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Opinião

Sobre Ronda – João Batista Marçal

Sobre Ronda – João Batista Marçal

Artigo por RED
17/06/2023 05:30 • Atualizado em 19/06/2023 10:18
Sobre Ronda – João Batista Marçal

De JORGE ALBERTO BENITZ*

A primeira impressão é enganosa. As gravuras meio kitsch, o texto começando sempre pela chamada “Boa Noite, meu amor! ”, o fato de serem escritos na madrugada – Às vezes, alta madrugada como revela quando diz “Daqui a pouco os galos estarão cantando seu canto esperantista – igual em todos os lugares do mundo – saudando os primeiras barras do dia” -, quando ele poderia estar já “meio tocado”, como bom bebedor de cerveja que era,  parecem descortinar que ali nos depararíamos com  uma pegada piegas e popularesca endereçada aos viamonenses.

O jornal onde ele publicou estes artigos, que levaram o título Ronda- João Batista Marçal, se chama Viamão Antigo. Descobri, pesquisando na internet, que é um jornal que continua circulando.

Outro equívoco que me induziu ao erro foi supor que toparia ali na crônica poética e intimista com uma repetição do, como diz Mauricio Sirotski Sobrinho, “estilo largado, meio acastelhanado” que ele utilizava como repórter policial. Estilo debochado, cínico, capaz de até fazer graça ao relatar um acidente grave, muito feio, como ele diz, de trem na região carbonífera onde morreu muita gente.  “Para fazer diferente e tirar a dramaticidade da coisa”, como diz na entrevista da Ivete Brandalise.

Foi como repórter policial no rádio e na TV – foi quadro do jornal do almoço da RBS TV – que, praticamente, inaugurou uma maneira inusitada de fazer reportagem. Estilo do qual, a julgar sua fala meio confessional na entrevista feita no ótimo programa da rádio FM Cultura, com Ivete Brandalise, produção de Jaqueline Chala, onde se arrepende porque abriu caminhos para outros jornalistas menos éticos e menos ideológicos, mais pragmáticos, tipo Ratinho, Sergio Zambiazi, que seguiram seu exemplo apenas na forma, descompromissados ideologicamente com valores progressistas e de esquerda como ele. A propósito, vale a pena reprisar seu depoimento sobre  esta questão na referida entrevista:

“Mas eu procurei dar um mínimo de nível para aquilo ali, não é? Eu não sou um alcaguete pra chegar, “olha, tá aqui o bandido, olha a cara dele. Olha essa negra aqui”, que era assim que se falava no ar, não é?, “olha aqui essa negra, é ladra, donas de casa se cuidem”. Não, não, não, não, isso não. Mas depois, virou isso depois, não é? Depois de mim veio o Ratinho, e o Ratinho criou a escola em todo Brasil.  Aqui em Porto Alegre, neste momento, de manhã, nesse horário da manhã é terrível. Tem um monte de garotos, e alguns veteran os, fantasiados de polícia fazendo mais alcaguetagem do que a reportagem. Um troço bajulador, puxa saco, baixo nível, com o qual eu não tenho nenhum compromisso.”

Ledo Ivo engano. Ali, Marçal é um outro e o mesmo. Um outro porque cultiva uma prosa poetizada ou poesia em prosa de bom nível, que embora derramada e intensa nunca desanda em pieguice. É o mesmo Marçal de outras de suas atividades (jornalista, radialista, historiador) porque encontramos nestes textos a mesma inteireza de engajamento, de ilimitada sinceridade e largueza demonstrativas de seu espírito arrojado e livre que não se detém, nem se contêm, de modo burguês. Ao contrário, tudo nele é jorro, entrega total, sem comportas.

Talvez, paire nos textos um estilo meio passadiço, que usa e abusa daquilo que Ezra Pound classifica de fanopeia, isto é, de poesia calcada em imagens, muito comum no período pré-moderno. O que não retira a força e a profundidade das reflexões nelas contidas; não retira a beleza de suas construções poéticas. Ali está um homem de esquerda que sempre manteve coerência, grandeza, e que não se furta de citar aforismas de Antoine de Saint Exupéry, um autor tido equivocamente como superficial por grande parte da intelectualidade de esquerda e de direita. Escritor que era mais conhecido no Brasil, por ser o autor que tinha seu livro “O Pequeno Príncipe”, citado por misses em concurso de beleza.

Impossível não se comover junto com ele recontando a história do galo de rinha que ficou velho, cego, alquebrado, que recebeu todo o amor do seu criador nesta hora em que o normal é abandoná-lo e mesmo matá-lo para que não signifique gastos sem retorno.

Impossível não gostar de suas belas imagens da noite e seus encantos, como, por exemplo, quando tece loas a ela e ao amor com delicadeza poética e reflexão filosófica humanista, marca do seu pensamento; não se comover, sabendo que está ali um calejado e dedicado homem de esquerda que passou por situações pesadíssimas, alguém que foi torturado, durante a ditadura e ainda assim preservou a sensibilidade e a delicadeza não se cansando de utilizar como metáfora uma de suas paixões, a rosa. Ele tinha em casa um jardim de rosas que cultivava com muito carinho.

Vai, abaixo, uma pequena mostra desta delicadeza e sensibilidade nesta crônica que como todas as demais, a exceção da intitulada Zumbi e a Negritude, tem como título o bordão Boa noite, meu amor!:

É tudo calma, mansidão na noite preguiçosa. Há muito as trevas da noite estenderam seu manto esfarrapado sobre uma cidade que começa a fugir da realidade quotidiana, nas asas do sono. O ar é morno e tem um quê de mistério, de deslumbramento. Cada minuto que passa vem com uma carga mística, uma dúvida, o resto de uma saudade. Uma tristeza canta em cada rodado do tempo, uma ponta de solidão entorpece os sentidos da mulher amada.

Esta é uma hora de mistério, povoada de lembranças.

Na nossa amarga caminhada sobre a face da terra, temos andado a nos violentar: cada amigo que dobra a esquina da morte, leva um pedaço de nós. Cada afeto que perdemos, é uma fraqueza a mais na raiz do espírito. Cada desencanto, uma ruga que nos nasce no coração.

Sendo uma hora de mistério e de lembranças, esta também é uma hora de amor, hora em que, na sua solidão, o homem se dobra para dentro de si mesmo, reavaliando seus objetivos, aquilatando a própria estupefação na andança das horas, buscando um sentido para a vida.

Tudo é fugaz na vida que escorre pelas ruas, pelas calçadas. Tudo tem fim: nossos sonhos, nossas esperanças, nossa alegria e nossos desencantos. Só o amor que, num ciclo mágico é capaz de viver além da morte, é eterno, real e verdadeiro. Graças a ele, a vida continua…” .

Este é apenas um exemplo dos muitos de igual ou maior qualidade poético- filosófica que nos deparamos ao ler estes escritos que, suponho, meio que desconhecido dele.

O único momento em que ele foge do espirito poético- romântico que adotou foi no texto que ele denomina de especial – creio que justamente por isso – quando aborda a luta de Zumbi dos Palmares contra a escravidão em um artigo, que ao contrário dos demais que começavam com o bordão Bom dia, meu amor!, é intitulado Zumbi e a negritude.

Eis um outro Marçal.  Poético e metafísico indagando a si e ao mundo que, embora consciente política e ideologicamente dos perigos que nos rondam, das armadilhas da vida, permanece sempre esperançoso, sempre acreditando e jogando todas as fichas no poder do amor à vida, na luta pelos deserdados e humildes.


*Engenheiro, escritor e poeta.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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