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Opinião

Tiroteio anti-industrialista

Tiroteio anti-industrialista

Artigo por RED
06/02/2024 05:30 • Atualizado em 08/02/2024 10:41
Tiroteio anti-industrialista

De LUIZ GONZAGA BELLUZZO*

Os detratores desconsideram que a indústria é a consagração do “método de inventar” e que agora incumbe aos homens reinventar a vida social

Nova Indústria Brasil desencadeou um maremoto de manifestações negativas dos economistas liberais e de seus súditos na mídia. As inquietações dos “especialistas” aprestaram-se em desqualificar a iniciativa do governo Lula como “coisa do passado.”

Os sabichões falam de passado como se soubessem o que estão dizendo. A ignorância histórica dos bacanas é evidente, contundente e, ademais, lamentável. A história do capitalismo está marcada por sucessivas e persistentes iniciativas dos Estados conhecidas como políticas industriais.

Poderíamos começar com a criação do Banco da Inglaterra, em 1694, e suas políticas de financiamento à manufatura na era da passagem do Mercantilismo para a Revolução Industrial. O surgimento da indústria na Pérfida Albion “completou” a estrutura da economia mercantil-monetário-financeira capitalista.

Mais tarde viriam as experiências de Alexander Hamilton no Estados Unidos e Bismark na Alemanha. Há que se registrar também a Revolução Meiji, que trouxe o Japão para o time dos industrializados mediante políticas do Estado.

Sinto-me compelido a repetir o que já escrevi a respeito da Revolução Industrial. Para contestar a opinião de um sábio da Crematística disparei minhas perplexidades a respeito da alegada desimportância da indústria.

A ignorância histórica de economistas liberais e da mídia é contundente e lamentável.

Uma frase do sabichão incitou minha decisão de alinhavar considerações sobre o tema da indústria e de sua importância. Ele disparou: “Não me parece haver evidência empírica de que a indústria seja especial sob algum critério”.

Não? O historiador Carlo Cipolla discorda. Em sua investigação sobre a ruptura econômica e social produzida pela assim chamada Revolução Industrial, ­Cipolla escreveu: “A Revolução Industrial transformou o Homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por energia inanimada”. Imagino que a turma do passadismo econômico pretenda submeter a constatação de Cipolla a um teste econométrico, baseado numa série temporal que colhe informações desde o Neolítico até as primeiras décadas do século XIX.

À falta de tão requintados procedimentos da positividade empirista, só nos resta recorrer aos pacientes trabalhos de Angus Maddison. No livro The World Economy, ele estima que, entre 1820 e 1913, a renda per ­capita na Grã-Bretanha cresceu a uma taxa três vezes maior do que aquela apresentada no período 1700-1820. A publicação de A Riqueza das Nações e o aperfeiçoamento para fins comerciais da máquina a vapor de Newcomen por James Watt no mesmo ano, 1786, talvez forneçam testemunho ainda mais confiável a respeito da radical ruptura no modo de produzir e nas formas de regulação da vida econômica e social.

Aí nasce, de fato, o capitalismo, logo adiante sobranceiro em sua autodeterminação, alcançada mediante a constituição das forças produtivas ajustadas à sua natureza irrequieta. Assentada sobre suas bases materiais, a economia da indústria promove a nova sociabilidade, aquela amparada nas realidades do assalariamento generalizado e nas aspirações de liberdade e de autonomia individual. Na mesma toada, o industrialismo capitalista suscitou o desenvolvimento da metrópole, tabernáculo da modernidade, cuja efervescência cultural, não raro, exprime as misérias sociais nascidas das turbulências do progresso. É aconselhável consultar, entre outros, Balzac, Dickens, Baudelaire, Flaubert e Zola.

O surgimento da indústria como sistema de produção apoiado na maquinaria carrega nos ossos o progresso técnico, move a divisão social do trabalho e engendra diferenciações na estrutura produtiva, promovendo encadeamentos intra e intersetoriais. Os autores do século XIX anteciparam a industrialização do campo e perceberam a importância dos novos serviços funcionais gestados no rastro da expansão da grande empresa industrial e promovidos pela racionalização e burocratização dos métodos administrativos.

O avanço tecnológico livra progressivamente a agricultura dos caprichos da natureza. Da mesma forma, há que se considerar as relações umbilicais entre a Revolução Industrial e a revolução nos Transportes e nas Comunicações. É reconhecida a mútua fecundação entre a constituição do setor de bens de produção – apoiado nos avanços da metalurgia e da mecânica – e a expansão da ferrovia e do navio a vapor. A intensificação da introdução dos métodos “industriais” na agricultura e nos serviços promoveu o que convencionamos qualificar de hiperindustrialização.

No mesmo passo, já no fim do século XIX, a aceleração do tempo e o encurtamento do espaço foram acompanhados pelas artimanhas da primeira globalização financeira. Essa reordenação da economia exigiu uma resposta também pronta dos países retardatários. Para a Alemanha de Bismarck, para os Estados Unidos de Alexander Hamilton e para os japoneses da revolução Meiji, a industrialização não era uma questão de escolha, mas uma imposição de sobrevivência das nações, de seus povos e de suas identidades.

A industrialização dos retardatários confunde-se com as inovações da Segunda Revolução Industrial. O aço, a eletricidade, o motor a combustão, a química e a farmacêutica são os protagonistas dos combates competitivos da Belle Époque. As transformações financeiras do crepúsculo do século XIX promoveram a centralização do capital requerida para o aumento das escalas de produção implícitas nas novas tecnologias. Isso seria inconcebível sem a concentração das relações de débito-crédito nos bancos de depósito e nas proezas dos bancos de negócios, sôfregos em “fixar” capital-dinheiro em novos investimentos.

O surgimento da indústria apoiado na maquinaria carrega nos ossos o progresso técnico

É descuido imperdoável ignorar que algumas inovações da Segunda Revolução Industrial do fim do século XIX – especialmente a ampliação da capacidade dos navios a vapor, o navio frigorífico e o telégrafo – “produziram” os produtores de alimentos e matérias-primas nas regiões periféricas. A rápida escalada industrial dos Estados Unidos e a incorporação da Argentina, da Austrália, da Nova Zelândia e do Brasil reconfiguraram a divisão internacional do trabalho e atraíram milhões de trabalhadores lançados na miséria pela depressão da agricultura europeia.

Depois do surgimento do capitalismo industrial, mais precisamente depois de 1850, diz Cippola, o passado não era apenas o que havia passado. O passado estava morto. A partir de então, o Prometeu Desacorrentado foi incansável em seu labor. Empenha-se agora na “reinvenção” da natureza e na criação das técnicas que poderiam ensejar a proteção do ecúmeno.

Aí estão as inovações da inteligência artificial, da biotecnologia, das alterações nas estruturas atômicas dos materiais, da impressão em 3D, das novas energias limpas. Como disse Alfred ­Whitehead: “O homem inventou o método de inventar”. Resta aos homens (no plural) a incumbência de reinventar a vida social para fruir as liberdades e benesses oferecidas pelas proezas de Prometeu.

Uma revisita ao passado ajudaria os sabichões a encontrar o presidente ­Eisenhower. No início dos anos 50, ele ensinou que o desenvolvimento americano do pós-Guerra se valeu do complexo industrial-militar. Reconheceriam, também, que o complexo industrial-militar, ao longo dos anos, estimulou o surgimento das empresas inovadoras do Vale do Silício. Essa forma de política industrial e tecnológica perdura até hoje, atravessando incólume a transição entre governos democratas e republicanos.

As peripécias “intervencionistas” nos Estados Unidos são muitas e atuais em seu “atraso”. The Entrepreneurial ­State: Debunking Public vs. Private Myths, de Mariana Mazzucato, e Subsidies to ­Chinese Industry: Capitalism, ­Business Strategy and Trade Policy, de Usha ­Haley e George Haley, tratam das relações entre as empresas e as políticas governamentais. Recorrem a uma exaustiva investigação empírica, sem apelar para o blablablá ideológico, não raro hipócrita, da falsa oposição entre Estado e mercado no capitalismo contemporâneo.

Os estudos cuidaram de sublinhar as relações peculiares entre os Estados Nacionais, os sistemas empresariais, os programas de inovação tecnológica e a “inserção internacional”. Procuraram chamar atenção para a centralidade da “organização capitalista”, em que prevalecem nexos, digamos, “cooperativos” nas relações entre empresas e burocracias civis, militares e de segurança encarregadas de fomentar e administrar o sistema de avanço tecnológico (P&D).

No caso chinês, é crucial a presença dos bancos públicos no provimento de crédito para permitir a apropriação da tecnologia, mediante a utilização das empresas estatais para a formação de joint ventures com o capital estrangeiro e promover a “administração estratégica” do comércio exterior. Essa arquitetura institucional não apenas assegurou excepcionais taxas de investimento e acumulação de capital, como também ensejou programas de “graduação” tecnológica.

A ação estatal cuidou, ademais, dos investimentos em infraestrutura e utilizou as empresas públicas como plataformas destinadas a apoiar a constituição de grandes conglomerados industriais preparados para a batalha da concorrência global. Não é difícil perceber: as estratégias chinesas de expansão acelerada, o impulso exportador, a rápida incorporação do progresso técnico e uma forte coordenação do Estado foram inspirados no sucesso anterior de seus vizinhos, sócios e competidores.

Ao examinar essas relações nos Estados Unidos, Mariana Mazzucato desmascara o mito dos “gênios de garagem” e reduz a pó as lendas marqueteiras que celebram o papel do venture capital. ­Mazzucato descreve minuciosamente o roteiro para o sucesso da Apple, de Steve Jobs, e seus iPads e iPods. A ação do Estado não só garantiu o abastecimento do capital paciente e capaz de encarar o risco da inovação, como também ajudou a coordenar as relações entre a grande empresa integradora e seus fornecedores.

Os empreendimentos de plataforma encarnam, hoje, a modalidade mais aperfeiçoada e avançada do Capitalismo Industrial. Além dos gigantes numéricos, como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, as plataformas prestam serviços em todos os “setores”– finança, hotelaria, transportes, comercialização e distribuição de mercadorias, entrega de comida em domicílio. Aí estão em pleno vigor as plataformas dos Ubers e dos iFoods da vida. Elas constituem o ápice da hiperindustrialização.


*Economista, Professor Titular aposentado do Instituto de Economia da Unicamp. Autor de livros como Nos tempos de Keynes (São Paulo: Contracorrente, 2016).

Publicado na edição n° 1296 de CartaCapital, em 07 de fevereiro de 2024.

Imagem em Pixabay.

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