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Reflexões sobre a guerra de Israel contra o povo palestino

Reflexões sobre a guerra de Israel contra o povo palestino

Artigo por RED
19/09/2024 13:00 • Atualizado em 19/09/2024 16:00
Reflexões sobre a guerra de Israel contra o povo palestino

Por TADEU VALADARES*

O fato de nossas desgraças serem em grande medida sistêmicas é, de certa forma, motivo de desespero, já que pode ser extremamente difícil mudar os sistemas. Mas também é motivo de esperança”. (Terry Eagleton, Esperança sem otimismo, p. 180).

“Every person born into the world represents something new, something that never existed before, something original and unique…If there had been someone like her in the world, there would have been no need for her to be born” (Martin Buber citado em John Diamond, Narrative means for sober ends, p. 78).

“Il n´y a pas lieu de parler de réconciliation entre nous et les Arabes d´Eretz Israel, ni maintenant, ni dans un avenir proche”. (Vladimir Z. Jabotinsky, Le Mur de Fer, 1923).

“After the formation of a large army in the wake of the establishment of the state, we will abolish partition and expand to the whole of Palestine” (Ben-Gurion. In: Simha Flapan, The Birth of Israel. p. 22).

“If we stop the war now, before all its goals are achieved, this means that Israel will have lost the war, and this we will not allow” (Benjamin Netanyahu. Entrevista recente à CNN).

“… quando invece lo sforzo delle forze revoluzionarie è insuficiente per prendere il potere, e allo stesso modo insuficiente è la forza della reazione a riassicurare il vechio potere, allora “avviene la distruzione reciproca delle forze in conflitto com l´instaurazione della pace dei cimiteri, magari sotto la vigilanza di una sentinella straniera”. (Massimo L. Salvadori citando Antonio Gramsci em Gramsci e il problema storico della democrazie, Einaudi, 1970, p. 138).

Comecemos por simplesmente registrar notícias circuladas nesta segunda-feira, 18 de março, a respeito da guerra imposta há mais de cinco meses pelo estado de Israel ao povo palestino em Gaza.

Haaretz, o mais importante jornal israelense, destacou que: (i) em Gaza a situação é de fome catastrófica. O total de famintos passa de 1 milhão e 100 mil pessoas; (ii) o Secretário Geral da ONU, Antonio Guterres, denunciou esse estado de coisas com sombrio comentário: “Este é o número mais alto de pessoas enfrentando fome catastrófica jamais registrado”. Em nenhum outro lugar isso ocorreu; em nenhum outro momento, realçou Guterres; (iii) o Ministro para Assuntos de Política Externa da União Europeia, o espanhol Joseph Borrell, opinou, um tom abaixo na escala harmônica, que “Israel está provocando fome em Gaza”; e (iv) a reação da chancelaria israelense foi típica: “É tempo de o ministro Joseph Borrell parar de atacar Israel e reconhecer nosso direito de autodefesa contra os crimes do Hamas”.

Passemos do plano declaratório a dados estatísticos que conformam um conjunto macabro: (a) de 7 de outubro até 18 de março, 31.726 palestinos, 2/3 deles mulheres, crianças e idosos, pereceram em Gaza. Vidas ceifadas pela máquina de guerra israelense, escândalo que a Corte Internacional de Justiça, apresentada a queixa da África do Sul, aceitou considerar com vistas a, no devido tempo longo, definir se a guerra contra a população de Gaza é genocida ou não. Por enquanto, a Corte, obedecendo aos ritos processuais, admitiu apenas a plausiblidade de que crime de genocídio esteja sendo cometido por Israel.

(b) os desaparecidos sob escombros são mais de 7 mil; e o total dos feridos – também eles em sua imensa maioria mulheres, crianças e idosos – era, dia 18, quase 74 mil.

Até alguns dias, portanto, a guerra imposta a Gaza vitimou 112.518 palestinos. Essas cifras que são muito mais do que números (pensemos na frase de Martin Buber), significam que cada uma das vítimas, tanto as palestinas como as israelenses, é ou foi um mundo total ou parcialmente destruído. A essa realidade entre estatística e buberiana há que agregar: desde o início da guerra isaelense mais de 400 palestinos foram assassinados na Margem Ocidental. Como se não bastasse, o ministro da Segurança Nacional, Ben-Gvir, anunciou que a partir do início das operações em Gaza foram emitidas mais de 100 mil autorizações para aquisição de armas. Pensemos nos colonos israelenses na Cisjordânia e na permanente cumplicidade entre eles e as forças israelenses que dominam os territórios ocupados. Pensemos no que esse tipo de notícia nos diz quanto à violência colonial que também se abate, embora com menos intensidade, na Cisjordânia sob ocupação.

Para completar o quadro: em 7 de outubro passado, os combatentes do Hamas, da Jihad Islâmica e de outros pequenos grupos anticoloniais que resistem à opressão israelense recorrendo à luta armada – direito-limite dos povos colonizados, reconhecido pela Assembleia Geral das Nações Unidas em especial por meio da resolução 37/43 – realizaram sua maior e mais importante operação insurgente. O resultado – espantoso para todos nós, mas especialmente traumático para o Estado sionista, a sociedade israelense e as chamadas forças de defesa – foi a morte de 1.200 pessoas, entre civis e militares; ferimentos em mais de 3.000; e aprisionamento de contingente de militares e civis que hoje, após as trocas havidas durante o primeiro cessar-fogo, é estimado em 129 pessoas.

Esses dados nos indicam que o total de mortos e feridos israelenses é de 4.329; que o total de mortos e feridos palestinos alcança 112.518 pessoas; que a proporção entre uns e outros é de 26 mortos ou feridos palestinos para cada morto ou ferido israelense. Também nesse tétrico balanço comparece a desproporcionalidade brutal da reação de Israel aos ataques dos grupos armados que operam a partir de Gaza. Guerra de escarmento, guerra de punição e expulsão coletiva da população a pretexto de eliminar o Hamás e os outros grupos armados, coisa aparentemente impossível.

Passemos às notícias circuladas em 19 de março por The Guardian, jornal de referência que pode ser considerado ‘pendant’ do israelense Haaretz.

Naquela data, o cotidiano britânico informou que as continuadas e significativas restrições impostas pelos militares israelenses à entrada de ajuda humanitária em Gaza, somadas à maneira implacável como as forças sionistas continuam a conduzir suas operações bélicas, poderiam estar sinalizando a operacionalização de estratégia centrada na imposição de morte por fome. O jornal fala em ‘starvation’ e, com o característico comedimento britânico, sugere que ‘starvation’, no caso, parece ser crime de guerra.

Ainda segundo The Guardian, o Programa Alimentar Mundial – a maior agência humanitária do planeta – estima que um mínimo de 300 caminhões com alimentos deveria ingressar diariamente na Faixa de Gaza para atender de maneira muito precária às necessidades imediatas da população faminta. No dia 17, observa o periódico, 18 caminhões receberam autorização da potência ocupante para ingressar naquele território. Sabemos, os que se informam, que a insuficiente quota de 300 caminhões/dia é preenchida apenas de raro em raro.

Outra notícia importante: a ideia, flutuada pelos EUA e outros aliados e parceiros ocidentais, de reinstituir a Autoridade Palestina na Faixa de Gaza, mereceu reação imediata de Benjamin Netanyahu: “Trazer a Autoridade Palestina para Gaza é trazer uma entidade comprometida com a destruição do Estado de Israel. Não há diferença entre sua meta e a do Hamas. É uma entidade que educa para o terrorismo; que recompensa atos terroristas. A ambição da inteira liderança palestina, qualquer que seja sua forma, é a eliminação dos sionistas.”

Importante, nesse contexto, correlacionar as manifestações extremistas de Benjamin Netanyahu desde 7 de outubro último com os resultados das pesquisas de opinião realizadas em Israel após iniciada a guerra contra o povo palestino em Gaza. Um exemplo talvez seja mais do que suficiente.

Em 21 de fevereiro passado, transcorridos mais de quatro meses da guerra declarada por Tel Aviv, o Instituto Democracia de Israel realizou pesquisa de opinião que lhe permitiu detectar o seguinte: 63% dos judeus israelenses se opõem à criação de Estado palestino. Isso, obviamente, dá uma medida da rejeição da grande massa da população judia de Israel à “solução dos dois estado”’, ideia que, lançada 87 anos atrás (Relatório Peel, 1937), foi encampada pela ONU quando do reconhecimento do Estado de Israel em 1948 e da partilha da Palestina histórica. No longo caminho que levaria à criação de dois estados, o máximo alcançado foi inscrito nos fracassados processos de Oslo I e II (1993 e 1995). A ideia da criação de dois estados, quando a área em princípio destinada à consagrar a territorialidade palestina se tornou coleção de bantustões, volta a flutuar depois de seu evidente naufrágio. A imaginação criadora de políticos e diplomatas reduziu-se a esforços retóricos.

De acordo com a mesma pesquisa, 71% dos entrevistados acreditam que o eventual estabelecimento de um Estado palestino manteria ou aumentaria o ‘terrorismo’; 51% dos indagados consideram improvável uma vitória completa das forças israelenses na guerra iniciada por Israel em 7 de outubro; mas em fevereiro passado 75% dos cidadãos judeus israelenses (a opinião dos ‘árabes israelenses’, cidadãos de segunda, é naturalmente outra) aprovavam a planejada operação militar contra Rafah, território reduzidíssimo onde se concentraram, para escapar da matança iniciada em outubro, mais de 1.5 milhão de palestinos. Esse, em linhas gerais, o ‘estado de espírito’ nada sionista-buberiano que há tempos anima ampla maioria dos nacionais israelenses.

À luz desses dados, e da fé no uso de força cega que esse ‘estado de espírito’ confirma, há que registrar: (1) a guerra genocida contra a população de Gaza – por mais que em termos jurídicos continue no limbo do plausível, junto com Soderini e as crianças não-nascidas – tem tudo para durar muito mais do que nós, todos horrorizados, possamos imaginar; (2) essa é uma guerra já perdida por Israel ao menos em duas frentes: a da batalha pelos corações e mentes da chamada ‘opinião pública mundial’ e a da mobilização das ruas por movimentos sociais, partidos, sindicatos e mais, críticos do estado sionista.

A batalha pela conquista da ‘opinião pública global’ inclui sua fração ocidental, de fato a única verdadeiramente importante para Israel. Tal batalha parece perdida para o estado sionista, apesar de todos os esforços dos que, sionistas ou não, apoiam a guerra. Na segunda frente, de caráter complementar-operacional ‘vis-à-vis’ a primeira, o conjunto dos movimentos contrários à guerra e às práticas militares de Israel, também dá sinais de ser vitorioso nas ruas.

Dito em outros termos, a dinâmica das mobilizações em favor de Israel, contraposta à que pede sua condenação política, ética e moral, junto com a imediata cessação da guerra, ganha força, espaço e público à medida que a barbárie continua a imperar em Gaza. Os argumentos sionistas, não sem motivos, perdem densidade à luz da realidade marcada pelos massacres diários amplamente difundidos nas várias mídias. No limite e no prazo longo, o apoio popular à Palestina, aos de Gaza e aos da Cisjordânia pesará decisivamente. Por enquanto, isola mais e mais o estado sionista e os governos e movimentos que o apoiam.

Mesmo no plano simbólico, sempre tão difícil de conceituar com precisão, é fácil perceber: esvai-se o mito da democracia israelense, ao mesmo tempo em que se afirma visão contraposta, a que entende o estado sionista como encarnação de uma das últimas expressões históricas do colonialismo europeu de povoamento, no caso de Israel agravado, tal como na África do Sul ‘boer’, pela dimensão aparteísta de fundo étnico.

Em suma, na luta ideológica Israel já não tem como eficazmente se contrapor às críticas de fundo tanto político quanto ético e moral. Isso está ocorrendo, com intensidade e ritmos distintos, tanto nos EUA quanto no Canadá, Reino Unido, Irlanda, Europa continental, Austrália e Nova Zelândia. Em alguns desses países e regiões, a derrota ‘in fieri’ começa a ficar clara. Em outros, ainda se encontra no estágio de acumulação de forças. De todo modo, o vetor final parece estabelecido: o futuro se configura extremamente negativo para Israel. Essa tendência geral se aplica com ainda maior força, naturalmente, a todo o mundo árabe, a todo o mundo islâmico, aos países em que minorias muçulmanas são importantes. Nesse registro, pensemos na África, sobretudo. Mas esse mesmo movimento, ainda que comparativamente bem menos potente, também está presente na América Latina.

Apesar disso, e a despeito dos primeiros ‘sinais de insatisfação’ emitidos ao longo das últimas semanas por líderes ocidentais (Biden, Borrell, Macron, etc.), o ‘crescendo’ da mobilização popular de fato não chegou a se aproximar minimamente de seu objetivos maiores: a cessação da guerra e a criação da espantosa possibilidade de se estabelecer a paz. A questão é tão intratável que nem mesmo hipotético segundo cessar-fogo com seis semanas de duração, medida que efetivamente nada resolve, foi até agora conssensuado. Mesmo que venha a se concretizar, a adoção da medida por si mesma nada resolve, apenas interrompe o massacre.

No plano estritamente jurídico, o processo aberto pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça muito provavelmente conduzirá, em 2, 3, 4 anos ou mais, à condenação de Israel pelo crime de genocídio. Mas no plano estritamente jurídico o crime ainda não é crime, o genocídio não passa de hipótese plausível. No plano do real cotidiano, por outro lado, o plausível já se metamorfoseou, dada a brutalidade dos fatos, em genocídio escancarado.

Passemos a outro nível de análise.

Em texto anterior, postado no site A Terra é Redonda menos de duas semanas atrás, utilizei como epígrafe outra frase de Vladimir Jabotinsky, o mais importante, o mais claro e o mais duro formulador de uma variante específica de sionismo, a revisionista, antípoda do sionismo filosófico em muito idealista, humanista, ético, cultural e moral defendido por Buber e Scholem.

A variante revisionista de sionismo, em sua dureza e pureza, tornou-se progressivamente mais forte na Palestina histórica e, depois, no estado de Israel. Mas a conquista da primazia ideológica foi lenta, o sionismo revisionista havendo sido minoritário desde a década de 20 do século passado até ao menos a guerra de 1967. A partir de então cresceu muito, embora só viesse a alcançar o poder executivo dez anos depois, quando Menachem Begin, sionista revisionista histórico, tornou-se primeiro ministro.

Para Vladimir Jabotinsky – cujas ideias estrategicamente decisivas foram elaboradas num texto curto, datado de 1923 e intitulado A muralha de ferro – um acordo entre os judeus em Eretz Israel e o ‘povo árabe” (Jabotinsky não reconhecia um povo palestino, apenas o povo ou a nação árabe) não era premente. Ao contrário, deveria ser evitado a todo custo. Prioritário era construir a Muralha de Ferro – sinônimo de força militar e capacidade estratégica incontrastáveis – capaz de impor a vontade de poder sionista ao povo árabe, isto é, ao povo árabe em Eretz Israel e ao restante da nação árabe circunvizinha. Essencial: a Muralha teria de ser forte em tal escala que tornasse impossível qualquer ameaça ou mesmo influência árabe. Só então, para Vladimir Jabotinsky, um acordo entre os dois povos seria possível e necessário. Só quando a correlação de forças viesse a ser totalmente favorável ao povo judeu, só quando fosse definitivamente quebrada a espinha dorsal da resistência do povo árabe, o lado sionista se disporia a efetivamente ‘negociar a paz’.

Noutras palavras, a ideia fundamental – a Muralha de Ferro como sua metáfora – era fortalecer Israel ao máximo em termos estratégico-militares internos, enquanto que, no plano externo, os sionistas construiriam alianças pragmáticas com uma ou outra das grandes potências ocidentais com interesses geopolíticos permanentes, de caráter colonial, no Oriente Médio. Assim, se pensarmos em Maquiavel, de certa forma ocorreria um feliz encontro entre ‘virtú’ (a muralha interna) com ‘fortuna’ (as alianças pragmáticas que reforçassem, no plano geopolítico mais amplo, a dominância sionista). Assim procedendo, a população judia na Palestina da década de 1920 e o futuro estado de Israel estariam em condições de afinal impor um ‘acordo’ entre uma parte imensamente forte e outra praticamente indefesa.

Vladimir Jabotinsky, reconhecido pela extrema direita sionista como seu ‘maître penseur’, é o fundador do sionismo revisionista, mas também foi um dos criadores da Hagannah em 1920. Essa linha do sionismo combateu todas as outras, com exceção do ‘sionismo político’ de Herz e seguidores. Ao longo de décadas, o sionismo revisionista se bateu de maneira encarniçada contra os demais integrantes do seu próprio arco ideológico, dos humanistas à Buber aos trabalhistas autointitulados socialistas, e, por óbvio, arremeteu contra os marxistas antissionistas que conseguiram transferir cerca de 40 mil judeus de esquerda para Eretz Israel durante a segunda aliá (1904-1914).

Mas o principal adversário dos revisionistas foi o sionismo trabalhista liderado por Ben-Gurion, inimigo jurado de Vladimir Jabotinsky. Ben-Gurion, em fala sintomal, apelidou Jabotinsky de Vladimir Hitler. A menção a Vladimir Hitler não é gratuita. De fato, para boa parte dos historiadores, Vladimir Jabotinsky e o sionismo revisionista eram ou bem uma expressão adaptada do fascismo mussoliniano ou, para os mais lenientes, uma forma de protofascismo europeu.

Para Michael Stanislavsky (Zionism – a very short introduction, p. 48): “Although he himself never crossed the line to full-fledged fascism … the youthful minions of his massively popular movement adopted the black-shirt uniforms of right-wing parties of the day, repeating his mantra that ‘all a Jewish boy needs to learn is to speak Hebrew and shoot a gun”. O contorcionismo apologético de Stanislavsky parece-me evidente, sua salvadora distinção entre protofacismo e fascismo ou nazismo tem o seu quê de refinamento acadêmico, mas afinal não se sustenta. Recordo, leitura minha de décadas e décadas atrás, que Curzio Malaparte, em Kaputt, se refere a Vladimir Jabotinsky como ‘o judeu favorito de Mussolini’.

Sem dúvida, a disputa mais importante no interior do sionismo foi a que se deu entre os revisionistas, por um lado, e os trabalhistas, por outro. Mas deixando a dimensão pessoal de lado, o relevante é que tanto os sionistas revisionistas quanto os trabalhistas – os primeiros abertamente, os outros de maneira mais calculada, em geral encoberta – obedeceram à lógica da Muralha de Ferro. Ambos a implantaram. Os trabalhistas, na era Ben-Gurion do Israel inicial; os revisionistas, sobretudo a partir de 1977. Begin, o primeiro dos primeiros-ministros revisonistas. Benjamin Netanyahu, a encarnação mais recente. Essa é, de maneira algo sumária, a tese defendida pelo historiador israelense Avi Shlaim em sua obra maior, lançada em 1999 sob o título A muralha de ferro, Israel e o mundo árabe. O longo texto, mais de 700 páginas, mereceu uma atualização do autor, artigo circulado em 2002: “A Muralha de Ferro Revisitada”.

Para Avi Shlaim, depois de um certo tempo, depois, no meu entender, de 1967, mas sobretudo depois de 1977, tanto os revisionistas quanto os trabalhistas passaram a pensar Israel e sua relação com o ‘povo árabe’ a partir do eixo central conformado pelas ideias de Vladimir Jabotinsky devidamente atualizadas. Hoje, tudo parece indicar que a metáfora da Muralha é compartilhada pela maior parte da elite sionista israelense, das forças armadas, da academia, e também pela mídia que conta e, mais importante de tudo, pelo eleitorado de Israel, isto é, pela fração do povo formada pelos cidadãos de primeira classe, os judeus israelenses, sejam eles sionistas ou não. Certo, minorias continuam a existir. Minorias continuam a criticar. Minorias persistem na oposição. Mas a caravana da maioria é que atravessa o deserto.

A tese de Shlaim, chave que em muito ajuda a explicar o que ocorre no Estado e na sociedade israelense atuais. Contribui para entendermos o porquê de a intransigência de Israel ‘vis-à-vis’ a Palestina e seu povo ser completa, nisso Benjamin Netanyahu sendo apoiado pela massa dos cidadãos judeus, incluídos os que o querem ver fora do poder e, se possível, na prisão. A agressividade permanente de Israel contra os vizinhos árabes – nem falemos do Irã –o, e a virulência sem limites contra o povo palestino também são iluminadas pela metáfora de Vladimir Jabotinsky.

Entretanto, claro, isso deve ser realisticamente matizado. A oposição é frontal entre Israel, estado e sociedade, e os povos árabes, mas o pragmatismo que a um só tempo marca as elites árabes e sua congênere israelense permite entendimentos sólidos e duradouros entre elas. O maior exemplo, a relação entre Israel e o Egito pós-Nasser. Seu maior projeto, o que estava sendo concretizado via acordos Abraão. No fundo do palco, o desejo sionista revisionista, hoje sionista em geral, de construir o Grande Israel às expensas do povo palestino. No fundo do palco, a imensa distância árabe entre elite do poder e povo.

Porque aceito, inda que parcialmente, a interpretação elaborada por Avi Shlaim, é-me difícil acreditar que o Israel de hoje, o de Benjamin Netanyahu, e o Israel de amanhã, provavelmente o de Benny Gantz, sejam substantivamente diferentes. A visita de Benny Gantz a Washington e sua mensagem a Camila Harris e Joe Biden, similar às de Benjamin Netanyahu. Isso proclama que Netanyahu e Ganz são partes de um mesmo todo, o todo claramente pensado por Vladimir Jabotinsky, o todo metaforizado pela Muralha. Se estou no certo em alguma medida, então, até mesmo por derivação, é de se esperar que nenhuma liderança sionista atual tenha flexibilidade política, ideológica e até mesmo axiológica para satisfazer as demandas mínimas, eleitoralmente angustiadas, dos seus principais aliados e parceiros ocidentais.

De certa maneira, também o Ocidente, não apenas Israel, tornou-se prisioneiro da Muralha de Ferro. Para o Ocidente estendido, esse que vai da América do Norte à Oceania, passando pela Europa, por Israel, pelo Japão, pela Coreia do Sul e outros aliados e parceiros, o nome atual desse cárcere com muros altos talvez seja “cumplicidade ocidental no genocídio em Gaza”. E se fechamos ainda mais o círculo da mentalidade revisionista, tudo fica mais claro: a psicologia de massa do eleitorado israelense, traduzida nas pesquisas de opinião pública circuladas pós-7 de outubro, denota algo desesperador. As pesquisas dizem aos gritos que a grande maioria dos judeus israelenses se tornou, estejam eles conscientes disso ou não, sionista revisionista na maneira de ver e pensar o mundo, por trabalhistas que muitos deles se proclamem. O complexo da Muralha de Ferro tornou-se artigo de consumo corrente. A Muralha se constituiu como parte indeclinável da psique nacional israelense fundada nas ideias antagônicas de cerco e de expansão.

Porque penso assim, vejo com profunda frustração que o futuro da questão palestina – a ‘questão árabe’ de Vladimir Jabotinsky – não tem como, no prazo de muitos meses ou mesmo de poucos anos, alcançar o seu momento superior, a definitiva libertação palestina do jugo colonial sionista, sucessor do jugo colonial britânico. Porque penso assim, a tesoura do realismo cortando rente as asas do desejo, continuo a situar ainda muito longe aquilo por nós todos desejado, o desenlace vitorioso da luta secular da Palestina por sua autodeterminação.

A guerra genocida imposta à população de Gaza decerto fará avançar o processo a um custo humano incalculável. Mas a vitória decisiva ainda se esconde por trás da linha do horizonte. Por isso mesmo, a luta do povo palestino por sua libertação nacional se tornou o exemplo mais duro, na escala planetária da arena internacional, de equilíbrio catastrófico a ser positivamente transformado. Em meio à catástrofe em curso, fiquemos com nossa única certeza: a libertação nacional do povo palestino é inelutável.

Viva a Palestina livre! Libertas quae sera tamen!

*Embaixador aposentado.

Foto: REUTERS/Liesa Johannssen

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