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Opinião

Sem ajuste de contas não iremos muito longe

Sem ajuste de contas não iremos muito longe

Artigo por RED
13/10/2022 05:45 • Atualizado em 14/10/2022 12:19
Sem ajuste de contas não iremos muito longe

De JOSÉ CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO*

Vivemos momentos históricos no Brasil neste mês de outubro de 2022. Ao contrário do que possa parecer, contudo, o tempo histórico não se limita a datas fixas no calendário, ele está enraizado, vai e volta, como as ondas.

Nosso senso comum, filho da noção moderna de progresso, porém, teima em separar os momentos e isolá-los em compartimentos estanques. Para ele, o passado passou, não importa mais, e o presente escapa pelos dedos na busca de um futuro com o qual se sonha, mas que nem sequer existe.

Em 2018, com a ajuda do complô ilegal e criminoso da lava-jato, Lula não pôde concorrer às eleições, abrindo o caminho para a vitória da extrema direita, que surfava a onda do antipetismo no seu auge.  Bolsonaro e seus cúmplices, sem hesitação, atacaram sistematicamente as conquistas civilizatórias e democráticas do país, construídas com muito esforço nestas mais de três décadas de redemocratização. Para isso, reforçaram e construíram uma visão negacionista da história de violência e desigualdade do país.

De acordo com esta visão, o Brasil não é racista (negação da escravidão de ontem e de hoje e dos seus efeitos), o machismo e a homofobia não existem, sendo uma expressão da vontade de Deus (negação do patriarcado), não há fome no país (negação da miséria e da desigualdade social), o país protege suas florestas (negação da destruição ambiental), as pessoas indígenas devem ser incorporadas à “civilização” (negação do genocídio indígena e das suas terras e culturas originárias) e não houve uma ditadura civil-militar e sim um regime para “salvar” a democracia (negação dos crimes contra a humanidade praticados por agentes públicos e seus cúmplices e negação das suas vítimas).

A negação do nosso passado de violência, discriminação e autoritarismo se materializa em mais violência, discriminação e autoritarismo. O caminho necessário para de fato avançar rumo a uma sociedade mais justa, solidária e menos violenta é começar por reconhecer a injustiça e dar a ela a dimensão que merece, ou seja, para ir para a frente precisamos olhar para trás.

O primeiro passo é não negar a injustiça e a violência. É preciso esclarecê-las, especialmente quando são o resultado da ação institucional, da instrumentalização das instituições públicas, estatais, muitas vezes em conluio com poderosos grupos privados.

Também é preciso reparar as vítimas e responsabilizar os agentes que praticaram tais atos abomináveis. Por fim, é preciso construir processos educativos e reformas institucionais para que tais atos não voltem a acontecer. Sem tais sinalizações seremos prisioneiros de um looping infindável.

O que estamos vivendo no Brasil, desde 2016, porém, não é só a negação, mas também a repetição das violências e injustiças.

Na votação do impeachment fraudulento da Ex-Presidenta Dilma Roussef, o então deputado federal Jair Bolsonaro homenageou Carlos Alberto Brilhante Ustra, um notório torturador assim declarado com decisão transitada em julgado pelo judiciário brasileiro.

Em 2017, o então juiz Sergio Moro e o então procurador Deltan Dallagnol, com a colaboração de juízes do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e de outros agentes públicos, entabularam criminoso conluio para condenar, encarcerar e retirar Lula da disputa eleitoral de 2018.

Nos anos de 2019 a 2022 houve celebração do golpe de 64 e da ditadura que a ele se seguiu, promovida pelos altos comandos das Forças Armadas, e autorizada pelo Poder Judiciário.

A partir de 2019, a então ministra dos direitos humanos, Damares Alves, juntamente com os conselheiros por ela nomeados na Comissão de Anistia cometeram crime de prevaricação ao utilizar-se de uma Comissão de Estado criada por lei para fazer justamente o contrário do que ela deveria fazer e para destruir o trabalho por ela feito por mais de uma década.

Também a partir de 2019, o então ministro do meio-ambiente Ricardo Salles aliou-se a madeireiras e mineradoras para passar a boiada de destruição do meio-ambiente e de parte expressiva das nossas florestas nativas.

Durante a pandemia, o então Presidente da República estimulou abertamente a desobediência às normas sanitárias estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde, sabotando os esforços feitos para conter a veloz contaminação por COVID-19 e depois se posicionando contra a vacinação, além de ter sido criminosamente relapso na compra de vacinas e em face de esquema de propina denunciado. Como resultado, o Brasil assistiu à morte de mais de 600 mil pessoas.

A lista é muito maior. E ao nos depararmos com diversos representantes das forças armadas, oriundos dos altos comandos reproduzindo o mesmo discurso de segurança nacional e intervindo abertamente na política do país, inclusive com ameaças a instituições como o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, muitos se lembraram que o país foi bloqueado pela anistia de 1979 e não fez qualquer responsabilização dos agentes da ditadura.

Quando o Supremo decidiu em 2010 fazer a mesma interpretação da ditadura para a lei de anistia, ele foi complacente com o golpismo e com a prática sistemática de crimes contra a humanidade, imprescritíveis, e depois foi cobrado em duas condenações pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

O Brasil tem o péssimo hábito de ser complacente e de querer negociar sobre premissas que jamais poderiam ser negociadas. Não se pode tolerar o nazismo, a tortura, a ditadura, a perseguição política deslavada, o cerceamento das liberdades públicas, as omissões e ações criminosas que resultam em mortes de centenas de milhares de pessoas.

Mais uma vez estamos no limiar de uma possível transição. Caso Lula consiga vencer as eleições de 2022, teremos mais uma oportunidade de fazer nossos ajustes de contas, mas se uma vez mais as forças democráticas e emancipatórias do país entenderem em sua maioria prevalecente que responsabilizar os agentes públicos criminosos é algo inútil ou contraproducente, ou que recuperar o limite necessário entre a barbárie e a civilidade emprestando às palavras seu sentido autêntico é algo que pode ser indefinidamente adiado, estaremos mais facilmente à mercê do golpismo, do autoritarismo e do fascismo.

Não podemos avançar sendo complacentes com a injustiça. Primeiro temos de reconhecê-la. Em qualquer tempo, seja o genocídio indígena, a escravidão ou as ditaduras. Tarefa sempre urgente e necessária, por mais que o tempo passe. Enquanto não for feita, seus efeitos traumáticos estarão sempre vivos e pulsantes. Reconhecer, reparar, educar, lembrar, reformar, responsabilizar. Sem conjugar estes verbos não iremos muito longe.


*Jurista e Professor Universitário no RS, Sócio Fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD, Ex-Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

 

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