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Realidades de um ano instável
Realidades de um ano instável
Por LÉA MARIA AARÃO REIS*
Em meio à torrente de filmes brasileiros que chegam às telas dos cinemas, e alguns tentando subir nas plataformas de streaming, uma coprodução latino-americana, A Filha do Pescador, se incorporou à presente amostra do pacote de cartazes que procuram atrair o espectador durante essas pequenas férias de meio de ano.
Na mesma embalagem são trazidos à luz das redes sociais e à reflexão nos debates, vídeos, filmes e filmetes realizados durante o período da ditadura civil-militar de 64. É preciosa memorabilia que apresenta às gerações dos jovens de hoje as sombrias realidades, em imagens, do tempo político de repressão, opressão, censura, violência, assassinatos, prisões, exílios e torturas, e de amplas redes de corrupção metodicamente organizadas pelos que exerceram indevidamente o poder; os incansáveis que até hoje procuram se reorganizar para desfecharem novos ataques golpistas.
A Filha do Pescador é um desses filmes, uma coprodução latino-americana em cartaz com a chancela do Brasil, Colômbia, Porto Rico e República Dominicana. Dirigida pelo colombiano Edgar De Luque Jácome, conta a relação de um pescador bruto e insensível com sua filha transexual. “A Filha do Pescador é a história daqueles que precisam enfrentar seus demônios e resolver suas diferenças mais profundas, como no caso do filme, dentro de um quadro simples e poderoso como é a forte corrente do mar que os leva até a margem para uma segunda chance”, esclarece o diretor.
Em resumo: Samuel mora sozinho em uma ilha isolada do Caribe colombiano. Exímio mergulhador, vive da pesca submarina em mergulho livre. Um dia, o filho Samuelito, que ele não via há 15 anos, bate à sua porta. Agora transexual, e então conhecido como Priscila, Samuelito está em fuga e procura a casa paterna para se esconder e em busca de proteção.
A Flor do Buriti, dos brasileiros Renée Nader Messora e João Salaviza, é outro cartaz dos mais procurados nessa temporada. Foi exibido em mais de cem festivais e é vencedor de catorze prêmios, entre eles o prêmio coletivo para melhor elenco na importante Mostra Un Certain Regard, do Festival de Cannes.
O filme traz outro tema que é urgente e atual: a resistência das comunidades indígenas – no caso, os Krahô –, diante da invasão das suas terras por agricultores que se mantêm impunes pela (in)justiça do homem branco, e a firme determinação na luta desses povos diante do desrespeito aos seus territórios já demarcados.
“As diferentes violências sofridas pelos Krahô nos últimos cem anos alavancaram um movimento de reivindicação da terra como um bem maior e uma prioridade para que a comunidade possa viver digna e plenamente a sua cultura”, comenta a diretora Renée Messora. A Flor do Buriti atravessa os últimos 80 anos dos Krahô desde um massacre, em 1940, quando morreram dezenas de pessoas. Perpetrado por dois fazendeiros da região, as violências praticadas naquele momento continuam gravadas na memória das novas gerações.
A Flor do Buriti foi rodado no Tocantins durante quinze meses, em quatro aldeias dentro da Terra Indígena demarcada, Kraholândia. “Uma grande revolução seria ver filmes feitos por realizadores indígenas que conseguissem conquistar não só o Festival de Cannes, mas também os circuitos dos cinemas”, ressalta Messora. Assim como no filme anterior da mesma dupla de diretores, o festejado Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, a equipe da produção atual mesclava indígenas e não indígenas, relatos históricos baseados em conversas de contraponto à realidade atual da comunidade, que foram a base para a construção da narrativa.
Já no filme Estranho Caminho, o pano de fundo é a recente pandemia. Um jovem cineasta visita sua cidade natal, precisa encontrar o pai e é surpreendido pelo rápido avanço do coronavírus. Assim como a personagem Priscila, de A Filha do Pescador, há mais de dez anos ele não fala com esse pai. Após o primeiro encontro entre os dois, coisas estranhas começam a acontecer e a trama vai se desenvolvendo em regime de suspense. O filme foi premiado no respeitado Festival de Cinema de Tribeca e selecionado para o Festival de San Sebastián, na Espanha. Estreia nos cinemas no dia 1º de agosto.
Outra produção instigante é O Contato, que chegará dia 15 de agosto nas telas dos cinemas. Foi rodada em um município com 95% da população indígena e aborda o cotidiano de três famílias dos Yanomami, Arapaso e Hupda, vivendo em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, a região que concentra 23 etnias e 18 idiomas.
A trama é conduzida por um grupo Yanomami que transporta um filme sobre eles próprios para ser exibido na aldeia; uma mulher Arapaso que viaja até a cidade para cuidar da filha sofrendo de depressão; e uma família Hupda desejando apresentar o filho mais novo aos seus parentes.
Dirigido e roteirizado por Vicente Ferraz, o filme é dedicado à memória de Bruno Pereira, que chegou a colaborar no trabalho antes de ser assassinado, em junho de 2022, em Atalaia do Norte, no Amazonas. O Contato é falado em quatro línguas indígenas e estreou no Festival É Tudo Verdade de 2023, quando foi exibido também em Cuba, no Festival Internacional do Novo Cine Latino-Americano de Havana.
Detalhe especial: a empresa produtora de O Contato contribuiu com projetos concretos para os povos que estiveram envolvidos no filme. Entre as suas iniciativas, financiaram a reforma de um centro social, a construção de uma escola e o fornecimento de equipamentos de tecnologia para escolas e para associações das comunidades envolvidas.
Grande Sertão é uma livre adaptação de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, dirigido por Guel Arraes com roteiro de Arraes e Jorge Furtado, e interpretado por Caio Blat e Luisa Arraes. Nele, a comunidade Grande Sertão é controlada por facções criminosas, onde a luta entre policiais e bandidos se transforma em uma guerra. Riobaldo entra na luta para seguir Diadorim, cuja identidade e a paixão que ele sente são mistérios conflitantes em sua cabeça.
O Clube das Mulheres de Negócios, coprodução Brasil-França, de Anna Muylaert, está por estrear, e O Estranho, dirigido por Flora Dias e Juruna Mallon, foi destaque no Festival de Berlim. Narra a história do aeroporto de Guarulhos a partir do fato de ter sido construído em território indígena por ancestrais de uma funcionária de empresa aérea. As memórias e o futuro da moça e de seus colegas estão permeados pelos rastros do passado em um território em constante transformação.
Essa efervescência cinematográfica traz assuntos urgentes, discutidos e pensados com frequência cada vez maior pela população em geral, incluindo em lugar de destaque e como fato novo os grupos de comunidades das favelas e das periferias dos grandes centros urbanos que se organizam e produzem audiovisual.
Temas como o direito à escolha identitária, seja feminina, masculina ou bissexual. A perseguição impune a comunidades indígenas do país por fazendeiros e grupos do agronegócio. A lentidão na demarcação de terras indígenas e a fiscalização efetiva por parte do Estado para fazer respeitar esses marcos. O movimento feminista ampliado e consolidado no país, e o abismo por vezes aberto no diálogo entre os jovens de hoje e os idosos perdidos no novo emaranhado de costumes, valores e tecnologia.
Questões do nosso tempo transformadas em conteúdos de filmes brasileiros que devem ser conhecidos, que são imperdíveis e nos aproximam de algumas realidades nacionais apresentadas nesse meio de ano particularmente instável e imprevisível lá fora.
*Léa Aarão Reis é jornalista
Ilustração Marcos Diniz
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