?>

Destaque

Quanto Tempo o Tempo Tem

Quanto Tempo o Tempo Tem

Cultura por RED
07/09/2024 15:00 • Atualizado em 06/09/2024 18:45
Quanto Tempo o Tempo Tem

Por LÉA AARÃO REIS*

O título acima denomina um documentário sobre a percepção do tempo por parte do ser humano, realizado por Walter Carvalho e Adriana Dutra em 2014. No caso presente, o bordão se aplica a A Escavação (The Dig), do australiano Simon Stone, realizado em 2021, um dos filmes mais apreciados pelas plateias de plataformas de streaming. É mais um trabalho baseado no modo como utilizamos o tempo através de datas históricas, acontecimentos notáveis, ciclos da vida e, sobretudo, da ciência da arqueologia. O filme mostra como percebemos o transcorrer do tempo e o enigma contido em uma noção de tempo construída pela nossa consciência e racionalidade; mas que, na verdade, é impossível de mensurar, apesar dos esforços para balizá-lo.

Simon Stone adaptou um romance de John Preston com o mesmo nome. O conhecido escritor britânico é sobrinho de uma das personagens envolvidas nesse episódio, Margaret Piggott, como se vê no filme, uma história real que se passou em 1939, na iminência da entrada da Grã-Bretanha na guerra contra a Alemanha e do início dos bombardeios com a blitzkrieg germânica.

A história de A Escavação é a seguinte: naquele ano de 1939, uma viúva, Edith Pretty (atriz Carey Mulligan, perfeita no papel), contratou um competente escavador de terrenos, um autodidata chamado Basil Brown, para explorar uma área do seu vasto terreno em Sutton Hoo. Uma formação geológica de montes de terra próximos ao mar sugeria que ali talvez tivesse havido ações humanas e indícios disso enterrados debaixo do solo. E havia.

A descoberta arqueológica de Edith e de Basil Brown (o ator Ralph Fiennes, como sempre, empático) é hoje considerada uma das mais importantes do século 20 e a maior e mais lucrativa operação arqueológica do Reino Unido com esse tesouro descoberto e retirado das terras de Sutton Hoo.

Vestígios de uma sociedade que amava a arte, e a sua descoberta fez com que fossem revistos capítulos importantes da história europeia. Amuletos, joias e uma considerável quantidade de ouro encontrado no barco mortuário de um guerreiro da Idade Média, no total 250 objetos, encontram-se atualmente em exposição e em lugar de destaque no Museu Britânico.

O material é a prova da existência e da ação dos anglo-saxões em época anterior à dos vikings e constitui a origem da certidão de nascimento dos britânicos.

O filme rastreia, inicialmente, a trajetória de Basil Brown, um outsider que nunca cursou uma universidade, mas que estudou profundamente assuntos de seu interesse: idiomas (era poliglota), astronomia e arqueologia. Um homem livre e, esse sim, um verdadeiro libertário.

No desenrolar da trama, Brown se afeiçoa ao filho de Edith, um garoto de sete anos, Robert, que logo fica fascinado pelo escavador. Na vida real, Robert veio a ser astrônomo e morreu adulto, já maduro, em Londres.

Mais adiante, o roteiro de A Escavação se desvia desse rumo familiar e se fixa nas consequências e situações advindas dos tesouros encontrados. A doença terminal de Edith, o sofrimento do seu pequeno filho ao perceber que ficará sem a mãe, a arrogância, a cupidez e a inveja habitual dos competidores, no caso dos arqueólogos profissionais e funcionários do Museu Britânico. Esses, é claro, relutam em confiar na experiência e no talento de Brown.

O ator Ken Stott (da famosa série O Hobbit) faz um arrogante burocrata como o pomposo Charles Phillips, querendo levar o crédito pela fantástica descoberta que finalmente atrai o interesse do Museu Britânico. Novos personagens coadjuvantes surgem, com suas próprias histórias e paixões, deixando um sabor de carência no espectador, que talvez espere mais substância no amadurecimento do perfil do escavador e do seu entorno. E das relações com sua companheira, com a viúva Edith e com o menino Robert; sobretudo as querelas apenas sugeridas, entre a proprietária das terras e dos tesouros nelas encontrados e seu confronto com os burocratas.

Embora o desvio e a dispersão da narrativa possam incomodar às vezes, o filme não cai nas armadilhas do lugar-comum meloso e medíocre com vistas à bilheteira. O diretor Simon Stone é inteligente, sensível e parece ser consciente do que informa ao espectador: apenas um pequeno recorte da passagem do tempo.

Em certo momento, por sinal, ele destaca as palavras de John Preston colocadas na boca do escavador Simon Brown e ditas à viúva Edith, doente e triste por deixar o filho sozinho quando morrer. “Desde a primeira impressão humana na parede de uma caverna, fazemos parte de algo contínuo. Então, nós não morremos.”

Edith, na realidade, morreu três anos após a conclusão das escavações de Sutton Hoo. E o nome de Simon Brown só foi registrado no Museu Britânico bastante tempo depois.

*Léa Aarão Reis é jornalista.

Foto da capa: Filme: Quanto tempo o tempo tem – Divulgação.

Toque novamente para sair.