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Opinião

Relatos Selvagens

Relatos Selvagens

Artigo por RED
24/11/2023 05:20 • Atualizado em 28/11/2023 09:24
Relatos Selvagens

De RENATO STECKERT DE OLIVEIRA*

“Relatos Selvagens” é um filme argentino de 2014, dirigido por Damian Szifrón, que quase levou o Oscar e a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2015.

São seis estórias independentes entre si, mas com um motivo comum: pessoas vivendo situações cotidianas nas quais se deparam com pequenos incidentes, medos infundados ou não ou mesmo a opressão de órgãos do Estado que deveriam existir para protegê-las e, sem alternativas para se defender, liberam seus mais baixos instintos. Enfim, situações cotidianas que degeneram na mais pura selvageria.

O cinema argentino conquistou sua grandeza examinando sem piedade e sob os mais diversos ângulos a própria sociedade argentina. Lembremo-nos de “O Segredo dos Seus Olhos”, de Juan José Campanella, com Ricardo Darín, que levou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010; de “Nove Rainhas” (2000), de Fabián Bielinsky, com o mesmo Ricardo Darín; ou de “O Cidadão Ilustre” (2016), de Gastón Duprat e Mariano Cohn, com Oscar Martinez, para ficarmos apenas nestes, que sequer constituem uma amostra do que os hermanos têm para nos oferecer. “Relatos Selvagens” se inscreve na mesma linha, com o adendo de que sua temática é mais universal. Afinal, sabemos muito bem o que significa viver num país com instabilidade social, imprevisibilidade nas relações humanas, ineficiência do Estado e outras mazelas. E, sobretudo, sabemos muito bem o que significa a vontade de chutar o balde.

Pois elegendo Milei os argentinos não fizeram outra coisa se não chutar o balde. Da privatização das baleias à dolarização da economia, passando pela extinção do Banco Central e pelo rompimento com o Vaticano, sem falar na venda de órgãos humanos, Milei não apresentou nenhuma proposta digna do nome. Em lugar de apontar para o futuro, pregou explicitamente um retorno ao passado. Mais precisamente, ao século XIX, quando, segundo ele, a Argentina era a maior potência do mundo, o que é uma mentira grosseira. Mas, frente a um candidato que representava o presente e, igualmente, não apresentou nenhuma proposta de futuro, los hermanos votaram majoritariamente em Milei. E, entre os jovens, essa maioria foi acachapante.

Há óbvias comparações com o fenômeno Bolsonaro. Creio que são exageradas. Em primeiro lugar, Milei não é um defensor descarado da violência como forma de controlar problemas sociais. Segundo, e mais importante, sua vitória não foi o resultado de manipulações jurídico-eleitoreiras e policialescas. Para ganhar, não precisou ter o seu principal oponente impedido de concorrer, como aqui. Sua vitória foi legítima. O que a explica?

Temos que partir de um dado: pelo menos 70% dos argentinos entre 18 e 35 anos nunca conheceram um emprego formal, e, pior, não têm a menor perspectiva de um dia vir a conhecer. E lá, como aqui, vota-se a partir dos 16 anos. Ora, esses pós-adolescentes, em sua imensa maioria, são filhos de pais desempregados e só conhecem esta realidade desde que nasceram. Esse imenso contingente eleitoral expressou uma motivação básica nas urnas: chutar o balde! Entre um candidato que propunha a continuidade de um presente insuportável e outro que propunha a volta a um passado mítico, não tiveram dúvidas.

O que será daqui para a frente? Embora o buraco político e econômico seja imenso, as incógnitas são maiores. Dado significativo, em seu discurso de vitória o até então histriônico e provocador Milei miou. Mostrou-se cordato e, afora duas ou três frases que não causaram nenhuma surpresa, manso. Dado mais significativo, seus eleitores celebraram a vitória muito comportadamente, se é que a celebraram. O que mostra que não são seus fiéis seguidores, e sim, que votaram esperando as mudanças prometidas, sobretudo empregos. Se elas não vierem, o que, salvo milagre, é o infinitamente mais provável, será difícil criar factóides que mobilizem essas “bases” contra os “inimigos da Pátria” e a “casta corrupta da política” para se manter no poder, até porque enfrentar os peronistas nas ruas pode-lhe ser fatal.

Enfim, esperemos. Por enquanto, é hora de rever “Relatos Selvagens”.


*Sociólogo, professor aposentado da UFRGS, foi secretário de Estado de Ciência e Tecnologia do RS e secretário de Estado Adjunto do Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia do RS.

Imagem: divulgação.

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