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Artigo por RED
06/06/2024 14:03
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De NORA PRADO*

A Avenida Guaíba, aqui na orla de Ipanema, voltou a ser trafegável embora ainda tenha vários pontos alagados e muita areia recolhida no meio fio das calçadas. A inundação violenta desta área trouxe uma grande quantidade da areia da beira do rio para cima da avenida. Mas o que impressiona é a quantidade de muros e gradis destruído pela força das águas. Muitas casas estão com as suas fachadas em petição de miséria. Muros de pedra ou de tijolos, que pareciam tão robustos, estão completamente desmanchados sobre o chão. Não resistiram a impetuosidade da água e do vento. Há também muitos entulhos que saíram do interior das casas alagadas, revelando o lado sombrio destes tristes dias. São os nossos vizinhos perdendo parte das casas e tudo o que havia dentro.

Já mencionei, por aqui, a sorte que tivemos de a água ter chegado até a nossa esquina e parado. Se continuasse a avançar, alcançaria a nossa casa e seríamos mais uma família desabrigada cuja casa foi alagada. Há muitos móveis, sofás, mesas, cadeiras e material irreconhecível num amontoado disforme, aumentando a sensação de desamparo sobre a nova paisagem de uma região, outrora, tão bonita e bucólica.

Essa sensação de incredulidade e desterro certamente está sendo partilhada, aos milhares, em todos os pontos do Rio Grande do Sul. Gente que perdeu inclusive a própria rua com todas as casas desabadas, incapazes de reconhecer o que era tão próprio e íntimo. Perder o senso de pertencimento é uma das piores coisas que pode acontecer a um ser humano. Essa chaga permanecerá viva, latejando como quando se perde um membro e há aquela pontada invisível, lembrando a toda hora do que não existe mais.

Há um trauma coletivo em andamento, junto com o luto, essa sensação de orfandade irreparável martelando na cabeça. Noites mal dormidas e um aperto no coração que chora pelo que passou. Pelo que a água levou para sempre. Passeio pelo facebook e vejo o que sobrou de uma biblioteca alagada de um amigo. Quantas preciosidades destruídas. Quantas lembranças subitamente soterradas, mergulhadas na fatalidade do lodo.

O que fazer dentro de uma casa vazia, despida de todos os seus sinais de vida? Sua mobília, quadros, objetos, a decoração específica e toda a atmosfera que lhe conferia a própria identidade?
Quantos estarão apenas com um colchão, travesseiro e cobertas trazidas do abrigo? Quando terão móveis, novamente, e a televisão para os momentos de lazer? Quanto tempo levará para constituir a antiga casa novamente em lar? São questões que surgem em minha imaginação, tão impressionada com esta desgraça.

Enquanto isso, milhares de pessoas se aglomeram em filas para receber o auxílio emergencial, justamente para comparar o básico e consertar o que ainda for possível, como geladeira, fogão e máquina de lavar. Recomeçar a vida do zero, para muitos, será tarefa das mais difíceis. Principalmente para quem não tem mais casa para voltar. Viver meses dentro de abrigos insalubres e áridos, com a sua intimidade devassada me parece torturante, mas é o que temos por hora.

Resistir a essa espera é um verdadeiro teste de resistência que exigirá paciência e flexibilidade. Que as equipes responsáveis pela reconstrução do estado sejam mais céleres no planejamento e soluções para os milhares de desabrigados que anseiam por ter um lar para chamar de seu novamente.

Porto Alegre, 05 de junho de 2024.

*Atriz, Coaching para Cinema e Televisão, Arte Educadora, Poeta e Fotógrafa.

Foto: Foto: Gilvan Rocha/Agência Brasil

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