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Opinião

VAROUFAKIS, A ESQUERDA SUBMISSA E O TECNOFEUDALISMO (Ou: Não, não, Elon Musk não é louco)

VAROUFAKIS, A ESQUERDA SUBMISSA E O TECNOFEUDALISMO (Ou: Não, não, Elon Musk não é louco)

Artigo por RED
13/04/2024 05:30 • Atualizado em 15/04/2024 20:19
VAROUFAKIS, A ESQUERDA SUBMISSA E O TECNOFEUDALISMO (Ou: Não, não, Elon Musk não é louco)

De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

  • Introdução: Varoufakis, candidato a gênio

Um grande e querido amigo meu costuma dizer que “gênio” é um atributo que só pode ser concedido in memoriam. D’accord. Total. É bom não consagrar antes do tempo. Nunca é tarde para um candidato a gênio chutar o balde da razão e asneirar. Outro amigo costuma dizer que o brilho é um atributo da superfície e que aquilo que muito brilha, ofusca a visão e ilumina pouco. Todo o acordo. Um belo exemplo é Slavov Zizek. Após alguns livros absolutamente brilhantes (mormente os teóricos, sobre Hegel, Marx e Lacan), passou a acreditar que poderia “acholojar” sobre qualquer assunto e soltou o besteirol em suas análises sobre as guerras na Ucrânia e na Palestina ocupada. Hoje Zizek tem a honra de ser apenas um ex-talvez-gênio. Na dúvida, ouça o vídeo do link acima e delicie-se com frases do tipo “Putin e a imprensa russa são tão fundamentalistas quanto os árabes. Para combatê-los, o Ocidente deveria prover a Ucrânia com armas nucleares”. … Vale ouvir. É a perfeita tragicomédia. Sófocles e Aristófanes estão se revirando no túmulo de inveja! 

Por oposição, Yanis Varoufakis vem conseguindo se manter no páreo pelo atributo da genialidade. Só receberá a honra in memoriam. Mas suas chances são grandes. Varoufakis é, hoje, um dos intelectuais mais produtivos, mais originais, mais ousados e, simultaneamente (ao contrário de Zizek) um dos menos performáticos e histriônicos da esquerda mundial.

Seu portfólio de contribuições à Economia é enorme, envolvendo desde a avaliação crítica da moderna Teoria dos Jogos (cada vez mais na moda nos meios acadêmicos conservadores), até o desenvolvimento de propostas para o reordenamento financeiro e fiscal da Zona do Euro, passando por inúmeros livros sobre o desenvolvimento capitalista, desde as origens até os anos recentes. Mas Varoufakis não é apenas um economista. Tal como Marx, ele opera na perspectiva da Crítica da Economia Política; vale dizer, não se contenta em operar com uma “versão ampliada” da Economia, na qual as variáveis históricas e institucionais são incorporadas com vistas a identificar as peculiaridades de cada país. Varoufakis faz a crítica da Economia Política apontando para o significado político inaparente de suas dimensões normativas. Em um determinado momento do aclamado documentário de Raul Martinez – In the Eye of the Storm – sobre a tentativa de renegociação da dívida grega junto ao FMI e ao Banco Central no ano de 2015, quando Varoufakis era Ministro das Finanças, este último declara: “Austeridade não é mais do que um novo nome para a luta de classes”. E, logo adiante: “Qualquer um que afirme que Economia é uma ciência, ou é um tolo, ou está tentando fazê-lo de tolo!” O que – dialeticamente (e ele é um dialeta) – não o impede de ser um …. Professor de Economia. Tal como Marx, Varoufakis sabe que há ciência na Economia. Mas não só ciência habita em seu interior. E aquilo que chega ao povo – sob a forma das políticas macroeconômicas de austeridade – é a parte menos científica da Economia. 

Mas se produção teórica de Varoufakis é tão extensa quanto antiga, por que resolvi resgatar suas contribuições só agora? O que me levou a pensar que retomar suas lições seria central na atual conjuntura? Por três motivos. O lançamento de seu mais recente e excelente livro – Tecnofeudalismo -, que nos ajuda a entender a arrogância e a pretensão de estar acima da lei de figuras como Elon Musk. A atualidade e importância de sua crítica ao neoliberalismo. E – last, but not least –  o crescente e preocupante compromisso dos gestores econômicos deste terceiro mandato de  Lula (mormente, Haddad e Tebet) com políticas de austeridade. Comecemos por este último tema.

  • Varoufakis e a crise internacional da esquerda: lições para o Brasil?

Por mais que o portfólio de Varoufakis seja extenso, penso que sua crítica ao “austericídio da esquerda” seja “A” sua contribuição mais relevante no que diz respeito à estratégia de ação política e econômica nesta era de confrontos acirrados. Como economista, vejo com grande preocupação a trajetória em curso. Fomos da PEC da Gastança (apelido que a Folha de São Paulo deu ao ajuste orçamentário da transição) para o Teto Móvel. “Avançamos” para uma política industrial com muitos projetos e pouquíssimos recursos.  E, agora, começamos a pensar em “ajustes” nos orçamentos da saúde e educação que já estão alimentando protestos na esquerda. 

Para Varoufakis, o crescimento acelerado da expressão política dos partidos de direita resulta primordialmente da crescente subordinação da esquerda aos princípios conservadores de gestão macroeconômica. Em uma das melhores entrevistas concedidas por Varoufakis para a mídia inglesa, ele resgata a breve história do Syriza. Segundo Varoufakis, em 2012 o Syriza é criado a partir da junção de 12 organizações de esquerda que, até então, representavam 4% do eleitorado. Para as eleições de 2012 o Syriza apresenta uma plataforma baseada na renegociação da dívida externa grega e no enfrentamento do programa de austeridade imposto pela União Europeia e conquista 17% dos votos. Nas eleições de 2014, alcança 27% dos votos, mas recusa a compor com o partido de centro-direita que havia recebido 29% dos votos e, com isso, inviabiliza a formação de um gabinete. No início de 2015, há novas eleições e o Syriza conquista 36% dos votos, o que lhe dá condições de indicar o Gabinete, sendo Varoufakis nomeado Ministro da Fazenda. E o programa do partido começa a ser implementado através da reabertura das negociações com os credores externos. Mas o novo governo confronta-se com a inflexibilidade dos credores, decidindo-se, então, por um plebiscito para avaliar se a Grécia deveria aceitar – ou não – os termos do acordo proposto pela União Europeia, o FMI e o Banco Central Europeu. Varoufakis faz campanha pelo NÃO. E o NÃO conquista 62% do plebiscito. Não obstante, o primeiro-ministro, Alexis Tsipras, decide demitir-se, impondo novas eleições. O Syriza sofre um racha, perdendo sua fração mais à esquerda. Mesmo assim, o Syriza volta a ter um bom desempenho, e Alexis Tsipras conquista novamente o posto de Primeiro Ministro. Seu governo, contudo, opta por aceitar os termos do acordo que o povo havia rejeitado no plebiscito de junho. O resultado não se fez esperar: nas eleições seguintes o Syriza (e partido que emergiu do racha de 2015, o Unidade Popular) minguaram, enquanto a extrema direita obtinha excelentes resultados. Syriza e Unidade Popular encontram-se fora do governo atualmente. O gabinete é uma coalizão de partidos de direita e extrema direita, que obtiveram, nas últimas eleições, a maior votação desde o fim da ditadura. Segundo Varoufakis, esse padrão de “evolução” política – conquista do governo pela esquerda, traição de seus compromissos programáticos, adoção de políticas econômicas conservadoras, crescimento do apelo eleitoral dos conservadores, perda de hegemonia eleitoral da esquerda e ascensão de governos de direita – tem sido a norma em todos os países ocidentais. Em suas palavras: 

O avanço dos Conservadores no Reino-Unido é culpa do Partido Trabalhista, como é culpa da centro-esquerda em toda a Europa e é culpa dos Democratas nos Estados Unidos. Quando você tem um partido como a Social-Democracia alemã, que se apresenta como defensora do Estado de Bem Estar Social, mas que, quando chega ao poder, retoma todas as políticas conservadoras que herdou da Democracia-Cristã, advêm dois fenômenos sociais: a esquerda torna-se cética com relação ao discurso da social-democracia e abandona a militância política; e aqueles que são mais vulneráveis e precisam manter alguma esperança em um Estado capaz de operar em sua defesa voltam-se para o fascismo. Um fascismo que não precisa reproduzir o estilo de Mussolini, com sua estética militarizada. O fascismo europeu, hoje, é xenófobo, racista e cínico.

O entrevistador, então, redargue que o Partido Trabalhista inglês provavelmente voltará ao poder nas próximas eleições. Em sua tréplica, Varoufakis diz ter dúvidas se haveria qualquer vantagem no retorno dos trabalhistas ao poder. E explica

Olhe o grau de autoritarismo do Partido Trabalhista hoje em dia. Mesmo sob Tony Blair, havia pessoas como Tony Benn e Jeremy Corbin. E eles nunca foram expulsos. Havia, claro, um grupo dominante, das alas mais conservadoras do Partido. Mas havia lugar para a diversidade. Hoje não há mais. E também não há mais vergonha em se fazer a defesa da austeridade mesmo antes de ganhar as eleições. Eu estava ouvindo o programa da BBC (Radio 4) na semana passada e Rachel Reeves [cotada para ser Ministra da Fazenda numa eventual futura gestão Trabalhista] veio explicar porque o Partido decidiu abrir mão do Programa de Investimento Verde de 28 bilhões de libras. Esse programa, aliás, é uma gota no oceano, é ínfimo. Mas, mesmo assim, poderíamos discutir se era um bom programa ou não, se deveria ser abandonado ou não. Mas o que realmente me irrita é o motivo que ela deu para abandoná-lo. Suas palavras: “Os conservadores estouraram o limite do cartão de crédito do Estado”. George Osborne [ex-Ministro da Fazenda do Partido Conservador] deve estar rindo muito; pois essa é uma mentira estúpida. Se Rachel acredita que o orçamento do Estado funciona como um cartão de crédito familiar e que, se você está no vermelho, você tem que cortar e, pior, cortar em setores essenciais (como o enfrentamento da catástrofe climática), então eu prefiro não vê-los no poder. Antes mesmo de se mudar para Downing Street 10 [sede do Gabinete em Londres] eles já estão dizendo que vão adotar políticas de austeridade para pôr ordem na casa e contrabalançar as despesas excessivas dos conservadores. O que esperar desse possível novo governo? Só posso dizer: meu Deus, poupe-nos deste grupo trabalhista.

Não quero, nem posso reproduzir todas as passagens relevantes dessa entrevista de Varoufakis. É preciso assisti-la na íntegra, pois ela é um todo orgânico. Mas há uma ideia central que se desdobra da citação acima. Para Varoufakis uma esquerda que mimetiza o discurso de austeridade da direita e – pior! – incorpora esse discurso como verdade e realiza o programa conservador está fadada ao fracasso. Pois ela é duplamente traidora. Ela trai a classe trabalhadora quando deixa de aplicar os recursos em projetos relevantes para estes. E jamais se tornará confiável para a classe dominante. Para Varoufakis, esta esquerda passa a ser objeto de ódio universal. Pois não há nada mais odioso do que o traidor. E o pior traidor é aquele que passa a acreditar que não há alternativa a não ser servir ao “mestre”. Este, além de traidor, é subserviente. E não entende, efetivamente, de Economia. Este é o tipo de liderança que ninguém deseja para uma nação; seja no cargo executivo maior, seja na condução da política econômica nacional. Mas quando o bumerangue volta para quem o atirou ainda há quem se pergunte como o povo, de repente, tornou-se tão conservador. …. Pois é. Há quem não entenda. 

  • Como e por que (re)emergiu a hegemonia (neo)liberal e o consenso em torno das políticas de austeridade?

Varoufakis começa sua resposta diferenciando os dois termos. Ele reconhece a pertinência da hegemonia neoliberal mas não reconhece qualquer consenso na defesa da austeridade. O resgate do liberalismo tem múltiplos fundamentos: da crise do socialismo real (que teria “demonstrado” a superioridade do mercado sobre o planejamento) à necessidade de ampliar os espaços de valorização do capital e retirar capacidade de intervenção dos governos (via privatizações). Mas o compromisso com a austeridade é muito flexível e evolui conforme as conveniências e o poder político e financeiro de cada pais. Os EUA não têm qualquer compromisso com as políticas que eles recomendam (via FMI e Banco Mundial) à periferia. Mais: se observamos as políticas econômicas de todos os países ocidentais em 2008-9 (durante a grande crise) e durante a pandemia da Covid-19, veremos com que facilidade os governos abandonam os princípios da “boa gestão fiscal e monetária” sempre que são demandados a fazê-lo por quem efetivamente comanda a política pública. É que nas crises todos os empresários voltam a ser keynesianos. E, quando o sistema retorna ao “pretenso normal” o Estado volta a se encolher. Por isso mesmo, a pergunta correta é outra: donde vem a percepção (falsa) de que o poder do Estado é mínimo e que ele deve administrar seu orçamento como uma dona de casa administra o orçamento doméstico? 

Para Varoufakis a resposta está na história. Segundo ele, antes do capitalismo, Estado e Poder eram uma coisa só. É justamente essa unidade que torna o “conceito” de Estado algo nebuloso nas sociedades pré-capitalistas. Em sentido rigoroso, o Estado é o “outro” da Sociedade Civil, e só se constitui plenamente com a emergência desta última, vale dizer, com a emergência e universalização da ordem mercantil, as relações são estritamente civis, se dão entre juridicamente iguais. Porém, já existe uma forma peculiar de Estado nos modos de produção antigos, que é indissociável, simultaneamente, do poder de punir e do poder de comando sobre o trabalho alheio. Os agentes que têm esse duplo poder são aqueles que detêm os meios de produção e coerção: a terra, as armas, e a religião. A despeito da rica história medieval e das inúmeras conquistas, guerras, emergência e queda de dinastias, das disputas de poder entre o rei e os nobres e entre os nobres e a Igreja, há um elemento de unidade, dominar é: 1) ter terra; 2) ter armas e guerreiros subordinados; e 3) autoridade sobre a fonte primeira de inculcação ideológica e difusão cultural: a religião. 

Na medida em que a ordem mercantil se expande e universaliza, emerge um novo poder: o dinheiro. Os mercadores, financistas e produtores de mercadorias passam a acumular uma nova forma de riqueza, superando a própria riqueza dos nobres e da Igreja terratenente. Agentes que, antes, eram “marginais” na ordem social, passam a influenciar a forma dos nobres gerirem suas terras e o padrão de relação dos mesmos com os camponeses. Os cercamentos de terra na Inglaterra para a produção de lã é a expressão maior da emergência desse novo poder: é a burguesia manufatureira e mercantil que está guiando a ação do nobre. E o camponês é expulso da terra e se vê obrigado a aceitar o assalariamento. Aqui está a origem das duas ordens: sociedade civil e Estado. E é também a origem da circunscrição do Estado a um campo específico e pré-determinado de papeis. O Estado passa a ser a fonte da lei; vale dizer, o Estado define o que não pode. E o faz ouvindo o povo (ou parte dele: a parte mais rica) via parlamento. Mas tudo o que não é proibido, está permitido e é objeto de decisão no âmbito do mercado e dos contratos entre civis. 

Ocorre, porém, que essa relação entre Estado e Sociedade não é estática. Ela se altera na medida em que se desenvolve a acumulação e centralização do capital. Com o desenvolvimento do capitalismo, a sociedade civil burguesa passa por um processo de diferenciação e estratificação interna crescente. E as grandes empresas e grandes empresários passam a ter uma audiência diferenciada dentro do Estado. Este movimento é contínuo. Somente nas grandes crises econômicas e político-militares dá-se uma discreta inversão de movimento. Nas crises econômicas, as empresas necessitam do Estado enquanto regulador (e limitador) da concorrência (especialmente a externa) e mantenedor da demanda efetiva. Nesses momentos, o Estado ganha poder. Nas crises político-militares é a própria autonomia nacional – e, por extensão, é a própria estrutura jurídica e de propriedade – que está em risco. Quando uma crise econômica se sobrepõe a uma crise político-militar, o Estado reconquista autoridade. Para Varoufakis, não é gratuito que a crise de 29 e a II Guerra Mundial tenham alimentado o New Deal nos EUA e o planejamento público no Reino-Unido. Nenhum Presidente dos EUA, após Delano Roosevelt concentrou tanto poder. Assim como nenhum Primeiro Ministro, após Churchil concentrou tanto poder. … Varoufakis não o diz. Mas tenho certeza de que ele concordaria com meu adendo: nenhum presidente, após Getúlio Vargas, concentrou tanto poder. Creio que muitos dos que “choram” pela crise do nacional-desenvolvimentismo e pela perda de capacidade de intervenção do Estado teriam muito a ganhar com a leitura de Varoufakis. Ele deixa claro que essa não é uma peculiaridade brasileira. A nossa única “peculiaridade” encontra-se no fato de que o presidente que concentrou o máximo de poder em suas mãos foi derrubado duas vezes por ação militar. E na segunda vez, saiu morto do Palácio do Catete. Isto, sim, é que é uma peculiaridade da Terra da Jabuticaba. 

Ainda segundo Varoufakis, o impulso dado pela II Guerra foi mantido vivo ao longo dos Anos Dourados do capitalismo em função da Guerra Fria. Que, na verdade, só foi realmente fria na Europa e nos EUA. O resto do mundo a viveu com muito calor. O que fez a felicidade da indústria armamentista. Mas, a partir de um certo momento, a roda virou novamente e a sociedade civil BURGUESA (por oposição à sociedade civil em geral) volta a ganhar proeminência: a roda voltou a girar no seu sentido “natural”. Quando foi isso?

O primeiro momento desse “reajuste” foi a desvinculação do dólar ao ouro em 1971. O acordo de Bretton Woods definiu as novas bases do sistema financeiro internacional ao finas da II Guerra. Nele foi acertado que o dólar seria a moeda internacional. Todas as moedas nacionais operariam com taxas de câmbio fixas e prescindiriam de reserva ouro. Apenas o dólar estaria assentado em reservas do “precioso metal”. Este sistema funcionou relativamente bem (para a periferia, mais relativamente do que bem) enquanto os EUA apresentavam saldos positivos nas diversas alíneas da Balança de Transações Correntes (Comercial, Serviços e Rendas). Nesse caso, os EUA financiavam o resto do mundo (via empréstimos retornáveis ou a fundo perdido) e os países que recebiam os recursos adquiriam bens e serviços produzidos nos EUA. Assim o dólar que saía pela Balança de Capital voltava pela Balança de Transações Correntes. Enquanto a Europa e os países Asiáticos (em especial, Japão, Coreia e Taiwan) reconstituíam sua estrutura produtiva (e para tanto, precisavam importar máquinas, matérias-primas, bens de consumo duráveis e alimentos dos EUA), o sistema funcionou a contento. Mas assim que a reconstrução europeia e asiática foi completada, a maré virou: as novas plantas industriais e de serviços da Alemanha, Japão, Holanda, Bélgica, Coreia, Taiwan, França e Reino-Unido se beneficiaram do acelerado progresso técnico durante a II Guerra Mundial e, uma vez operativas, passaram a competir com as exportações norte-americanas. Os saldos comerciais diminuíram e os EUA passou a apresentar déficits. Que eram pagos com “papel pintado”.  

Na medida em que os países com excesso de reservas passaram a exigir a transformação das mesmas em ouro, os EUA romperam com a paridade. O que levou à instabilização das taxas de câmbio: o valor do dólar com relação às demais divisas – marco, franco francês, franco suíço, libra esterlina, yen, dólar canadense, dólar australiano, etc. – passou a variar em função dos diferenciais de taxas de juros praticadas por cada país. Quanto mais alta a taxa de juros, maior o ingresso de divisas externas e mais valorizada fica a moeda do país com juros elevados. 

O problema é que as mercadorias transacionadas internacionalmente – petróleo, soja, minério de ferro, aço, etc. – têm seus preços definidos em dólares. Afinal, o dólar continuou sendo “A” (artigo definido SINGULAR) moeda das transações internacionais. Mas se o dólar variava de preço frente às demais moedas, era impossível saber qual seria o ganho real que produtores de outras partes do planeta teriam ao vender suas mercadorias na moeda mundial sem lastro ouro. Os bancos resolveram o problema lançando um conjunto de títulos que asseguravam a lucratividade mínima do negócio: as opções de compra e venda. Se eu sou um exportador e temo que o preço da minha mercadoria – soja, por exemplo – fique abaixo de um dado valor em dólar (em função de flutuações na Bolsa de Chicago) ou fique abaixo do valor em reais (em função da valorização do real frente ao dólar) eu adquiro uma opção para vender o meu produto por um preço mínimo. Se o preço efetivo, de mercado, superar o preço de opção, eu simplesmente perdi o dinheiro da aplicação de seguro. Mas se o preço cair abaixo do mínimo rentável para mim, eu exerço a opção.  

O que importa entender é que com a crise de Bretton Woods a roda da história voltou a girar para o lado normal. Qual é esse lado? O lado em que a sociedade civil BURGUESA luta por ser o todo, colocando o Estado em seu devido lugar: o lugar de coadjuvante. Quando não, de mero figurante. Pelo menos até que nova crise nos abale. Mas voltemos ao eixo do raciocínio.

Após a crise do dólar de 1971, os governos nacionais e o FMI perderam os instrumentos que garantiam um mínimo de estabilidade dos preços das mercadorias comercializadas internacionalmente e, por extensão, deixaram de poder garantir a rentabilidade da produção interna com vínculos externos; seja porque os importados sobem de preço abruptamente (o que impacta nos custos), seja porque o rendimento associado à exportação é função da taxa de câmbio. E esta taxa flutua incessantemente sem que se possa projetar adequadamente seu valor no futuro. 

É nessa conjuntura que os bancos voltam ao proscênio com diversas funções: emprestadores para países deficitários, gestores dos recursos dos países superavitários, e, acima de tudo, como operadores, garantidores (e especuladores!) nos mercados de câmbio, de opções, e de futuro. Afinal, se se pode comprar uma opção de venda ou de compra, por que não se pode comprar uma opção de compra e venda de ações? E uma opção de compra e venda de diferenciais de juros? E por que não vender (ou comprar) estes papeis mesmo que eu não corra risco algum (pois não sou exportador, nem importador, nem tomei empréstimos a juros flexíveis)? Simplesmente pela possibilidade de ganhar dinheiro antecipando (melhor que outros) o futuro dos mais diversos mercados. E interferindo sobre os mesmos. 

Estes são os anos “loucos” de especuladores como George Soros, que costuma contar uma piada muito elucidativa. Segundo ele, todos se lembram do fato dele ter ganhado 2 bilhões de dólares especulando contra a libra esterlina. Que acabou caindo, de fato. Mas poucos se lembram que ele perdeu 1 bilhão de dólares especulando contra o franco francês, que veio a ser socorrido pelo Banco Central Alemão. Como ele não tinha cacife para disputar com o Banco Central Alemão, teve que recolher suas fichas. Ao fim e ao cabo, não é verdade que ele ganhou 2 bilhões de dólares especulando. Em termos líquidos, ele ganhou SÓ 1 bilhão. …. Pobre menino Soros! 

E a história não para por aí. Ela ganha dois “pluses a mais adicionados” com a crise do socialismo real e o desenvolvimento dos computadores e da internet. A crise soviética é lida (sempre com patrocínio das think tanks e da mídia corporativa; evidentemente) como a demonstração cabal de que só livre mercado salva e que o planejamento e a regulação excessiva (e qual regulação não é excessiva?) é a fonte de todo o mal. Live and let die! Freedom! Abaixo a regulação pública.

Simultaneamente, a fusão de computadores pessoais e internet alimenta uma verdadeira revolução nos padrões de financiamento. Sistemas e algoritmos que só poderiam ser desenvolvidos em grandes computadores até os anos 90 ganham flexibilidade com os computadores pessoais organizados em rede. E começa a “farra dos títulos”. Os títulos negociáveis e negociados como aplicações financeiras deixam de ser apenas ações, debêntures, letras de câmbio, hipotecas, ou opções de compra e venda. Os títulos passam a ser uma composição de todos esses papeis. Numa única aplicação, em um determinado “fundo de investimento”, os poupadores passam a aplicar em uma miríade de produtos: ali estão opções de compra de yen e soja, opções de venda do barril de petróleo, ações da General Eletric, hipotecas de casas ainda não quitadas de famílias de distintos estratos de renda, títulos da dívida públicas dos mais diversos paises, etc., etc., etc., etc. Teoricamente, a composição de ativos dentro da aplicação é feita com vistas a minimizar os riscos do aplicador. Mas, na verdade, lá pelas tantas ninguém mais fazia a mínima ideia do que estava sendo comprado e negociado. O que importa era fazer aplicações e confiar no sistema financeiro. 

A complexidade – no limite da incompreensibilidade – dos sistemas de poupança e financiamento era a própria prova de seu caráter científico. Na virada do milênio, um economista que não entendesse “tudo” de opções, mercados futuros e aplicações compósitas era, na melhor das hipóteses, um neandertal. E como ninguém queria ser neandertal, todos entendiam perfeitamente. E sabiam que eram instrumentos tão científicos quanto absolutamente seguros. Nunca, dantes, na história da humanidade, o sistema financeiro se encontrara tão seguro como naquele período. O que demonstrava: 1) que a Economia era uma ciência consolidada; 2) que a regulação pública do sistema financeiro era completamente desnecessária. … Até que veio a crise de 2008.

  • Elon Magno Musk demonstra, mais uma vez que a tecnologia é a chave do desenvolvimento. FEUDAL

Uma das razões pelas quais me identifico tanto com as teses de Varoufakis é o local que ele atribui à tecnologia no processo de desenvolvimento. Em uma certa passagem de seu mais recente livro, Tecnofeudalismo, ele faz o seguinte diagnóstico: 

O que teria acontecido se James Watt tivesse inventado sua máquina a vapor no antigo Egito? O máximo que ele poderia esperar é que o governante do Egito ficasse impressionado e colocasse uma ou mais de suas máquinas em seu palácio, demonstrando aos visitantes e subordinados o quão engenhoso era seu Império.

O que eu quero dizer é que, ao longo do tempo, tornei-me cada vez mais cético em relação às narrativas que colocam demasiada ênfase na tecnologia e prestam pouca atenção à forma como grupos poderosos a aproveitam e a manipulam para alcançar e manter o domínio sobre os outros. Isso não implica qualquer subestimação dos impactos da tecnologia sobre o desenvolvimento material. Mas implica, sim, entender que aquilo que o capital e o (seu) Estado chamam de “desenvolvimento” está prenhe de interesses; prenhe de dominação. 

Este é, na verdade, o tema central de seu mais recente trabalho: a relação entre os desenvolvimentos tecnológicos das últimas 4 décadas e a emergência do que ele caracteriza como a forma mais cruel (e, provavelmente a forma derradeira, a forma final, terminal) do capitalismo. Mais uma vez, não vamos fazer um resumo do fantástico livro de Varoufakis. Há que lê-lo. PT, saudações. Não obstante, até mesmo com vistas a aumentar a curiosidade do potencial leitor, comentamos as linhas gerais de sua argumentação.

Em primeiro lugar, cabe observar que as análises de Varoufakis convergem com os trabalhos de dois grandes analistas da contemporaneidade: Carl Benedikt Frey (The Technology Trap) e Mariana Mazzucato (O Estado Empreendedor). A proximidade com Frey diz respeito à relação entre o progresso técnico contemporâneo e a negação do trabalho. Vale lembrar que a questão central das pesquisas de Frey é a correção ou incorreção dos prognósticos de Marx acerca da tendência do capitalismo em negar e simplificar o trabalho. Afinal, as três grandes transformações nos processos de produção do século XX – taylorismo, fordismo e toyotismo – envolviam um complexo processo de treinamento dos trabalhadores, que contradizia, em especial, a tese da simplificação e do crescente aproveitamento de mão de obra não especializada e sem treinamento. O que Frey tenta demonstrar é que Marx previu a tendência corretamente, mas a antecipou em um século. Com exceção de alguns poucos setores (como a fiação e a tecelagem) em que a automação alcançou níveis elevadíssimos já no século XIX, a automação da metalmecânica pressuponha a produção de máquinas de controle numérico e de robôs. Este processo teve início na década de 70 do século passado e seus desdobramentos já são visíveis no empobrecimento e redundância da mão de obra industrial. Frey faz, inclusive, relevantes inferências políticas deste processo. Ele mostra que o fato do  ambiente privilegiado de ocupação assalariada das mulheres ser no setor de serviços (em especial, em ambientes de escritórios, na educação e na saúde), onde a automação ainda é incipiente, tem levado a uma convergência salarial entre homens e mulheres nos EUA e na Europa, bem como a uma clivagem no posicionamento política por gênero: as mulheres, que continuam inseridas no mercado de trabalho moderno, tendem a ser mais propensas a votar nos partidos centristas ou de centro-esquerda. Já os homens, amplamente desiludidos com as promessas social-democratas de valorização do trabalho, têm, crescentemente, convergido para posições de centro-direita, quando não abertamente xenófobas e fascistas. 

Varoufakis vai ainda mais longe. Como seu foco de análise é o segmento de negócios que mais cresceu nas duas últimas décadas – as redes sociais e comerciais – ele traz dados da relação entre empregabilidade e faturamento que são assustadores. Segundo o autor, a relação entre faturamento e dispêndio com salários nas chamadas big-tech é da ordem de 1%. Mas que se entenda bem: trata-se do faturamento. Até porque muitas das empresas que, hoje, controlam os sistemas de informação que chegam a nós via algoritmos cada vez mais sofisticados e cada vez mais seletivos (não necessariamente no sentido de contemplar nossas demandas, mas de vender uma dada visão do mundo) não são lucrativas. Ou, antes: são e não são. Não são na medida em que não obtém lucros propriamente ditos: valor agregado operacional subtraído de salários e pagamentos à mão de obra, juros, aluguéis e impostos. Mas são, na medida em que o controle crescentemente monopolista dos meios de acesso à informação e a capacidade que estas empresas têm de vender as informações que coletam dos seus clientes para todos os negócios capitalistas tradicionais e para os governos e partidos políticos afinados com seu horizonte ideológico “liberal” (porquanto avesso a qualquer regulação) impulsionam o valor patrimonial das mesmas. O ganho obtido, assim, não é operacional. Mas financeiro. O lucro operacional é uma promessa. Pois seu poder de monopólio é crescente. Afinal, por que postamos em redes sociais? Para sermos vistos e conversar uns com os outros. Uma nova rede social não é atraente a ninguém. Ela é um ambiente vazio. Antes suportar os algoritmos do Mark e as loucuras do Elon do que falar com as paredes. 

Mas isso não é tudo. O que dá o caráter “feudal” ao “capital da nuvem” são três características. A primeira é a enorme dificuldade de regular as redes sociais a partir do poder político nacional. A atual disputa entre Alexandre de Moraes (Presidente do Tribunal Superior Eleitoral e ministro do Supremo Tribunal Federal) e Elon Musk (proprietário do Twitter) é a expressão mais simples e torpe da confiança que os novos príncipes têm em sua inimputabilidade e capacidade de escapar à toda e qualquer repressão e adequação às normas legais nacionais¹. Tal como nos famosos e reiterados conflitos entre os Duques da Borgonha e da Normandia e os Reis de França ou entre os Reis e Príncipes sob influência do Sacro Império Romano Germânico do Ocidente e o Imperador, os novos “Príncipes da Nuvem” zombam das autoridades nacionais com tamanha desfaçatez que prescindem até mesmo da ritualidade (via de regra, meramente aparencial) que emprestava alguma ilusão de ordem, honra e respeito. 

E porque esse abandono da ritualidade, essencialmente aparencial e, tantas vezes, apenas ilusória importa tanto? Não seria melhor deixar tudo às claras? … Sim e não. Ao deixar às claras seu desrespeito pelo sistema judiciário brasileiro, Musk revela, exatamente, a correção da análise de Varoufakis². E isso é bom. Por outro lado, a agressividade de Musk, a ousadia de sua resposta – postando em seu próprio canal no twitter um amplo conjunto de mentiras, de fakenews – é aterradora. O pobre menino rico está simplesmente declarando que não tem respeito por nada e que é tão maduro quanto o personagem Jeoffrey Baratheon da série Game of Thrones. E isso é trágico. Mais uma vez, porque Varoufakis está certo ao pretender que o poder dos Príncipes da Nuvem transcenda o poder do dinheiro e encontre-se diretamente, sem mediações, no plano do poder político. Ora, quem tem em suas mãos poder político tem obrigações ainda maiores com a sociedade do que um cidadão comum, do que um civil. O fato de que Musk (como Bolsonaro e seus acólitos) não entenda isso é a demonstração mais clara do risco que corremos de atrofia e esgarçamento do tecido social na nova ordem política em que estamos ingressando. 

O segundo elemento que aproxima o capital da nuvem de um sistema feudal é o peculiar padrão de subordinação daqueles que “servem” ao senhor. Ainda que esse ponto seja polêmico (e, até onde vi, Varoufakis não se manifesta sobre o mesmo), inúmeros historiadores (entre os quais, Douglass North e, do meu ponto de vista, na leitura que faço das Formações Econômicas Pré-Capitalistas, também Marx) diferenciam a servidão feudal da escravidão na medida em que a primeira conta, também, com uma dimensão (mais ou menos intensa, a depender do momento histórico e da região da Europa) contratual. Há, de fato, também, um intercâmbio entre trabalho e meios de subsistência (entregue pelos camponeses) e proteção (dada pelos senhores). Essa proteção, por vezes, era uma proteção miliciana (do tipo: se trabalhares para mim te protejo de mim mesmo). Mas não era só isso. A Europa Medieval era uma terra em permanente disputa. Aliás, ela mesma emerge da conquista germânica sobre as províncias romanas. E o resultado é que – como tantas vezes nos lembra Marx – à diferença do escravo, que não percebe a diferença entre o trabalho que realiza para si e para o senhor (é como se todo o trabalho realizado fosse para o senhor, pois ele mesmo é um objeto do senhor), o servo tem clareza dessa distinção. Essa é a dimensão que coloca o trabalho servil feudal numa espécie de meio do caminho entre escravidão e assalariamento. E, como tantos outros autores exploraram, parte da subordinação feudal é consentida. 

Varoufakis vai identificar a exponenciação dessa dimensão de “exploração consentida” nas contribuições que os usuários dão, gratuitamente, para o capital da nuvem. Não se trata apenas das nossas informações pessoais que as redes vão coletando e que vendem sem nossa autorização. Trata-se do entusiasmo de tantos em mostrar que são capazes de corrigir o Google Tradutor, oferecendo versões melhores para que a Google disponibilize, mais tarde, aos demais usuários numa plataforma repleta de propagandas. Ou o usuário colaborador do Waze, que informa onde há gasolina mais barata, onde há engarrafamento, onde há acidente, etc. Nas palavras de Varoufakis: 

As tecnologias que geraram o capital da nuvem provaram ser mais revolucionárias do que qualquer uma das suas antecessoras. Através deles, o capital da nuvem desenvolveu capacidades que os tipos anteriores de bens de capital nunca tiveram. Tornou-se ao mesmo tempo um detentor de atenção, um fabricante de desejos, um impulsionador do trabalho proletário (dos proletários da nuvem), um aliciador de trabalho livre massivo (dos servos da nuvem) e, para completar, o criador de espaços de transação digital totalmente privatizados (feudos de nuvem, como a Amazon.com), nos quais nem compradores nem vendedores desfrutam de nenhuma das opções que teriam em mercados normais.

Por fim, o terceiro elemento. Tal como sabemos desde Ricardo e Malthus, há uma diferença crucial entre “lucro” e “renda”. A história do pensamento econômico é prenhe de debates acerca dos determinantes do lucro e do caráter mais ou menos estável desta categoria de rendimento. Mas há um consenso: o lucro é sujeito a variações. E estas variações têm por base a instabilidade dos preços de venda das mercadorias e dos preços de aquisição dos insumos. Quanto maiores os custos de produção, menores os lucros. Quanto menores os preços de venda (ou, em “economês”: quanto menor o grau de monopólio do produtor; quanto menor seu poder de precificação; quanto mais intensa a concorrência), menores os lucros. Diferentemente, a renda é essencialmente estável. Ela advém do fato de que há uma restrição estrutural de oferta. A renda (ou aluguel) é o que se cobra pela vantagem locacional e/ou produtiva de um terreno.  É por isso que tantos cantam: Ai, quem me dera, quem dera um dia ter um quarteirão em Manhatan, uma ilha em Veneza e um belo aterro marítimo em Tóquio”.  … Ops, não é essa a letra? O compositor só queria voltar à Bahia? … Então oferece as alternativas acima para o gajo e veja se ele não troca de sonho rapidamente, 

Mas porque o Capital da Nuvem – algo tão etéreo, tão pouco enraizado, tão pouco especializado – teria a capacidade de gerar uma renda? Já apontamos, acima, o eixo principal da resposta a esta pergunta: é porque, ao contrário de outros produtos e serviços – onde buscamos diferenciação, qualidade superior, exclusividade e, no limite, ostentação – na nuvem queremos audiência. Na verdade, não se trata de monopólio puro. Podemos até segmentar os públicos: para os mais velhos, facebook e whatsapp (Mark está um pouco passé); para os mais jovens, tik-tok e twitter (me recuso a chamar essa rede pelo nome ridículo dado por Musk). Para a tchurma intermédia, Instagram. E ainda cabe, claro, Telegram para russos, árabes e bolsonaristas (não que eles perfaçam uma unidade; apenas frequentam a mesma praia por circunstâncias) e mais alguns veículos para a tchurma top-top secret. Mas não pode haver tantas redes sociais quanto pessoas, ou estaríamos falando sozinhos. Aliás, as redes já começam a se recompor, dando a impressão de serem múltiplas para conquistar usuários distintos. O Waze, por exemplo, pertence à Google; que o mantém juntamente com o Google Maps. Como se fossem concorrentes. Só que não. É tudo em família. Numa mesma família. 

Mas nem só de redes sociais no sentido mais estrito do termo vive o Tecnofeudalismo. Para Varoufakis, o símbolo maior da nova era é Jeff Bezos e sua Amazon. Á diferença das demais redes, a Amazon é uma “loja virtual de tudo”. Por que entrar no site do Magazine Luiza para encomendar um eletrodoméstico se você pode encontrar o mesmo produto na Amazon e, depois, passear por sua livraria gigantesca e sua loja de cosméticos e/ou de vestuário? E sabemos todos, os preços da Amazon são ótimos. Assim como seu compromisso de devolução da mercadoria em caso de não corresponder às suas expectativas. O que poucos sabem é que tantas vantagens são dadas aos consumidores às custas dos produtores. Fabricante que se recusa a vender algo pela Amazon acaba sendo “esquecido” pelos consumidores. O que leva os fornecedores a entregarem suas mercadorias praticamente a preço de custo. Esta é a vantagem de ser gigante. Um gigantismo que não comporta muitos outros no mundo. Ali-Ba-Ba já está aí. E até emergir um ou outro concorrente, desde que esteja baseado em identidades culturais e nacionais claras. Muito provavelmente (não sei, mas acharia muito lógico) está emergindo algo similar na Índia e sua área de influência. Também o mundo árabe-muçulmano é capaz de criar uma rede similar, pois conta com uma clientela fiel. Por fim, a Rússia, que foi isolado pelo ocidente, e carrega o nacionalismo em seu DNA parece estar alimentando experiências similares. Mas é isto. E deu. A vantagem desses sistemas é serem grandes. Onde há muitos, ninguém tem a escala necessária para fidelizar a clientela e os fornecedores. 

Mas a Amazon não é exemplar apenas em função de seu sistema de vendas on line e entrega just in time. Sua peculiaridade é ter criado sistemas próprios e exclusivos de conhecimento de seus clientes. As redes sociais em sentido estrito conhecem minhas posições políticas, meu gosto musical e até minhas fantasias eróticas (não se iludam com as “Janelas Anônimas”: não há anonimato das redes). Mas a Amazon sabe mais. Ela sabe o que eu leio. E como leio. E se realmente leio. Ou se só compro e deixo na biblioteca. A Amazon me conhece num outro nível de profundidade. Mais: a Amazon criou um objeto magnífico para me ajudar no dia a dia: Alexa. Simpática, voz sensual e insinuante, me ouve o dia todo. Mesmo quando não está (oficialmente) ligada. Atende meus pedidos musicais. E, lá pelas tantas, passa a me indicar músicas que eu provavelmente vou gostar. E, de fato, eu gosto. E ela me indica onde adquirir. … Na Amazon, claro. Ou em empresas associadas. Que pagam pedágio para a Amazon pela recomendação “desinteressada” da Alexa. What a wonderful world!

E aí vem o outro lado da história. O lado Mariana Mazzucato. Permitam-me, por favor (mais um) desvio antes de ingressar na relação Mariana-Varoufakis. Quero falar da minha relação pessoal com a Mariana, uma relação marcada por inúmeras ambiguidades. Na verdade, por inumeguidades. Ela é uma mulher linda e inteligentíssima. Admirá-la é absolutamente impositivo. Ela é uma mulher famosa e influente. Eu escrevo em português no sul do Brasil para um discreto grupo de pessoas. Não há como deixar de ter uma pontinha de inveja. Mas, ao mesmo tempo, apesar de suas mensagens serem simples e baseadas em um sem número de comprovações, parece que ninguém a entende bem. E isso me dá pena. E não só dela. De todos os que leem sem, efetivamente, absorver a mensagem principal. 

A mensagem de Mazzucato é simples: a chamada indústria 4.0 NÃO é filha do setor privado, não tem origem em empresas inovadoras, lotadas de empresários ousados que gastam fortunas em P&D correndo o risco de colocarem seus amados recursos na lata do lixo da história da concorrência industrial. TODAS as principais inovações das últimas 4 décadas se originam, ou dos sistemas de segurança, defesa e inteligência dos países centrais; ou de programas de financiamento a fundo perdido para as maiores Universidades de cada país com vistas a desenvolver sistemas específicos para fins de segurança, defesa e inteligência. É só quando estas pesquisas financiadas com fartos recursos públicos atingem um certo patamar de operacionalização e eficácia que elas são repassadas para empresas privadas. E não para todas as empresas privadas. Para algumas poucas empresas, capazes de atender as exigências específicas dos órgãos públicos. 

Hoje, não há sombra de dúvida de que os algoritmos das redes sociais selecionam as postagens com maior e com menor visibilidade externa. Cada vez que eu comento sobre o meu aniversário, sobre algum feito dos meus filhos que me deixou orgulhoso ou simplesmente posto mais uma foto de meu fofo cachorrinho, chovem likes na minha telinha. Quando eu posto vídeos ou textos sobre o genocídio em Gaza, pouquíssimas pessoas “se interessam”. Evidentemente, isso não é coincidência. Nem, tampouco, pode ser explicado pelo fato de Mark Zuckerberger ter ascendência judaica. O furo é muito mais embaixo. É a regra do “uma mão lava a outra”. Mark é um Príncipe da Nuvem. Mas, como Mazzucato tantas vezes tentou explicar, o Rei continua sendo o Estado Norte-Americano. Mais especificamente, o deep state norte-americano. Aquele Estado que existe e persiste para além dos Trumps, dos Biden, dos Obamas e dos Bushs. 

Varoufakis explora essa dimensão de Mazzucato à exaustão em seu magnífico trabalho. Mas dá um passo além: mostra a relação entre o crescimento exponencial das empresas-feudos da Nuvem e a crise de 2008. 

Ao contrário de Delano Roosevelt, que impôs graves circunscrições à liberdade dos bancos como condição para salvá-los da falência durante a Grande Depressão, na crise de 2008 os líderes do Ocidente optaram pelo caminho do amor e da graça. E salvaram os bancos sem qualquer exigência de reciprocidade e/ou de ajustamento de conduta. Como diz Varoufakis, é nessas horas que vemos com clareza que os princípios científicos e invioláveis da “austeridade fiscal e monetária” são extremamente flexíveis. Se Varoufakis fosse brasileiro, diria que austeridade que bate em Chico e em Billy não bate em Francis e em William. Os Bancos Centrais norte-americanos (EUA e Canadá) e europeu abriram as comportas e inundaram o sistema financeiro com recursos nunca vistos a taxas de juro zero ou negativas (vis-à-vis a inflação). Bancos e demais agentes financeiros, por sua vez, repassaram os recursos recebidos para as empresas endividadas e em situação pré-falimentar com taxas de juros próximas de zero. O que as empresas produtivas fizeram? Quitaram seus débitos e se reestruturaram financeiramente. Mas não investiram. Como investir em uma situação de crise e sem qualquer expectativa de recuperação da demanda no curto e no médio prazo? 

Diferentemente, as empresas da Nuvem, que receberam recursos tão ou mais vultosos a taxa tão ou mais favoráveis sabiam que aquele era o melhor momento para conquistar uma posição de monopólio incontestável. Para tanto, precisavam crescer velozmente e ocupar toda a fatia de mercado que pudessem abocanhar. E o fizeram com denodo. 

Os sistemas tecnológicos mais complexos foram desenvolvidos no interior dos centros de pesquisa estatais e só foram repassados ao setor privado quando já estava claro qual o sistema operacional efetivamente viável. Os recursos para inversão e expansão acelerada foram repassados pelos Bancos Centrais ao sistema financeiro privado a taxa de juros negativas. Este sistema buscou alocar a ampla liquidez em empresas com grande potencial de crescimento. E encontrou um nicho privilegiado nas empresas da Nuvem. Que aproveitaram a oportunidade com eficácia, eficiência e efetividade. O deep state, informou, discretamente, que seria de “bom tom” se as Feudotechs repassassem algumas informações para aqueles que tantos favores haviam feito antes. Educadamente, Mark, Elon, Jeff, Gates e outros patriotas (mas nada otários) acederam à singela demanda. E cá estamos nós, admirados com tanta competência e capacidade inovativa dos novos tycoons. É dura a vida de empresário Yankee, né mesmo?

  • E agora José?

 Na primeira nota de pé de página desse texto (desconsiderando aquela que informa quem sou), coloquei um link para uma das avaliações que vêm sendo feitas na mídia brasileira sobre o comportamento ostensivamente agressivo de Elon Musk diante das demandas do Judiciário. No vídeo, quem expõe sua indignação é o comentarista Guga Chacra, da Rede Globo de televisão. Como bom “repórter global”, Guga dá uma no cravo e outra na ferradura. Critica Musk pelo desrespeito e infantilidade. Mas o elogia como empresário audaz, competente e inovador. Ok. É quase uma obrigação dos comentaristas televisivos elogiar empresários bem-sucedidos. Deixa assim.

O problema é muito outro. O problema é quando os mesmos elogios saem da boca ou dos dedos (no caso da escrita) de economistas e engenheiros que tentam compreender os descaminhos desse nosso triste país de palmeiras e sabiás. Em inúmeros grupos virtuais e reais, tenho ouvido uma cantilena chorosa e cansativa. Ela usualmente começa com a afirmação de que os empresários brasileiros não têm “cultura inovadora”; avança sobre demandas de investimentos públicos em setores de altíssima tecnologia, tanto no âmbito da indústria, quanto no âmbito da pesquisa primária universitária. E acaba chegando à conclusão revolucionária: falta vontade política ao governo para retomar o desenvolvimentismo. 

Quando ouço esta toada, me pergunto se meus colegas realmente leram Mazzucato e Varoufakis. Se leram, o que foi que não entenderam? De acordo com esses autores, o agente inovador no centro do mundo é o Estado, não as empresas. A “cultura inovadora” de Musk, Mark e Bezos não me parece muito diferente da cultura inovadora de muitos empresários que conheço. A diferença, parece-me, está muito mais no fato de que nossos militares não fazem pesquisa, nem se preocupam com a defesa nacional. Antes, preocupam-se com o comunismo do PT e com a necessidade de articular o golpe. De acordo com esses autores, a outra grande diferença encontra-se na aceitação (ou não) do austericídio. Nós tomamos a pílula com gosto e orgulho. Enquanto os norte-americanos, chineses e russos riem de nossa simplicidade. 

Mas há um outro ponto que me confunde muito. O “projeto” de desenvolvimento nacional que ignora as diferenças abissais entre Brasil, EUA, China, Japão, Coreia, Alemanha, Índia, et caterva já me surpreende muito. Também me surpreende que tantos amigos e colegas queiram o retorno dos tempos de Vargas, Roosevelt e Churchill nos dias atuais. Acho tudo meio anacrônico. Mas minha maior estranheza é ainda outra. Volta e meia tento explicar para os companheiros que, para dar qualquer, passo na direção do que eles estão propondo é preciso romper com a política fiscal de Lula-Haddad-Tebet. … Aí é meus amigos de esquerda me chamam de louco. Enfim. Talvez o problema seja meu. … Talvez eu deva ir para Marte. … Ops. Marte, não. Posso encontrar o Musk por lá. É dura a vida.


*Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica e Professor do PPGDR-Faccat.

¹Na verdade, Musk só entra em conflito com quem tenta, de alguma forma, controla-lo. E quem ele considera como um barão menor. Seu poder é grande o suficiente para enfrentar o Brasil. Mas não é grande o suficiente para enfrentar a China. E ele não tem qualquer interesse em enfrentar a Arábia Saudita, para quem vende informações. Sobre isto, veja https://g1.globo.com/globonews/estudio-i/video/e-um-hipocrita-que-morre-de-medo-das-ditaduras-da-china-e-da-arabia-saudita-diz-guga-chacra-ao-analisar-polemica-criada-por-elon-musk-12502610.ghtml 

²Que, por sinal, dedica um excelente artigo a Elon Musk, explorando as razões que o levaram a ingressar no seleto grupo dos “Príncipes da Nuvem”. https://www.project-syndicate.org/commentary/musk-bought-twitter-to-get-cloud-capital-by-yanis-varoufakis-2022-11 

Imagem em Pixabay.

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