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Opinião

Um domingo sem sangue

Um domingo sem sangue

Artigo por RED
27/10/2022 14:20 • Atualizado em 28/10/2022 18:43
Um domingo sem sangue

De TARSO GENRO*

“Não posso acreditar nas notícias de hoje;/Oh,
não posso fechar os olhos e fazê-las
desaparecer… Porque esta noite, nós podemos
ser um só” (trecho traduzido da canção
Sunday Bloody Sunday-U2)

 

Quem quer pensar a política do ponto de vista da defesa do que pensa ser os interesses dos fracos, dos explorados e oprimidos, e não é nenhum gênio de excepcional talento interpretativo (como  me enquadro) deve estar se vendo como Dorothy Parker, que deu a seguinte resposta quando lhe perguntaram sobre o seu método de escrita: “Não consigo escrever cinco palavras sem que modifique sete”. De outra parte, tenho consciência de uma escolha, já que falo na primeira pessoa, de ter feito ao longo da minha vida opções morais dentro dos movimentos da minha já não curta existência, com a consciência de que posso viver cada amanhã – comigo mesmo e com os meus mais próximos – “com a maldição” – como asseverou Faulkner – “que tem de aceitar dos deuses, a fim de obter deles o direito de sonhar”.

Coloco esta observação não como uma vantagem sobre os meus contemporâneos, mas sim pela certeza de que a maioria das pessoas comuns, como julgo que sou – em condições normais de temperatura política e pressão
social – são todas assim.   Infelizmente em condições anormais de vida, em situações de crise aparentemente final de uma época, grupos sociais inteiros, classes, estamentos, identidades pervertidas, induzem para que a sociedade se divida, nos seus fundamentos que organizam sua continuidade, pelas pessoas que passam a desejar  a morte, propagar a dor coletiva – como repto de unidade contra o que entendem como “mal” – esquecendo, como prossegue Faulkner, que “a única imortalidade  possível para o homem é deixar atrás de si algo que seja imortal, já que sempre se moverá”.

Creio que quaisquer pessoas comuns, de esquerda, direita, centro, que não foram capturadas pela hipnose fascista, fragmentária nas redes manipuladas mas totalizada na consciência dispersa dos solitários (são solitários da condição humana os que se escondem nas cloacas da opinião manipulada pelos algoritmos) -todos que não foram capturados por esta hipnose- devem estar todos os dias se perguntando: “como foi possível?”. Como foi possível muitas pessoas aceitarem como natural a mentira, não a mentira comum de todos os dias que faz parte em diferentes graus de qualquer sociedade, modo de vida ou modo de fazer política, mas a mentira que estrutura um pensamento crítico sobre o mundo dividindo-o entre os que podem viver os que não devem viver, os que não merecem respeito pela sua cor ou sua identidade sexual e os que não merecem, entre os que se dispõem a ser torturadores e os que jamais aceitariam esta possibilidade animal.

Neste domingo,  teremos no Brasil uma estatística dramática e teremos, portanto, a informação concreta de até que ponto foi possível a contaminação da desumanidade propagada pelo fascismo na sociedade brasileira, já que o nosso fascismo é muito mais um estado mental de sociopatia do que propriamente uma doutrina elaborada para a recriar, com as suas peculiaridades, a identidade nacional, como foi o fascismo italiano e – de certa forma – o nazismo alemão. Lembremos que na Itália eminentes intelectuais, educados no iluminismo como Benedetto Croce, ainda que logo decepcionados com a sua implantação concreta, flertaram com ele e recordemos que, na Alemanha, um grande filósofo como Heidegger esteve presente  na formulação do projeto educacional de Hitler, para depois se afastar igualmente decepcionado.

Nossa vantagem é que os filósofos do fascismo contemporâneo aqui no Brasil são, para exemplificar, Weintraub e Olavo de Carvalho, e os seus políticos mais proeminentes não são propriamente formuladores, mas oportunistas de carreira buscando vagas no “orçamento secreto”.  Esta vantagem soma-se a uma outra, que construímos arduamente: a formação da mais ampla e mais autorizada Frente Política em defesa da civilização contra a barbárie, da democracia política contra a ditadura, em defesa da dignidade humana contra os preconceitos e o mal absoluto, representado pela própria figura de um Presidente que não hesitou em imitar o esforço, para respirar, daqueles que foram morrer pela sua incúria e o seu desejo doentio de dominar. Esta Frente mostra, para História Pátria, a importância estratégica da Democracia como fundamento da República. A partir dela esperamos o domingo para celebrar o suicídio do demônio e o renascimento da nação soberana.


*Ex-governador do RS, ex-prefeito de Porto Alegre, advogado, professor universitário, ensaísta, poeta. Foi ministro da Educação, das Relações Institucionais e da Justiça.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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