Opinião
Tiroteio anti-industrialista
Tiroteio anti-industrialista
De LUIZ GONZAGA BELLUZZO*
Os detratores desconsideram que a indústria é a consagração do “método de inventar” e que agora incumbe aos homens reinventar a vida social
Nova Indústria Brasil desencadeou um maremoto de manifestações negativas dos economistas liberais e de seus súditos na mídia. As inquietações dos “especialistas” aprestaram-se em desqualificar a iniciativa do governo Lula como “coisa do passado.”
Os sabichões falam de passado como se soubessem o que estão dizendo. A ignorância histórica dos bacanas é evidente, contundente e, ademais, lamentável. A história do capitalismo está marcada por sucessivas e persistentes iniciativas dos Estados conhecidas como políticas industriais.
Poderíamos começar com a criação do Banco da Inglaterra, em 1694, e suas políticas de financiamento à manufatura na era da passagem do Mercantilismo para a Revolução Industrial. O surgimento da indústria na Pérfida Albion “completou” a estrutura da economia mercantil-monetário-financeira capitalista.
Mais tarde viriam as experiências de Alexander Hamilton no Estados Unidos e Bismark na Alemanha. Há que se registrar também a Revolução Meiji, que trouxe o Japão para o time dos industrializados mediante políticas do Estado.
Sinto-me compelido a repetir o que já escrevi a respeito da Revolução Industrial. Para contestar a opinião de um sábio da Crematística disparei minhas perplexidades a respeito da alegada desimportância da indústria.
A ignorância histórica de economistas liberais e da mídia é contundente e lamentável.
Uma frase do sabichão incitou minha decisão de alinhavar considerações sobre o tema da indústria e de sua importância. Ele disparou: “Não me parece haver evidência empírica de que a indústria seja especial sob algum critério”.
Não? O historiador Carlo Cipolla discorda. Em sua investigação sobre a ruptura econômica e social produzida pela assim chamada Revolução Industrial, Cipolla escreveu: “A Revolução Industrial transformou o Homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por energia inanimada”. Imagino que a turma do passadismo econômico pretenda submeter a constatação de Cipolla a um teste econométrico, baseado numa série temporal que colhe informações desde o Neolítico até as primeiras décadas do século XIX.
À falta de tão requintados procedimentos da positividade empirista, só nos resta recorrer aos pacientes trabalhos de Angus Maddison. No livro The World Economy, ele estima que, entre 1820 e 1913, a renda per capita na Grã-Bretanha cresceu a uma taxa três vezes maior do que aquela apresentada no período 1700-1820. A publicação de A Riqueza das Nações e o aperfeiçoamento para fins comerciais da máquina a vapor de Newcomen por James Watt no mesmo ano, 1786, talvez forneçam testemunho ainda mais confiável a respeito da radical ruptura no modo de produzir e nas formas de regulação da vida econômica e social.
Aí nasce, de fato, o capitalismo, logo adiante sobranceiro em sua autodeterminação, alcançada mediante a constituição das forças produtivas ajustadas à sua natureza irrequieta. Assentada sobre suas bases materiais, a economia da indústria promove a nova sociabilidade, aquela amparada nas realidades do assalariamento generalizado e nas aspirações de liberdade e de autonomia individual. Na mesma toada, o industrialismo capitalista suscitou o desenvolvimento da metrópole, tabernáculo da modernidade, cuja efervescência cultural, não raro, exprime as misérias sociais nascidas das turbulências do progresso. É aconselhável consultar, entre outros, Balzac, Dickens, Baudelaire, Flaubert e Zola.
O surgimento da indústria como sistema de produção apoiado na maquinaria carrega nos ossos o progresso técnico, move a divisão social do trabalho e engendra diferenciações na estrutura produtiva, promovendo encadeamentos intra e intersetoriais. Os autores do século XIX anteciparam a industrialização do campo e perceberam a importância dos novos serviços funcionais gestados no rastro da expansão da grande empresa industrial e promovidos pela racionalização e burocratização dos métodos administrativos.
O avanço tecnológico livra progressivamente a agricultura dos caprichos da natureza. Da mesma forma, há que se considerar as relações umbilicais entre a Revolução Industrial e a revolução nos Transportes e nas Comunicações. É reconhecida a mútua fecundação entre a constituição do setor de bens de produção – apoiado nos avanços da metalurgia e da mecânica – e a expansão da ferrovia e do navio a vapor. A intensificação da introdução dos métodos “industriais” na agricultura e nos serviços promoveu o que convencionamos qualificar de hiperindustrialização.
No mesmo passo, já no fim do século XIX, a aceleração do tempo e o encurtamento do espaço foram acompanhados pelas artimanhas da primeira globalização financeira. Essa reordenação da economia exigiu uma resposta também pronta dos países retardatários. Para a Alemanha de Bismarck, para os Estados Unidos de Alexander Hamilton e para os japoneses da revolução Meiji, a industrialização não era uma questão de escolha, mas uma imposição de sobrevivência das nações, de seus povos e de suas identidades.
A industrialização dos retardatários confunde-se com as inovações da Segunda Revolução Industrial. O aço, a eletricidade, o motor a combustão, a química e a farmacêutica são os protagonistas dos combates competitivos da Belle Époque. As transformações financeiras do crepúsculo do século XIX promoveram a centralização do capital requerida para o aumento das escalas de produção implícitas nas novas tecnologias. Isso seria inconcebível sem a concentração das relações de débito-crédito nos bancos de depósito e nas proezas dos bancos de negócios, sôfregos em “fixar” capital-dinheiro em novos investimentos.
O surgimento da indústria apoiado na maquinaria carrega nos ossos o progresso técnico
É descuido imperdoável ignorar que algumas inovações da Segunda Revolução Industrial do fim do século XIX – especialmente a ampliação da capacidade dos navios a vapor, o navio frigorífico e o telégrafo – “produziram” os produtores de alimentos e matérias-primas nas regiões periféricas. A rápida escalada industrial dos Estados Unidos e a incorporação da Argentina, da Austrália, da Nova Zelândia e do Brasil reconfiguraram a divisão internacional do trabalho e atraíram milhões de trabalhadores lançados na miséria pela depressão da agricultura europeia.
Depois do surgimento do capitalismo industrial, mais precisamente depois de 1850, diz Cippola, o passado não era apenas o que havia passado. O passado estava morto. A partir de então, o Prometeu Desacorrentado foi incansável em seu labor. Empenha-se agora na “reinvenção” da natureza e na criação das técnicas que poderiam ensejar a proteção do ecúmeno.
Aí estão as inovações da inteligência artificial, da biotecnologia, das alterações nas estruturas atômicas dos materiais, da impressão em 3D, das novas energias limpas. Como disse Alfred Whitehead: “O homem inventou o método de inventar”. Resta aos homens (no plural) a incumbência de reinventar a vida social para fruir as liberdades e benesses oferecidas pelas proezas de Prometeu.
Uma revisita ao passado ajudaria os sabichões a encontrar o presidente Eisenhower. No início dos anos 50, ele ensinou que o desenvolvimento americano do pós-Guerra se valeu do complexo industrial-militar. Reconheceriam, também, que o complexo industrial-militar, ao longo dos anos, estimulou o surgimento das empresas inovadoras do Vale do Silício. Essa forma de política industrial e tecnológica perdura até hoje, atravessando incólume a transição entre governos democratas e republicanos.
As peripécias “intervencionistas” nos Estados Unidos são muitas e atuais em seu “atraso”. The Entrepreneurial State: Debunking Public vs. Private Myths, de Mariana Mazzucato, e Subsidies to Chinese Industry: Capitalism, Business Strategy and Trade Policy, de Usha Haley e George Haley, tratam das relações entre as empresas e as políticas governamentais. Recorrem a uma exaustiva investigação empírica, sem apelar para o blablablá ideológico, não raro hipócrita, da falsa oposição entre Estado e mercado no capitalismo contemporâneo.
Os estudos cuidaram de sublinhar as relações peculiares entre os Estados Nacionais, os sistemas empresariais, os programas de inovação tecnológica e a “inserção internacional”. Procuraram chamar atenção para a centralidade da “organização capitalista”, em que prevalecem nexos, digamos, “cooperativos” nas relações entre empresas e burocracias civis, militares e de segurança encarregadas de fomentar e administrar o sistema de avanço tecnológico (P&D).
No caso chinês, é crucial a presença dos bancos públicos no provimento de crédito para permitir a apropriação da tecnologia, mediante a utilização das empresas estatais para a formação de joint ventures com o capital estrangeiro e promover a “administração estratégica” do comércio exterior. Essa arquitetura institucional não apenas assegurou excepcionais taxas de investimento e acumulação de capital, como também ensejou programas de “graduação” tecnológica.
A ação estatal cuidou, ademais, dos investimentos em infraestrutura e utilizou as empresas públicas como plataformas destinadas a apoiar a constituição de grandes conglomerados industriais preparados para a batalha da concorrência global. Não é difícil perceber: as estratégias chinesas de expansão acelerada, o impulso exportador, a rápida incorporação do progresso técnico e uma forte coordenação do Estado foram inspirados no sucesso anterior de seus vizinhos, sócios e competidores.
Ao examinar essas relações nos Estados Unidos, Mariana Mazzucato desmascara o mito dos “gênios de garagem” e reduz a pó as lendas marqueteiras que celebram o papel do venture capital. Mazzucato descreve minuciosamente o roteiro para o sucesso da Apple, de Steve Jobs, e seus iPads e iPods. A ação do Estado não só garantiu o abastecimento do capital paciente e capaz de encarar o risco da inovação, como também ajudou a coordenar as relações entre a grande empresa integradora e seus fornecedores.
Os empreendimentos de plataforma encarnam, hoje, a modalidade mais aperfeiçoada e avançada do Capitalismo Industrial. Além dos gigantes numéricos, como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, as plataformas prestam serviços em todos os “setores”– finança, hotelaria, transportes, comercialização e distribuição de mercadorias, entrega de comida em domicílio. Aí estão em pleno vigor as plataformas dos Ubers e dos iFoods da vida. Elas constituem o ápice da hiperindustrialização.
*Economista, Professor Titular aposentado do Instituto de Economia da Unicamp. Autor de livros como Nos tempos de Keynes (São Paulo: Contracorrente, 2016).
Publicado na edição n° 1296 de CartaCapital, em 07 de fevereiro de 2024.
Imagem em Pixabay.
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