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Opinião

Sem anistia a insubordinações e ofensas

Sem anistia a insubordinações e ofensas

Artigo por RED
20/01/2023 15:20 • Atualizado em 21/01/2023 12:33
Sem anistia a insubordinações e ofensas

De BENEDITO TADEU CÉSAR*

Publicado em destaque pelo Estadão de quarta-feira, dia 18 de janeiro de 2023, o general Sérgio Westphalen Etchegoyen declarou que o presidente Luís Inácio Lula da Silva “perdeu a confiança” de parte das Forças Armadas. Disse mais, o general. Classificou a fala do presidente de “profunda covardia” e sentenciou que ela não contribui para “pacificar o país”. Tudo isso foi dito no programa Pampa Debates, da TV Pampa, de Porto Alegre.

Abstraindo-se o fato de que esse general deveria ter sido punido e quiçá preso por seus pares, pois sua fala demonstra séria insubordinação ao chefe supremo das Forças Armadas, o Presidente da República, a quem os militares, mesmo reformados, devem obediência estrita, o general Etchegoyen, vem de família com histórico contumaz de conspiração, golpismo, insubordinação, desacato e vilipêndio às leis.

Nomeado por Michel Temer, em 2016, como ministro chefe da Secretaria de Segurança Institucional, à qual se subordinava a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), depois de ter ocupado, meses após a destituição de Dilma Rousseff, o posto de chefe do Estado Maior do Exército, Sérgio Etchegoyen tem a língua solta e o hábito das ofensas. Em 2014, foi o primeiro general da ativa, integrante do Alto Comando do Exército, a criticar a Comissão Nacional da Verdade (CNV), qualificada por ele como “patética” e “leviana”.

Tem raízes familiares sua indignação com a CNV. Seu pai, o general Leo Guedes Etchegoyen, foi citado no relatório da Comissão entre os militares responsáveis por violações dos direitos humanos durante a ditadura militar. Ofensor pertinaz, o general Etchegoyen (filho) não gostou da citação, considerada por ele como “difamatória” e destinada “unicamente para denegrir (sic)” a memória do militar já falecido.

Na Justiça do Rio Grande do Sul, o general Etchegoyen (filho), seus irmãos e sua mãe, que recebe(ia) pensão militar vitalícia, requereram a retirada do nome do general Etchegoyen (pai) do relatório da CNV, indenização por danos morais no valor de R$ 90 mil (valores da época) e, ainda, que a União se retratasse em órgãos de imprensa nacionais e internacionais. Negada em primeira instância, a sentença foi mantida por quatro votos a um no TRF4 (!), que julgou improcedente a solicitação.

Além do pai, também um tio do general Sérgio Etchegoyen foi mencionado nas sessões da CNV. O coronel Cyro Guedes Etchegoyen foi apontado, pelo coronel reformado Paulo Magalhães, autoridade integrante do Centro de Informações do Exército (CEI), como responsável pela Casa da Morte, no Rio de Janeiro, local de prisão, tortura e execução de vários presos políticos à época da ditadura militar.

Há várias gerações, os Etchegoyen estão ligados ao Exército Brasileiro e às conspirações e revoltas militares ocorridas desde o início do século passado. Na década de 1920, os então tenentes Alcides e Nelson Etchegoyen sublevaram o regimento de infantaria montada de Cruz Alta (RS) para impedir a posse do presidente Washington Luís. Em 1930, o tenente Alcides, avô do general Sérgio Etchegoyen, participou da revolução que derrubou a República Velha. Durante o governo Vargas, serviu no gabinete do Ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, e foi Chefe de Polícia no Distrito Federal. Em 1954, Alcides assinou o Manifesto que exigia a renúncia de Getúlio Vargas.

Alcides deixou dois filhos militares: Cyro e Leo Guedes, pai do general Sérgio Etchegoyen. Leo participou do golpe de 1964, foi secretário de Segurança Pública no Rio Grande do Sul até 1965 e assessor do ditador-presidente Emílio Garrastazu Médici, durante o período mais truculento da repressão política no Brasil. No mesmo período, Cyro trabalhou com o general Milton Neves, chefe do CIE.

Com a abertura “lenta, gradual e segura” promovida pelo ditador-presidente Ernesto Geisel, os Etchegoyen perderam espaço no Exército, mas voltaram a ter destaque durante o governo do ditador-presidente João Baptista Figueiredo, ex-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) e o último governante da ditadura militar de 1964/85. Leo ocupou o posto de chefe do Estado Maior do comandante do 2º Exército (SP), Milton Tavares. Cyro chefiou a 2ª Seção do Estado Maior, encarregada das Informações. Juntos, os irmãos Etchegoyen foram os responsáveis pela repressão às greves no ABC paulista, em 1979, no início da reorganização do movimento sindical brasileiro e da ascensão de Luís Inácio Lula da Silva.

Como se vê, não é qualquer general, nem ele fala apenas por si. Além de membro de uma família de militares ligada à linha-dura do Exército, o general Sérgio Etchegoyen integra o núcleo radical da atual linha militar bolsonarista, ao lado dos generais Villas-Boas Corrêa, Braga Neto e Augusto Heleno, entre outros que arquitetaram a candidatura de Jair Messias Bolsonaro e deram sustentação ao seu governo.

O general Villas-Boas relata em seu livro de memórias sua participação na derrubada de Dilma e no emparedamento do STF para não conceder habeas-corpus para Lula e impedir sua candidatura em 2018. Bolsonaro declarou certa vez que deve a Villas-Boas ter chegado à Presidência da República e que o segredo que eles compartilham jamais será revelado.

O general Braga Netto, ex-Chefe da Casa Civil e ex-Ministro da Defesa da Bolsonaro, integrou a chapa de Bolsonaro como candidato a vice-Presidente da República e, segundo notícias veiculadas recentemente pela imprensa, foi “a locomotiva” para debater medidas para uma possível solução (jurídica ou não) para uma revisão do resultado eleitoral, fosse a aplicação irregular do artigo 142 da Constituição Federal, fosse a decretação do Estado de Defesa com a criação da denominada “Comissão de Regularidade Eleitoral”, conforme a minuta de nítido conteúdo golpista encontrada na casa do ex-Ministro da Defesa de Bolsonaro, Anderson Torres, que assumira a Secretaria de Segurança do DF nas vésperas da intentona.

O general Heleno foi ajudante de ordens do general Silvio Frota, que se opôs à abertura de Geisel e tentou derrubá-lo da Presidência da República, ao que se seguiram diversos atentados a bomba em todo o país, inclusive o tragicamente famoso ataque frustrado ao show no Primeiro de Maio no Rio Centro. No governo Bolsonaro, ele foi Chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), onde lotou mais de 1.200 de militares ideologicamente alinhados com o bolsonarismo e que, sintomaticamente, não informaram os riscos existentes nas manifestações programadas para o dia 8 de janeiro.

Ao que tudo indica, é por esse núcleo que fala o general Sérgio Etchegoyen. Impossibilitados de se manifestar pela dupla derrota a que foram submetidos, a eleitoral e a de oito de janeiro de 2023, os generais que ocuparam a linha de frente do governo Bolsonaro delegaram a ele a tarefa de tentar emparedar Lula da Silva e seu governo.

As ameaças proferidas pelo general Sérgio Etchegoyen são claras e seus objetivos intimidatórios são explícitos. Afirmar que o presidente da República “perdeu a confiança” de parte das Forças Armadas, além de petulância, é insubordinação grave. É tentativa de inverter as posições de comando a fim de submeter a autoridade presidencial à tutela militar. Não cabe ao Comandante Supremo das Forças Armadas depender da “confiança” de seus subordinados. O poder civil ordena e o poder militar deve se submeter a ele, sem qualquer tergiversação.

Afirmar que a fala do presidente foi uma “profunda covardia”, além de ofensa inadmissível, é explicitação da visão descabida que o segmento golpista das Forças Armadas tem do papel da sua corporação e de sua submissão constitucional ao poder civil. “Covardia”, na opinião do núcleo militar golpista reverberada pelo general Sérgio Etchegoyen, é não dar oportunidade de resposta aos generais “ofendidos”, segundo sua percepção, que, afirma ele, não podem ir aos jornais para rebater o presidente da República!

Em que país do mundo democrático cabe aos integrantes das Forças Armadas, desde generais integrantes do Alto Comando até soldados engajados nas tropas, debater e, ainda pior, se contrapor às palavras do Presidente da República, seu superior hierárquico supremo?

As declarações do general Sérgio Etchegoyen são provocações calculadas e exigem punição. Os integrantes do núcleo duro bolsonarista estão testando o novo governo. Usam palavras duras para aparentar força. Lastreados no medo que historicamente exerceram sobre a sociedade e os poderes civis brasileiros, tentam paralisar o novo governo e submetê-lo ao seu controle. Ameaçam rebelião, mas sabem que depois da intentona de oito de janeiro não têm condições de deflagrá-la, pois estão desprestigiados junto aos três Poderes da República, à opinião pública nacional e à comunidade internacional. Blefam, mas precisam ser enquadrados constitucionalmente para que jamais consigam reaglutinar forças para tutelar a sociedade civil brasileira.

Um exemplo do passado precisa ser lembrado. Em 1955, a vitória e a posse de Juscelino Kubistchek foram contestadas pela velha União Democrática Nacional – UDN (vivandeira de quarteis, onde cotidianamente clamavam por intervenção militar, antecipando-se ao bolsonarismo do século XXI), no que era seguida pelos setores mais retrógrados da Igreja Católica de então e pela imensa maioria da mídia corporativa. Na ausência de urnas eletrônicas, arguiam a necessidade de maioria absoluta para o reconhecimento da vitória eleitoral, exigência que não constava na Constituição Federal e que nunca havia sido reivindicada para o reconhecimento de qualquer eleição anterior.

Foi preciso a intervenção do Ministro da Guerra, o marechal Henrique Duffles Teixeira Lott, expoente da legalidade e da submissão das Forças Armadas à Constituição e ao Poder Civil, para garantir a posse de JK. Lott ameaçou bombardear os quarteis no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, que ameaçavam se insurgir. Jânio Quadros, precursor dos procedimentos de 2023, não transmitiu a faixa presidencial.

Depois de eleito, JK foi alvo de revoltas militares ao longo de seu governo. A primeira ocorreu 10 dias após sua posse, que aconteceu no dia 31 de janeiro. Militares da Aeronáutica sequestraram aviões, aquartelaram-se em Jacareacanga (PA) e tomaram três outros pequenos povoados da região, exigindo a destituição de Juscelino. Diante da recusa da Aeronáutica de punir os rebeldes, Juscelino mobilizou paraquedistas e tropas do Exército e dominou a sublevação no dia 29 de fevereiro.

No dia seguinte, sem contar com a força política necessária para manter as punições, JK enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei que anistiou todos os militares envolvidos nas tentativas de golpes antes e depois de sua posse. Incentivados pela impunidade, militares da Aeronáutica e do Exército repetiram a quartelada menos de quatro anos depois, em dezembro de 1959, quando tomaram novas aeronaves e se instalaram em Aragarças, nas imediações do local onde haviam se alojado anteriormente, e de onde foram novamente evacuados.

Que as revoltas de Jacareacanga e Aragarças sirvam de exemplo e de alerta ao governo Lula.

Na plenitude de prestígio que o início de mandato delega a qualquer governo e que foi reforçado pelas cenas de imbecilidade desencadeadas no dia 8 de janeiro, repercutidas pelos veículos de mídia de todas as modalidades e de todas as partes do mundo, o presidente Lula detém legitimidade e poder político para exercer plenamente a autoridade que lhe foi conferida pelas urnas e agir com rigor e urgência. A inabilidade dos golpistas colocou nas mãos de Lula uma oportunidade única, que não pode ser desperdiçada.

Os militares (e os policiais) que participaram, se omitiram, apoiaram e/ou planejaram a intentona de 8 de janeiro de 2023 desde os seus primórdios precisam ser investigados a fundo e punidos exemplarmente. Nesse grupo se incluem também os militares que ousaram e ousam se manifestar de forma intimidatória e afrontosa à autoridade civil.


* Professor de Ciência Política da UFRGS, aposentado, e integrante das coordenações do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e da RED – Rede Estação Democracia.

Imagem em Pixabay.

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