?>

Destaque

Surdo Mundo

Surdo Mundo

Literatura por RED
15/10/2024 16:00 • Atualizado em 14/10/2024 22:02
Surdo Mundo

Por NÚBIA SILVEIRA*

No início de uma das aulas da oficina de escrita do professor Luís Augusto Fischer, avisei que, provavelmente, eu teria alguma (ou muita?) dificuldade para ouvi-los – a ele e aos colegas -, porque meus aparelhos auditivos estavam com problemas e o conserto demoraria alguns bons dias. O alerta nem era tanto sobre não ouvir. A minha preocupação era entender mal o que dissessem, trocando a palavra usada pelo interlocutor por outra semelhante, que distorcesse o sentido da frase. O risco, então, de dizer alguma besteira era grande. Neste caso, os amigos se divertiriam e eu ficaria constrangida. Todos(as) tinham um caso para contar de familiares ou amigos(as) surdos(as) ou de candidatos(as) à surdez. Miguel da Costa Franco comentou sobre o isolamento dos que sofrem com a perda de audição. Indicou-me a leitura de Surdo Mundo, de David Lodge (L&PM Editores, 2010).

Pela maneira entusiasmada com que Miguel o indicou, achei que seria um texto muito divertido. Esperava rir do início ao fim. Não foi bem assim. Há momentos hilários, mas outros de grande aflição. O autor, também surdo, mostra a realidade vivida pelos(as) que ouvem mal e vivem perguntando “o quê? Quem? Ahn?” e irritando os interlocutores, que precisam levantar a voz e repetir a mesma palavra duas, três ou mais vezes. O inglês Lodge (Londres, 1935) afirma, no final do livro, na parte destinada aos agradecimentos, que “a surdez do narrador e do pai dele tiveram como inspiração a minha própria experiência, mas os demais personagens deste romance são fictícios”.

O livro, de 327 páginas, tem como personagem principal o professor Desmond Bates, um linguista, aposentado. Ele se mete numa grande confusão, quando não consegue ouvir o que uma jovem bonita lhe diz, durante uma conversa, num coquetel barulhento. Para não pedir que a interlocutora repita o que lhe diz, ele passa a fazer cara de quem está ouvindo. Como ela fala muito, o professor só faz gestos afirmativos ou negativos, de acordo com a sua interpretação do que a jovem deve estar dizendo. Ao final do diálogo, ou melhor do monólogo, ele não sabe nem o nome da jovem, que lhe soava como látex.

Os demais personagens são ligados à sua família – pai, esposa, sogra, filhos, enteados, netos -, com exceção de Alex Loom, uma jovem norte-americana, aquela com quem ele falou no coquetel, sem saber quem era. Alex o quer como orientador do seu doutorado em linguística. A estudante se propõe a analisar os pontos comuns e divergentes dos bilhetes de suicidas. Lodge alerta que este tema se deve a sua imaginação e a um artigo escrito por Charles E. Osgood.

Desmond retira os aparelhos dos ouvidos sempre que pode, o que irrita sua esposa Winifred, a Fred, com quem se casou após a morte de sua primeira mulher. A surdez e a loja de móveis e decoração, que Fred e a amiga Jakki mantêm, com muito sucesso, num shopping, vêm complicando a vida do casal. Fred e a mãe dela também não simpatizam muito com o pai de Desmomd, um ex-músico, de 89 anos, meio surdo, com problemas para conter a urina e muito  teimoso.

Lodge escreveu o livro em forma de diário. Todas – ou quase todas – as noites, Desmond registra o que aconteceu no seu dia. Passa grande parte do tempo enrolado com as arapucas que Alex lhe cria. E pior: com o mau humor de sua mulher, a personagem que mais me irritou. Talvez porque eu tenha me identificado muito com os problemas do professor, imaginando o meu futuro, e sofrido, como se fosse ele, as constantes reclamações e repreensões de Fred.

Agora, relendo partes do livro para escrever este texto, me dei conta que Surdo Mundo deve ser bem divertido para quem não enfrenta problemas auditivos e não corre o risco de se identificar com o professor. As confusões em que ele se mete são mesmo hilárias. Na festa de fim de ano, que sua mulher ofereceu para amigos e clientes, os aparelhos de Desmond emudeceram. Ele não encontrou pilhas novas para substituir as velhas. Decidiu participar da festa, totalmente, surdo. Sua estratégia foi falar com interlocutores e interlocutoras, sem dar-lhes chance de dizer um simples “a”. De acordo com a cara do(a) outro(a), ele escolhia o tema para sua tese, que consumia, no mínimo, meia hora. Evidente que os assuntos escolhidos nunca foram os corretos, o que enfureceu os convidados e, ainda mais, a Fred, que lhe passa uma ótima carraspana.

 

Nubia Silveira é jornalista.ção.

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

 

 

Toque novamente para sair.