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Opinião

Retrato de um gaúcho

Retrato de um gaúcho

Artigo por RED
22/09/2022 12:37 • Atualizado em 23/09/2022 20:58
Retrato de um gaúcho

De ONDINA FACHEL LEAL*

Nas mãos eu tinha a câmera com uma pesada objetiva e carregava uma bolsa a tiracolo com outras lentes e filmes. Estava no meio de um amontoado de pessoas vestidas com trajes gauchescos que se acotovelavam nas calçadas do centro de Alegrete. Era o vinte de setembro de 1987, o dia da Festa Gaúcha − assim a chamavam −, e eu assistia a um interminável desfile de homens montados, os cavalariços. Um palanque de autoridades, algumas arquibancadas na calçada do lado oposto ao palanque. Alto-falantes estrategicamente distribuídos pelas ruas principais, sem cessar, tocavam músicas gauchescas e anunciavam pessoas importantes. Honrarias e discursos. Falas entremeadas com propagandas de alguma casa comercial da região, um carrapaticida infalível, um fabricante de selas de montaria de qualidade garantida. Depois de alguns discursos exaltando a data Farroupilha, com mais ufanismo do que precisão histórica, começam a anunciar os diferentes piquetes: gaúchos montados, organizados em grupos, desfilam em sequência e são aplaudidos pela atenta plateia, que em alguns momentos, na passagem de um grupo especial, os ovaciona.

Lá se iam algumas horas entre esperas e a passagem de pelotões de homens montados, exibindo suas cuidadas pilchas: botas, bombacha, chapéu, guaiaca, lenços. Cavaleiros carregando bandeiras que indicam seu pertencimento a uma estância, agremiação ou piquete de CTG. Cada grupo com a bandeira com o brasão onde se lê “República do Rio Grande do Sul”, por vezes trazia, além dessa, outra bandeira e insígnias. Cavalos e cavaleiros marcham. Belas montarias em seus melhores aperos. Seria impensável um gaúcho não desfilar montado. Nestas ocasiões, prêmios e títulos são dados aos gaúchos pilchados com mais esmero, e o mesmo para os cavalos melhor pilchados. O locutor, mestre-de-cerimônias do evento, talvez com imperceptível ironia, usava o mesmo nome para o título: o prêmio iria para as pilchas mais cuidadas e mais tradicionais do homem e outro prêmio seria para o cavalo de melhores pilchas.

Era o segundo ano que eu vinha assistir ao desfile naquela cidade. A cena, ainda que cheia de detalhes, me parecia monótona. Repetia para mim mesmo que era importante estar ali, já que o evento era algo que com muita antecedência mobilizava conversas e preparativos dos peões na estância, onde, durante meses, todos aguardavam ansiosos a data da grande Festa Gaúcha.

Eu permaneço ali, meio perdida no burburinho e na multidão. Cavalos e homens garbosos, aplausos, apupos, música, trotes e ruídos. Confesso: cansada, entediada mesmo e ainda sem entender o que entusiasmava a toda aquela gente e, sobretudo, aos peões da estância, os que desfilariam e os que vieram assistir à festa. Pensei no livro La Tierra in Piazza, sobre o Palio de Siena, um clássico da antropologia. Teria que relê- lo. Ou não. Quem sabe, deveria seguir o conselho de seu Venâncio, o velho peão que veio comigo da estância para a cidade. Ele sempre me dizia que eu tinha que aprender as coisas olhando para o mundo e não para os livros. Professava que para saber sobre os gaúchos eu tinha que estar com os gaúchos − com isso eu concordava plenamente e fiz de seu Venâncio meu parceiro de andanças, aquilo que os livros que ele não gostava chamaria de informante-chave.

Através de minha teleobjetiva tento localizar seu Venâncio. Viemos da estância em meu carro no dia anterior. Ele não desfilaria, me disse que “estava sem pernas”, o que significava que estava sem seu cavalo, por isso veio comigo. O descubro atento em meio à multidão: estava totalmente pilchado e com um sorriso no rosto que não combinava com meu estado de amuamento. Havia trazido consigo um pacote, me dissera que era uma “camisa nova para a Festa”. Ele estava impecável em suas bombachas domingueiras, com bordados quadriculados de cima a baixo nas laterais, botas lustradas, camisa branca armada por seus ombros eréteis de dignidade, um radiante lenço vermelho no pescoço e, com muito cuidado, carregava em suas mãos um algodão-doce cor-de-rosa. Não resisti: enquadrei-o, e bati uma foto. Pensei no retrato emoldurado: seu rosto de pele escura, de um marrom acobreado, nariz aquilino, sulcos profundos em sua face − alguns dos anos, outros das lidas. Sua postura e feições eram cheias de altivez: suas mãos, fortes e rústicas, em primeiro plano, contrastavam com a delicadeza com que carregava o grande tufo de algodão-doce espetado em um longo palito.

Ele era um peão mais velho, o mais antigo na estância, “de muita sabedoria”, diziam todos, “mas que já não dava para todo o tipo de lida campeira”. Venâncio raramente saía da estância e me contou que já “tinha dois anos que não vinha à cidade”. Esse ano aproveitou, “porque deu de vir de boleia”. Seu Venâncio tinha um meio sorriso nos lábios, estava sublime com seu lenço que me disse ser “maragato”, e com aquele extraordinário algodão-doce cor-de-rosa em suas mãos era uma imagem perfeita de tudo que poderia significar aquela celebração para ele: orgulho e encantamento. Ao nos encontrarmos nas arquibancadas, explicou que comprara o algodão para a filha de sua sobrinha. Nos dias na cidade, estava ficando na casa de sua sobrinha, que morava nos arrabaldes, já mais velha e adoentada, e não tinha podido vir assistir ao desfile. Ele voltaria comigo para a estância quando eu retornasse. Combinei de buscá-lo bem cedo, na próxima manhã, no mesmo endereço onde eu o havia deixado.

No dia seguinte, em nosso caminho de retorno à estância, a viagem se anunciava tranquila, teria poeira pelo percurso de mais de duas horas pela estrada de chão. Mas por aqueles dias não havia chovido, então não haveria barro, e meu velho Opala não ficaria atolado, como já tinha acontecido em outras ocasiões. Em nossa vinda para a cidade, dois dias atrás, não tinha conseguido convencer seu Venâncio a usar o cinto-de- segurança durante a viagem. Dessa vez, estava contente, falador, e antes mesmo de eu reclamar me pediu ajuda para colocar o cinto. Fomos conversando durante o longo percurso até a estância, com algumas paradas para enfrentar pequenos obstáculos na estrada precária − um buraco, algumas pedras ou uma vaca errante. Seu entusiasmo com os festejos farroupilhas era contagiante.

Perguntei sobre suas origens, pois tinha escutado um dos peões chamá-lo carinhosamente “preto velho”. Ele me disse que era “um legítimo pelo-duro, filho da pátria gaúcha”, e que tinha “sangue farrapo”. Seu avô (ou seria seu bisavô? Hesitou) – lhe contaram − tinha chegado a lutar naquela guerra que tinha durado muito tempo. Disse que antes, quando ainda era jovem e tinha o porte e força de um “verdadeiro gaúcho”, lhe chamavam também de Mouro, com o “u” marcando o ditongo. Um de seus patrões lhe dissera que tinha mesmo cara de mouro. E Mouro ficou seu nome por muito tempo. Perguntei sobre seu lenço maragato. Ele disse que o pai tinha lutado na outra revolução, “a de 93”, e o pai era um maragato, então ele também era. “Porque essas coisas de lado certo da peleia, a gente herda”. E que “na banda de lá” – se referia ao Uruguai – “sempre fui colorado”. Entendi que na percepção de seu Venâncio, ser maragato, rojo ou colorado era opções equivalentes e sua fidelidade era indicada por herança e pela cor vermelha. Fiquei pensando que as guerras e disputas naquela região podiam ser narradas através da história de gerações de senhores e de peões. Eram as gerações anteriores e retalhos de memória recontada a respeito de antepassados que organizavam o sentido das guerras e as próprias histórias de vida. Lutar por alguma coisa − não estava muito claro o quê − era o que dava sentido à vida. “Hoje era o dia”, me disse ele, “de celebrar as lutas passadas que nos deram esse baita-chão e a liberdade”.

Achei que seria abusivo eu ainda indagar sobre o que seria essa liberdade. Mas ocorreu-me, lembrando o seu retrato com o algodão-doce cor-de-rosa em suas mãos, que tinha a ver com o nome do sentimento que dava aquilo que lhe preenchia o peito e estampava satisfação em seu rosto naquela imagem captada na festa que dizia sua.

*Antropóloga, autora de Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no pampa. Tomo Editorial, 2020.

Imagem em Pinterest.

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