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Opinião

Um soldado desconhecido

Um soldado desconhecido

Cultura por RED
23/07/2023 05:25 • Atualizado em 24/07/2023 09:48
Um soldado desconhecido

De LÉA MARIA AARÃO REIS*

Embora Herói de Sangue (Tirailleurs), de 2022, apresentado no Festival de Cannes de 2022, não tenha sido contemplado com prêmios na mostra Un Certain Régard, o público consagrou esse filme nas bilheterias dos cinemas franceses nos primeiros dias de janeiro deste ano. Agora, ele é cartaz nas telonas nacionais.

Tirailleurs contabilizou 19 milhões de espectadores na França em menos de trinta dias, e tirou o cinema de lá do buraco em que afundava, com as salas vazias pelos dois anos de pandemia. Mas outros dois motivos para o estrondoso sucesso de Tirailleurs são óbvios: a adoração do público pelo ator, roteirista, humorista e dublador Omar Sy a partir dos seus filmes Os Intocáveis –  que mais rendeu bilheteria na história do cinema francês – e de Lupin, e a população crescente de espectadores moradores das periferias das grandes cidades francesas onde vivem os refugiados e seus descendentes vindos das ex-colônias africanas. Sobretudo da flor do império colonial: Argélia, Mauritânia, Senegal, Marrocos, Tunísia, Guiné, Camarões, Costa do Marfim, Chade, República do Congo, Gabão, Mali,  e por aí vai.

O filme, escrito por Olivier Demangel  e Mathieu Vadepied, este diretor de arte de Os Intocáveis, conta uma história pouco conhecida, porém tristemente lembrada pelas centenas de famílias que, como as de Omar Sy – muçulmano, filho de mãe mauri e de pai senegalês – tiveram parentes e ancestrais mortos na Primeira Guerra Mundial (e também na de 1937), na África. Lutaram quase sempre à força, como se vê no filme, e foram usados como bucha de canhão pelos colonizadores cujo exército mostrava um fraco desempenho.

A história: em 1914, a França, em guerra com a Alemanha e para reforçar o seu exército no continente africano que então rateava, foi buscar nas suas colônias centenas de jovens uolofs para lutar pela defesa dos seus interesses. O rapaz Thierno é sequestrado na sua aldeia, e seu pai (protagonizado por Omar Sy), o segue tentando resgatá-lo e levá-lo de volta para a aldeia que fora saqueada. Decide então se inscrever no exército francês como voluntário pretendendo protegê-lo de perto e tirá-lo da frente das batalhas onde o rapaz foi incorporado no grupo de cabos tirailleurs – artilheiros que lutavam nas primeiras fileiras do front.

Nas entrevistas concedidas quando da estreia de Herói de Sangue, em Cannes, Omar Sy comentou: “Não entendo porque a história dos soldados senegaleses é contada raramente. Não há qualquer explicação. Você não costuma ouvir sobre ela. Mas o importante hoje é contá-la. Por isso fizemos este filme. Para o episódio ser conhecido e lembrado. É como se só falássemos da África pós-colonial. Como se não tivesse havido uma África antes dela. É esse “antes” que me interessa. O filme é uma forma de mostrar respeito e homenagear as vidas perdidas, dos jovens recrutados para o exército, arrancados das suas aldeias”.

Mathieu Vadepied tenta encontrar no seu filme um equilíbrio entre a história épica e o episódio familiar e intimista entre pai e filho, com a tensão permanente que marca o desenrolar da trama.  Mas mantém-se quase todo o tempo no relato de episódios no front supervalorizando a admirável fotografia, de sua autoria e uma das suas especialidades profissionais. De viés, insinua a brutalidade e o racismo dos oficiais brancos europeus durante o treinamento dos rapazes africanos sequestrados.

Vadepied revaloriza a participação não apenas dos jovens senegaleses, mas de todos os africanos do oeste e da África central que lutaram nessas condições durante a Primeira Guerra Mundial, incorporados ao exército francês. Outros tantos soldados africanos aderiram às tropas francesas na condição de voluntários e na expectativa de alcançar, no após guerra, como eles comentavam entre si – e isto se vê em uma  sequência do filme: ‘’Depois da guerra seremos franceses e vamos ter uma boa pensão militar como suboficial’’.

O diretor relembra: “Foi uma guerra que marcou gerações. Aldeias inteiras foram roubadas. Seus filhos nunca retornaram e alguns desapareceram sem sequer terem tido direito a um enterro decente”.

Os franceses, durante muitos anos, desconsideraram a participação destes negros nas duas guerras’’, diz por sua vez Régio Conrado, professor na Universidade Eduardo Mondlane de Maputo, e pesquisador moçambicano na Universidade de Bordéus. Ele estima que um número insignificante entre os 200 mil soldados africanos das colônias francesas que lutaram com os aliados na África como tirailleurs alcançaram o benefício previdenciário militar.

Herói de Sangue é encerrado com plácidas imagens do belo Arco do Triunfo, em Paris, e, em primeiro plano, na base do monumento, o close da chama realimentada, todas as tardes, em homenagem ao Soldado Desconhecido. No off do filme, a gravação, em voz grave:  ‘’ E houve lugar para nós entre vocês?’’


*Jornalista carioca. Foi editora e redatora em programas da TV Globo e assessora de Comunicação da mesma emissora e da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Foi também colaboradora de Carta Maior e atualmente escreve para o Fórum 21 sobre Cinema, Livros, faz eventuais entrevistas. É autora de vários livros, entre eles Novos velhos: Viver e envelhecer bem (2011), Manual Prático de Assessoria de Imprensa (Coautora Claudia Carvalho, 2008), Maturidade – Manual De Sobrevivência Da Mulher De Meia-Idade (2001), entre outros.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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