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‘Sete anos após o golpe de 2016, o Brasil está muito pior e menos governável’, diz Paulo Peres

‘Sete anos após o golpe de 2016, o Brasil está muito pior e menos governável’, diz Paulo Peres

Politica por RED
18/04/2023 17:30 • Atualizado em 18/04/2023 14:22
‘Sete anos após o golpe de 2016, o Brasil está muito pior e menos governável’, diz Paulo Peres

Lula enfrenta o desafio de governar com mais polarização, militarização e desinformação, acredita o cientista político

Nesta segunda-feira (17), aniversaria aquela espalhafatosa sessão da Câmara dos Deputados que a imprensa estrangeira chegou a definir como “um carnaval”. Sete anos atrás, uma maioria conservadora aprovou a admissibilidade do processo de impeachment contra Dilma Rousseff sem que a presidenta houvesse cometido crime de responsabilidade.

Para a oposição, o afastamento de Dilma promoveria a inauguração de uma nova era de prosperidade para o país, lançando os alicerces de “uma ponte para o futuro”. Brasil de Fato RS, então, pediu ao cientista político Paulo Peres sua avaliação sobre o estado atual daquele futuro prometido em 2016.

Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFRGS, ele define o período pós-Dilma como de “destruição lucrativa”. Mas de destruição para muitos e lucrativa para poucos. Repara que, numa reprise da História com outros atores, Temer e Bolsonaro foram os “laranjas” de uma aliança que já havia protagonizado o golpe de 1964.

Confira:

Brasil de Fato RS – Nesta segunda-feira, dia 17, aniversaria aquela sessão famosa da Câmara dos Deputados onde se votou e aprovou a admissibilidade do prosseguimento do processo de impeachment contra Dilma Rousseff. De lá para cá, o Brasil melhorou ou piorou?

Paulo Peres – Sem dúvida, o Brasil piorou. Antes disso, já estávamos numa situação econômica difícil, que foi sensivelmente agravada com a conjunção de três fatores que compuseram um cenário desolador para o trabalho, o crescimento econômico e o custo de vida: governo Temer, governo Bolsonaro e a pandemia. Some-se a isto a perda de direitos sociais importantes imposta pelas reformas promovidas por Temer e as políticas de “terra arrasada” levadas a cabo por Bolsonaro em praticamente todas as esferas de atuação do Estado. Drásticos retrocessos na área ambiental, desmonte e, ao mesmo tempo, aparelhamento estatal; além disso, tivemos um desastre nas áreas da educação, da cultura e da ciência e tecnologia.

Também, privatizações atabalhoadas e contra os interesses estratégicos do país; omissões nas políticas de saúde, especialmente no enfrentamento da Covid-19, que contribuíram para o elevado número de vítimas fatais e a disseminação de desinformação a respeito da doença, da vacinação e das medidas de tratamento. Ainda, o clima de polarização radicalizada que o grupo bolsonarista instalou no país, com incentivos à violência, ao culto das armas, à discriminação e à eliminação das oposições.

Lula governa um país dominado pelo ´Centrão` e o ´Quinto Poder` do BC

Temer e Bolsonaro foram os “laranjas” na retomada do poder de uma aliança que já havia protagonizado o golpe de 1964. De um lado, os mercadistas, interessados na rapinagem dos recursos públicos; de outro, os militares, interessados em se manterem como o “Quarto Poder” da República e, claro, como sócios minoritários que são, sempre ávidos pelos ganhos indiretos da rapinagem e do aparelhamento do Estado.

Mas, esse projeto de “destruição lucrativa” – também conhecido como “ponte para o futuro” – tinha de ser viabilizado mantendo-se intacta a fachada da democracia. Para isso, era indispensável a chancela eleitoral; aí surgiu a oportunidade para que outro grupo social aderisse à aliança: os moralistas. Em nome da família e dos valores tradicionais, conservadores e reacionários juntaram-se na “guerra santa” contra o comunismo, a esquerda, o PT, o identitarismo, a “ideologia de gênero” e diversos outros fantasmas. Igrejas e pastores colaboraram para que essa aliança fosse selada, como em 1964.

É este Brasil, com o Estado desmontado, a sociedade radicalmente polarizada, institucionalmente combalido, mais desinformado, militarizado, dominado pela política do “Centrão” e pelo “Quinto Poder” do Banco Central, que Lula se incumbiu de governar. Um Brasil muito pior e menos governável.

Desde que o PT chegou ao poder houve ensaios golpistas não clássicos, mas suaves

BdF RS – Em que medida, Jair Bolsonaro, enquanto presidente, é fruto de 2018 e do fracasso do período Temer?

Paulo Peres – Bolsonaro é uma continuidade, mais radicalizada, do período Temer. Bolsonaro e Temer fazem parte de um mesmo processo de conquista do poder para a máxima predação possível do Estado e dos recursos públicos por agentes de setores nacionais e internacionais do mercadismo, em conluio com o alto comando das Forças Armadas.

Desse ponto de vista, o governo Temer não foi um fracasso, foi um tremendo sucesso – foram aprovadas reformas trabalhistas, educacionais, na exploração do pré-sal, por exemplo; além da imposição do “teto de gastos” e do início do “governo de ocupação” militar e do empoderamento do “Centrão”. Temer foi a primeira etapa do que Romero Jucá chamou de “grande acordo nacional”.

Esse acordo começou a ser costurado já em 2014, pelos militares que, logo após a reeleição de Dilma, lançaram a candidatura do capitão na AMAN – Academia Militar das Agulhas Negra. Em 2013, o Brasil já tinha entrado em convulsão social pelas então chamadas “jornadas de junho”. Antes disso, em 2005, houve o escândalo do “Mensalão”, quando circulou nos corredores de Brasília a ideia de impichar Lula, tendo já o PSDB à frente desse movimento. Ao que consta, Fernando Henrique Cardoso pôs um freio nos tucanos. Acreditava que a melhor estratégia seria “deixar Lula sangrar” até 2006, quando o PT, desgastado, perderia a eleição. Ledo engano, Lula foi reeleito e, com aprovação popular recorde, propiciou a eleição de Dilma, em 2010.

Ou seja, desde que o PT chegou ao poder, em 2003, houve ensaios golpistas – não para golpes de Estado clássicos, que fecham o Congresso e depõem o presidente à força, mas para golpes políticos mais suaves, dentro das regras democráticas, bastando para isso distorcê-las conforme os interesses de ocasião. Bolsonaro, portanto, foi o produto do crescente descontentamento de determinados grupos sociais com as políticas do PT. Primeiro, grupos religiosos conservadores se indispuseram com as políticas identitárias; depois, grupos conservadores de classe média ficaram ensandecidos com os direitos concedidos aos trabalhadores “subalternos”, como as “secretárias do lar”, e com as políticas de ação afirmativa, que levaram às universidades pessoas “diferenciadas”. Mais adiante, veio Dilma e, com ela, a Comissão da Verdade, que incendiou de vez o paiol da ira dos comandantes militares.

O Brasil sofreu uma ´revolução colorida` em 2013, retomada em 2015-2016

Também no seu governo, houve os embates em torno do marco regulatório do pré-sal, deixando em polvorosa as grandes corporações internacionais do setor de energia e, obviamente, colocando o Brasil, mais uma vez, no radar das “mudanças de regime” do governo norte-americano. Para piorar, dando continuidade à política externa de Lula em relação ao BRICS, Dilma atuou decisivamente para a criação do banco do grupo, uma ameaça à dominação financeira internacional estadunidense – sintomaticamente, Dilma acabou de assumir a presidência do banco.

Enfim, o Brasil foi submetido a uma “revolução colorida”, em 2013, retomada em 2015-2016. Para evitar o “erro” cometido com Lula em 2005, era melhor não correr o risco de deixar que Dilma concluísse o seu segundo mandato. Mesmo que o seu governo estivesse desgastado, a candidatura de Lula a um terceiro mandato, em 2018, seria imbatível. E mais: Lula poderia concorrer à reeleição, em 2022, e vencer novamente. Logo, o PT ficaria no poder por, pelo menos, 24 anos! Era preciso remover a presidenta.

Contudo, a deposição constitucional de Dilma tinha como contrapartida a ascensão de Temer à presidência. Era necessário, então, converter Michel Temer no primeiro “laranja” dessa operação de golpe parlamentar. Não obstante, de nada adiantaria a deposição de Dilma se, em 2018, Lula concorresse, uma vez que a sua provável vitória implodiria a “ponte para o futuro”.

Plantamos uma jabuticaba: o impeachment preventivo de Lula em 2018

Daí plantamos mais uma jabuticaba: o impeachment preventivo! Um golpe judicial, em meio a intenso lawfare, levou Lula à prisão e o manteve fora do páreo. O “grande acordo nacional, com o Judiciário, com tudo”! Assim, o primeiro “laranja”, Temer, entregaria a faixa presidencial seria ao segundo “laranja”, Bolsonaro, que, inclusive, mostrou ter grande carisma eleitoral e representar sinceramente os valores e interesses que se uniram nos dois golpes políticos articulados. Estava cristalino: jamais concluímos a transição democrática.

BdF RS – Tem aumentado o número de eleitores de Bolsonaro que se arrependem de seu voto em 2018, mas o mesmo não ocorre em relação ao apoio ao impeachment sem crime de responsabilidade sofrido por Dilma, fortemente respaldado então pela mídia empresarial. Ainda veremos este mea culpa na medida em que a cumplicidade com o golpe de 1964 demorou 50 anos para ser revista?

Paulo Peres – Não sei se, daqui a 50 anos, a mídia tradicional vai fazer essa “autocrítica”. Se fizer, como ocorreu com a Globo, será tarde demais. Inclusive, a própria Globo voltou a fazer o mesmo a partir de 2013. Ou não aprendeu nada ou tudo era uma farsa. Acredito mais na segunda hipótese. Desta vez, a empresa, assim como as demais, contribuiu fortemente para desacreditar a política, os políticos em geral, os partidos e, principalmente, o PT. Contribuiu para o impeachment da Dilma e para a prisão do Lula.

Penso até que esses grupos não se arrependeram do voto em Bolsonaro. Na verdade, não gostaram dos “modos” de Bolsonaro, da sua agressividade para com a imprensa, da sua “descompostura” nos rituais constitucionais e no “jogo de cena” de um estadista. Em termos substantivos, penso que eles também não gostaram de algumas políticas, geralmente identificadas com o chamado neoliberalismo imperialista representado pelo posicionamento do Partido Democrata norte-americano, como os ataques às ONGs, à política “verde”, ao identitarismo, à ciência, à política das vacinas contra a Covid-19. Em contrapartida, arregalaram-se com as políticas econômicas privatistas, contencionistas, financistas.

Manietado, Lula terá de lutar para não se converter completamente na terceira via

O sonho da mídia corporativa – que reflete o sonho do mercado financeiro – era e é viabilizar o que foi chamado de “terceira via”: nem Lula e nem Bolsonaro, mas parte de Lula com parte de Bolsonaro. O que é isso? Significa uma candidatura que combine o que é desejável em Lula e em Bolsonaro, mas que não tenha os aspectos indesejáveis de ambos. O candidato ideal desse conglomerado de interesses deve mesclar a política econômica de Bolsonaro/Guedes com a política moral e sustentabilista de Lula: energia verde, ONGs atuantes, políticas identitárias, de uma parte, e, de outra, mercado desregulado e Estado mínimo. Ou seja, a “terceira via” é aquela que é liberal na economia e liberal nos costumes. Lula é liberal nos costumes, mas, na economia, é trabalhista. Bolsonaro representa o contrário, um verdadeiro cíclope da teoria política: liberal na economia e conservador/reacionário nos costumes. Mas, a realidade é o que é. Tendo que escolher entre um liberal/trabalhista e um liberal/reacionário/conservador, os mercadistas ficaram com Guedes. Às favas a democracia, os direitos sociais, civis e ambientais. Primeiro vêm os bolsos.

Então, o arrependimento não é tanto por terem votado ou ajudado Bolsonaro, mas por não terem sido capazes de operacionalizar a “terceira via”. Não é por menos que criaram todo o ambiente para forçar que Lula acabe se convertendo nessa “terceira via”. A “grande aliança democrática” para evitar o autoritarismo obrigou Lula a montar uma coalizão geringonça, difícil de gerir.

Os militares voltaram a ser interlocutores políticos que devem ser consultados a respeito das políticas e cuja concordância é indispensável. Significa dizer que  não são apenas uma força e sim um Poder exercido por um partido único, o militar. O Banco Central “independente” é um Poder à parte, ocupado pelos principais agentes do sistema financeiro. Manietado, Lula terá de lutar para não se converter completamente na terceira via.

Aécio Neves se tornou cidadão honorário do Reino de Lilliput

BdF RS – Chama a atenção que muitos protagonistas do impeachment, casos exemplares de Eduardo Cunha, Michel Temer e Aécio Neves, encolheram politicamente. Teriam sido, eles próprios, vítimas do golpe que urdiram?

Paulo Peres – Como principal desencadeador desse processo no ninho tucano, Aécio Neves se tornou cidadão honorário do Reino de Lilliput. Eduardo Cunha preparou o terreno para entronar o “Centrão”, mas numa missão kamikaze. Temer, o “primeiro laranja”, sabia, desde o início, que sua missão era colocar os primeiros pilares da “ponte para o futuro [do pretérito]” e, depois, refugiar-se no mundo das sombras. Muitos anos nas costas e muitas suspeitas de corrupção nos ombros pesaram demais – será lembrado pelas mesóclises, pela voz estranha, pelo porto de Santos e pelo golpe.

Agora, sem dúvida, o PSDB foi a maior vítima dos golpes parlamentar – no caso da Dilma – e judicial – no caso do Lula. O partido perdeu a sua posição de segunda força política na competição bipolar pela Presidência e encolheu-se ao ponto de se tornar uma ave praticamente em extinção. O próprio Geraldo Alckmin, candidato tucano em 2018, converteu-se numa espécie de “morto-vivo” político após não ter alcançado sequer 5% dos votos nacionais. Lula, pode-se dizer, resgatou Alckmin do Reino de Hades. Até então, com o perdão do trocadilho, ele era um Alckmindead. Agora, Alckmin está mais feliz do que nunca; jamais o vi sorrir tanto. Renasceu; talvez até se redescobriu. Já o PSDB entrou em estado de entropia com a dinâmica “doriana” [João Dória] que chegou ao limite na disputa da candidatura à Presidência. A última esperança do partido é Eduardo Leite, que se conseguir projeção nacional com uma gestão bem avaliada no RS, talvez possa se transformar na liderança da assim chamada “terceira via” que a centro-direita gostaria de ter em 2026: liberalismo na economia e nos costumes.

Lula resgatou Alckmin do Reino de Hades. Até então, ele era um Alckmindead

BdF RS – No 8 de janeiro, tivemos uma tentativa, embora bastante tosca, de tomada do poder. Como outras lideranças do reformismo – Getúlio, Jango, Dilma – sofreram golpes ou tentativas de golpe ao tentarem “colocar os pobres no orçamento” é possível imaginar que o governo Lula passará quatro anos com uma lâmina sobre o pescoço?

Paulo Peres – O que aconteceu em 8 de janeiro é bastante nebuloso. Ainda estou tentando juntar as peças desse quebra-cabeças. Os pivôs desse episódio, os comandantes militares, sabiam que não havia qualquer condição para um golpe de Estado. Não pretendiam dar um golpe, até porque já houvera golpe, como disse antes. Dois golpes articulados e sequenciais, um parlamentar [impeachment de Dilma] e outro judicial [impeachment eleitoral de Lula]. Ao mesmo tempo, as pessoas que atuaram nas depredações acreditavam que, com a sua ação, criariam a oportunidade para a “intervenção constitucional” das Forças Armadas. Isso quer dizer que essa “massa de manobra” supunha agir para viabilizar um golpe de Estado – legítimo, segundo a sua lógica terraplanista. Os meios de comunicação tradicionais, por sua vez, cobriram fartamente o evento, etiquetando-o, à exaustão, como “terrorismo” e “golpismo”. O evento ocorreu não apenas numa data próxima, mas também como um ataque aos poderes constitucionais, como na “invasão do Capitólio”. Lá, a imprensa também cobriu o evento extensamente e deu-lhe o rótulo de “golpismo” e “terrorismo”.

A sombra do impeachment ou algo mais drástico rondará o Planalto sempre que um trabalhista for o seu ocupante

O que está por detrás de tudo isso? Por que os militares “soltaram” os “vândalos” dos acampamentos sabendo que não havia qualquer possibilidade – e nem interesse – de ocorrer um golpe de Estado? Por que a grande imprensa, sempre em sintonia com as Forças Armadas, tratou o evento como o “Capitólio brasileiro”? Qual o nível de interferência do Deep State norte-americano nessa trama? Como dizia Diadorim: eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. Ao que parece, o principal recado dos militares e do governo estadunidense foi este: Lula, não vá muito longe nas suas políticas. Assim como podemos evitar “golpes”, podemos promovê-los.

Os cenários nacional e internacional de hoje são muito diferentes daqueles dos primeiros mandatos de Lula. Agora, temos um desenho constitucional com Cinco Poderes: Executivo, Legislativo, Judiciário, Poder Militar e Banco Central. Militares controlam parte do Legislativo e do Executivo, o mercado controla o Banco Central, parte do Legislativo e parte dos militares. A política externa norte-americana, incluindo as suas grandes corporações do complexo industrial-militar-midiático, atua para controlar ou, ao menos, influenciar todos esses poderes. Diante dos elevados ganhos que os mercadistas obtiveram com a rapinagem dos recursos públicos nos últimos anos, e diante das mudanças estruturais na geopolítica internacional, tendo os BRICS como um dos principais agentes da multipolaridade, Lula tentará encontrar alguma brecha para fazer políticas sociais e políticas de desenvolvimento autônomo do país. Em suma, a sombra do impeachment ou de algo mais drástico continuará rondando o Palácio do Planalto sempre que um trabalhista for o seu ocupante.


Matéria do Brasil de Fato RS.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

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