesse atender “os anseios do mudo contemporâneo”. Sem entrar neste momento – na discussão dos erros e furtos cometidos nas privatizações e concessões selvagens de lá para cá – o que se pode dizer é que até o presente não se confirmou, na maioria das privatizações e concessões, a delicadeza empresarial universal de compatibilizar a exploração de bens em benefício público, com cobrança de tarifas lucrativas para as empresas, fora do controle dos consumidores. O que se viu foi uma grande capacidade das empresas privatizadas ou concedidas de aparelhar o Estado, para proteger-se da sua fiscalização e do controle a que estariam submetidas.

 

Quando se revelava este processo de aparelhamento os privatistas de todas as latitudes diziam, rapidamente, que os partidos também aparelham, o que é verdade, mas com uma diferença substancial: estes podem ser retirados do poder nas eleições seguintes e assim punidos diretamente pelos consumidores. As empresas que “compram” (ou recebem de graça) as estatais, não serão derrotadas nas eleições nem terão a sua posse ou concessões subtraídas, já transformadas numa máquina de lucros para o setor privado. Seus prepostos políticos, todavia, podem, também, mudar de partido e acompanhá-las nos próximos governos, com todas as benesses legais e ilegais que isso possibilita. É que se tem visto em escala industrial, país a fora e America Latina a dentro

 

Refiro, neste texto, a privatizações de bens e serviços que não deveriam ser regulados pelas leis mercado e deveriam estar disponíveis para todos, sob direção e controle do Estado, como são a água, saneamento, energia elétrica, serviços de saúde pública, sistemas de proteção contra desastres naturais, instituições de pesquisa, indústria militar e órgãos de polícia eco-ambientais. O mundo mudou e a força coercitiva das grandes potências, para expandir os seus negócios, tornou-se um elemento central para compreender o que ocorre em escala global e local. Cada efeito da decomposição climática e dos problemas econômicos e sociais de qualquer lugar do mundo, cidade, região ou país, não podem ser mais pensados “por fora” das grandes questões políticas do mundo.

 

Acresce-se, nos dias de hoje, uma nova consideração que deveria servir de base, tanto para compormos uma política de defesa como de soberania nacional: o panorama geoeconômico global mostra que China e EUA – as duas potências que controlam a economia política mundial – tem os mesmos interesses em relação aos países periféricos e do segundo time, no concerto mundial. Este interesse é o de fortalecerem-se – econômica e militarmente – para defenderem suas ideias de nação dominante, não a nossa ideia de nação soberana. Esta contradição na disputa pela hegemonia – entre os dois gigantes – abre um novo e exíguo espaço para o exercício da nossa soberania e da nossa construção nacional, sem nos tornarmos marginais no cenário político do mundo. Não pensar, politicamente, o que ocorre na nossa cidade neste momento é o melhor caminho para nos tornarmos, todos, perfeitos idiotas negacionistas, ultraliberais latino-americanos. Esperando não Godot, como na peça de Samuel Beckett , mas um novo Síndico para um edifício arruinado.

 

*Advogado, professor universitário, ensaísta, poeta e político brasileiro filiado ao Partido dos Trabalhadores. Foi duas vezes prefeito de Porto Alegre e ministro da Educação, das Relações Institucionais e da Justiça durante o governo Lula.

Foto: Prefeitura de Porto Alegre/Divulgação

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