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Opinião

Uma mulher negra no STF

Uma mulher negra no STF

Artigo por RED
17/08/2023 05:30 • Atualizado em 17/08/2023 22:33
Uma mulher negra no STF

De ALDO FORNAZIERI*

Se o presidente Lula for coerente com o espírito geral de sua campanha e se ele honrar milhões de eleitores que votaram nele motivados por esse espirito geral, o Brasil terá em breve, com a aposentadoria da ministra Rosa Weber, uma mulher negra como nova ministra do Supremo Tribunal Federal. Não há motivos para duvidar da coerência de Lula.

Além da promessa subjacente ao espírito geral da campanha existem outros motivos e princípios fundamentais e históricos que exigem a nomeação de uma mulher negra para ocupar uma cadeira do STF. Antes de arrolá-los é conveniente lembrar que o STF é o tribunal constitucional do país e, conforme reza o artigo 102 da Constituição, cumpre a ele a guarda da Constituição.

Mas qual o fundamento primeiro de uma Constituição? No mundo moderno devemos, primeiro a John Locke e, depois, ao constitucionalismo norte-americano, a definição de que o ponto de partida da Constituição republicana consiste na garantia dos direitos dos cidadãos. A primeira razão para que um povo aceite se organizar politicamente, abrigando-se sob uma estrutura normativa e legislativa, consiste em garantir os seus direitos, principalmente os direitos de liberdade, de igualdade, de segurança e de justiça.

É certo que a noção de igualdade tem vários sentidos. Pensadores clássicos como Montesquieu e Tocqueville entendiam que o conceito é fundamento da república democrática e que ele abarca tanto a igualdade perante a lei, quanto a igualdade no sentido da equidade material.

Nem precisamos advogar uma concepção socialista para saber que se aplicarmos as concepções clássicas de república democrática, o Brasil está muito longe de se adequar às exigências dessas definições. Estamos entre os dez países mais desiguais do mundo e estamos muito longe de garantir o princípio da igualdade perante a lei para um grande número de pessoas que habitam este país.

Tomemos a situação dos negros e das mulheres. De acordo com as estatísticas, cerca de 56% da população brasileira é constituída por negros e cerca de 51%, de mulheres. Portanto, duas maiorias.

É certo que estes dois grupos majoritários vêm conseguindo, a partir da Constituição de 1988, o incremento de direitos. Mas isto vem ocorrendo de forma lenta, o que configura uma realidade social, econômica, política e moral ainda bem longo do desejado, do justo e do civilizatório.

Tome-se, primeiro, a população negra: os direitos formais da Constituição estão em desacordo com os direitos reais dos negros. Estes últimos não alcançaram sequer um patamar satisfatório. Não há equidade de salários/renda, de emprego, de acesso à educação, saúde, habitação, cultura. Os direitos civis dos negros são violados diariamente pelo Estado, pelas autoridades em geral, pelas polícias e pelo Judiciário. O racismo estrutural agride, machuca, violenta e mata. A liberdade sem cidadania e sem condições materiais para garantir acesso a alternativas significativas de vida não é liberdade. Poder-se-ia listar aqui várias outras violências contra os direitos das populações negras, mas isto é suficiente para assinalá-las.

Grande parte das precariedades de direitos sofridas pelas populações negras é sofrida também pelas mulheres. A equidade de gênero está longe de ser realidade. As mesmas violências que os negros sofrem no âmbito do trabalho e renda, as mulheres também as sofrem. Sofrem a violência sexista, os assédios, a exploração e a discriminação machista. São vítimas da violência física, sexual, psicológica e do feminicídio. Também sofrem as discriminações da polícia e de setores do Judiciário.

Até hoje, apenas três mulheres foram nomeadas como ministras do STF – Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber. E apenas três negros foram ministros do STF: Pedro Lessa, Hermenegildo Rodrigues de Barros e Joaquim Barbosa. Nenhuma mulher negra. O STF surgiu como Supremo Tribunal de Justiça em 1829 e foi transformado em Supremo Tribunal Federal por Decreto em 1890.

A ausência de mulheres e de negros no Tribunal Constitucional, e também nas representações políticas parlamentares e em toda a estrutura do Estado, diz muito acerca do espezinhamento dos direitos dos negros, das mulheres, dos pobres e de minorias como os povos originários e grupos como o LGBTQIA+. Negros, mulheres e esses grupos são vitimados por uma violência histórica, da escravidão, do preconceito, do racismo, do machismo, do supremacismo branco e da cultura patriarcal.

É sabido há alguns séculos que o lugar social, econômico, político, cultural e religioso ocupado pelas pessoas e pelos grupos sociais condiciona a forma de conceber e ver o mundo – condiciona as ideologias. E estas também condicionam a realidade objetiva e o mundo espiritual.

Vivemos num mundo em que as demandas por diversidade e pluralismo é gritante. Os dois conceitos concernem à própria noção de república democrática, de liberdade, justiça e igualdade. É por estas razões todas que a escolha de uma mulher negra para o STF é uma exigência do nosso tempo histórico, é uma exigência civilizatória, coerente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A sociedade civil brasileira, os movimentos negros e feministas, as Universidades, os movimentos sociais devem se mobilizar para que esta exigência seja satisfeita. Claro que não basta apenas escolher uma mulher negra com notório saber acerca da Constituição e do Direito. Além desses requisitos de conhecimento, é preciso escolher uma mulher negra cuja história e sensibilidade sejam condizentes com a luta pelos direitos dos negros, das mulheres e dos outros grupos carentes de direitos.

Este olhar e compromisso específicos e singulares sobre os direitos desses grupos são, ao mesmo tempo, singulares e universais. O processo de universalização dos Direitos Humanos requer que a realidade legal e constitucional e a realidade prática abriguem e universalizem esses direitos específicos. Não podemos aceitar que os direitos universais sejam apenas os direitos masculinos e brancos. A escolha de uma mulher negra e comprometida com a necessidade de universalização dos direitos dos grupos carentes representará um rombo nas fortalezas protetivas da dominação, da exclusão e da violência masculina e branca.


*Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo e autor de Liderança e Poder (Editora Contracorrente, 2022).

Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil.

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