Destaque
Rubens Paiva e Vladimir Herzog
Rubens Paiva e Vladimir Herzog
Por LENEIDE DUARTE-PLON*
Militares brasileiros copiaram métodos da Guerra da Argélia.
No meu livro “A tortura como arma de guerra-Da Argélia ao Brasil”, (Civilização Brasileira, 2016) – finalista do Prêmio Jabuti e do Prêmio Biblioteca Nacional de 2017 – fruto de muitas pesquisas na França e no Brasil e entrevistas com protagonistas da História da Guerra da Argélia, principalmente o general Paul Aussaresses – considerado o chefe dos esquadrões da morte sobretudo na Batalha de Argel, em 1957 – demonstrei como a Escola Francesa da guerra contrarrevolucionária ou antissubversiva foi um marco teórico para os militares que implantaram a ditadura de 1964 no Brasil.
Ao ler Services Spéciaux-Algérie 1955-1957, de autoria do general Paul Aussaresses pude constatar estarrecida que as mortes de Rubens Paiva e Vladimir Herzog, em 1971 e 1975 respectivamente, foram uma espécie de replay, reedição de dois casos ocorridos alguns anos antes, na guerra da Argélia.
O modus operandi dos casos Paiva e Herzog se assemelha, nos mínimos detalhes, ao que se passara na Argélia, em 1957: o chefe da Frente de Libertação Nacional Larbi Ben M’Hidi – um resistente nacionalista tão importante para os argelinos quanto Jean Moulin, morto sob tortura pela Gestapo, para os franceses – teve, como Herzog, sua morte sob tortura (nas mãos dos homens de Aussaresses) atribuída a um suicídio por enforcamento. E o jovem professor de matemática Maurice Audin, como Rubens Paiva, teve seu desaparecimento transformado em “evasão”.
Os corpos de Audin e Paiva nunca foram encontrados.
Os militares brasileiros aprenderam com seus colegas franceses todas as lições da “guerra contrarrevolucionária”. Os “mestres” em técnicas de interrogatório e no controle das populações civis, desaparecimentos e execuções sumárias disseminaram seu saber entre alunos aplicados.
Rubens Paiva – Rio de Janeiro, 20 de janeiro de 1971
O deputado federal Rubens Beirodt Paiva, eleito em 1962 por São Paulo, pelo Partido Trabalhista Brasileiro, não conheceu Maurice Audin. Mas no filme macabro da ditadura brasileira, os roteiristas de farda lhe atribuíram praticamente o mesmo papel do jovem professor de matemática: um prisioneiro que foge numa transferência de prisão. No caso de Paiva, ele teria sido sequestrado por outros “subversivos”.
Rubens Paiva participara em 1963 da Comissão Parlamentar de Inquérito (cpi) que investigou as atividades do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – Instituto Brasileiro de Ação Democrática (ipes-ibad), que ajudou a preparar o golpe militar. Entre outras coisas, essas instituições financiavam palestrantes e escritores para denunciar a “ameaça vermelha” no Brasil. O deputado foi cassado dia 10 de abril de 1964, pelo ato Institucional editado no dia anterior.
No final de 1970, Rubens Paiva fora a Santiago do Chile. O eixo Paris-Argel-Santiago era o centro nevrálgico da diáspora brasileira. Mas os perseguidos por crimes políticos eram seguidos, vigiados e tinham suas organizações infiltradas permanentemente por agentes secretos do sni (Serviço Nacional de Informação) nas três capitais. A viagem de Paiva fora, portanto, monitorada por agentes do sni.
Dia 20 de janeiro de 1971, a casa de Rubens Paiva, no Leblon, foi invadida por pessoas armadas de metralhadoras, sem apresentar mandado de prisão mas se dizendo da Aeronáutica. Rubens Paiva acalmou-os e saiu de casa dirigindo seu próprio carro.
Desde então, foi dado como desaparecido. Nota oficial dos órgãos de segurança informou que dois dias depois, ao ser transferido da prisão ao Centro de Operações de Defesa Interna (Codi), o carro que o conduzia foi atacado por indivíduos desconhecidos que o teriam sequestrado. Em suma, o preso teria fugido com a ajuda de cúmplices.
Na realidade, Rubens Paiva morreu por causa dos ferimentos devidos à tortura. Segundo testemunho do médico do exército Amílcar Lobo, que o examinou, o ex-deputado morreu após diversas sessões de tortura.
Na carta que escreveu em 1971 ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, criado em março de 1964, com base em relato de testemunhas – inclusive a professora Cecília Viveiros de Castro que entrevistei para meu livro – Eunice Paiva afirmava que seu marido provavelmente começara a ser torturado no mesmo dia de sua prisão, durante o interrogatório feito na 3ª Zona Aérea, no Aeroporto Santos Dumont, sob o comando do brigadeiro João Paulo Penido Burnier. Nesse mesmo local morreu o estudante Stuart Angel Jones, obrigado a respirar o escapamento de um jipe até morrer.
O brigadeiro Burnier, um homem de muita imaginação, é o mesmo que concebeu um sinistro plano que por pouco não foi executado: queria que seus comandados fizessem explodir o gasômetro do Rio para acusar os comunistas da autoria do crime.
Até hoje, o corpo do deputado Rubens Beirodt Paiva não foi encontrado, mas em 1996 Eunice Paiva, sua viúva, recebeu um atestado de óbito reconhecendo oficialmente a morte, graças a uma Lei sobre os Desaparecidos. Um dos filhos do deputado, o escritorMarcelo Rubens Paiva escreveu no jornal O Estado de S. Paulo, de 25 fevereiro de 2014:
Em 1996, pegmos o metrô até o cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais – Primeiro Subdistrito da Sé. Os funcionários estavam assustados com a quantidade de fotógrafos e cinegrafistas. Mal sabiam que se fazia História naquele cartório abafado e comum.
Um cordão da imprensa respeitou nossa passagem. A escrevente substituta Cibeli da Silva Bortolotto entregou o atestado: “Certifico que, em 23 de fevereiro de 1996, foi feito o registro de óbito de Rubens Beyrodt Paiva. Profissão, engenheiro civil. Estado civil, casado. Natural de Santos, neste Estado. Observações: Registro de Óbito lavrado nos termos do Artigo 3º. da Lei 9.140 de 04 de dezembro de 1995.
Meu pai morria pelos termos da Lei 9.140, 25 anos depois de ter morrido por tortura.
Na saída, Eunice Paiva sorriu, falou com a imprensa e ergueu o atestado de óbito como um troféu.
Origem da “escola francesa”
A Escola Francesa foi teorizada durante a guerra da Argélia (1954-1962) pelo coronel Roger Trinquier no livro “La guerre moderne”, estudado e citado por militares norte-americanos e sul-americanos. Desde a guerra da Indochina os franceses torturavam, mas a defesa e a sistematização da tortura foi intensificada na guerra da Argélia, entre outros, pelo coronel Marcel Bigeard, num manual chamado Le Manuel de l’officier de renseignement [Manual do oficial de informação], publicado pelo Exército Francês e impresso pela editora Lavauzelle, em Paris. O manual contém técnicas de torturas sistematizadas na Argélia. O livro teria sido divulgado e utilizado por numerosos serviços de informação, inclusive os de Augusto Pinochet, de Saddam Hussein e dos Estados Unidos no governo de diversos presidentes.
Foi Roger Trinquier o primeiro militar francês a se debruçar sobre os textos de Mao Tsé-Tung para entender a estratégia da “guerra revolucionária” na Argélia, semelhante à guerra que os franceses haviam enfrentado (e perdido) na Indochina. Depois dele, Charles Lacheroy também leu Mao e criou em Paris cursos sobre a guerra contrarrevolucionária. Lacheroy foi o primeiro a utilizar o termo “guerra revolucionária” para qualificar a guerra feita pelo Việt Minh. No livro de Mao, “A estratégia da guerra revolucionária na China”, publicado em 1936 e traduzido para o francês em 1950, o jovem coronel Lacheroy viu pela primeira vez o conceito de “guerra revolucionária” e a partir dele criou o seu antídoto, a “guerra contrarrevolucionária”, que os militares sul-americanos adotariam depois com entusiasmo.
*Leneide Duarte-Plon é jornalista brasileira radicada em Paris.
Foto de capa: Vladimir Herzog e Rubens Paiva, respectivamente – Divulgação/Instituto Vladimir Herzog / Divulgação
Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.
Toque novamente para sair.