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Quando os trabalhadores ocuparam as salas de cinema

Quando os trabalhadores ocuparam as salas de cinema

Artigo por RED
12/01/2025 09:00 • Atualizado em 10/01/2025 14:21
Quando os trabalhadores ocuparam as salas de cinema

Por MICHEL GOULART DA SILVA*

Foi realizado há pouco mais de vinte anos, no final de novembro de 2004, o Festival Latinoamericano de la Clase Obrera (Felco), cujas exibições principais ocorreram na cidade de Buenos Aires. Além de um processo público de seleção, o festival teve exibições públicas realizadas todo o ano, contando com a participação de filmes do Brasil, do Uruguai, da Argentina, da Bolívia e do México. Também estiveram presentes os organizadores do Labour Fest de San Francisco (Estados Unidos) e da Coréia do Sul.

Realizaram-se vários debates, acerca de cinema, da situação política da Argentina e dos demais países, da questão da mulher, entre outros. Além disso, após cada exibição os filmes e os temas neles levantados eram debatidos. Houve uma grande participação das populações locais nas exibições feitas pelo país, além de as exibições centrais, em Buenos Aires, terem contado com a presença de cerca de quatro mil pessoas. Um dos membros da organização do festival descreveu, de modo bastante ilustrativo, as exibições em Buenos Aires:

“Os cartazes do Felco colados nas avenidas e principalmente nos cinemas da cidade, as dezenas de entrevistas de rádio realizadas por diferentes membros de Ojo Obrero, e a nota de quase uma página na mesma quinta-feira no diário Página/12, deram a este pioneiro evento cultural-militante uma importante difusão e transcendência. (…) Trinta produções de sete países latino-americanos, sem trégua, oito horas por dia e durante três dias, foram um exemplo eloquente da luta dos povos latino-americanos”.[1]

O festival, que contou com cerca de quatro mil espetadores, foi idealizado por Ojo Obrero, grupo de produção audiovisual militante existente à época na Argentina. Na sua construção, contou com a participação de diversas outras organizações e cineastas, entre os quais o coletivo de Buenos Aires do Indymedia, caracterizando uma experiência bastante rica no sentido de uma construção coletiva, mesmo partindo de pontos de vista políticos e ideológicos diversos.

Como parte das atividades locais do festival, foram realizadas, segundo os organizadores, “reuniões para debater sobre as condições de produção de nosso cinema”.[2] O festival, entre outras coisas, se constituiu em um espaço de discussão sobre políticas e programas para o setor audiovisual argentino, buscando consolidar uma rede de cooperação entre produtores e grupos de cinema militante. Entendia-se que os recursos necessários para subsidiar a produção e exibição deveriam ser arrancados do Estado, por meio do Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA).

O contexto de organização do FELCO estava marcado por mobilizações em todo o mundo, em um cenário aberto pelas mobilizações de Seattle contra a reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), em novembro de 1999. Na América Latina, como em outras partes do mundo, as principais lutas travadas pelos trabalhadores receberam de grupos de cineastas uma especial atenção.

Em 2000, o Equador foi abalado por grandes mobilizações de massas, protagonizado pelo Parlamento dos Povos, um amplo e democrático organismo de debates e deliberações, que contava com grande participação da população local. Uma insurreição em 21 de janeiro provocou o desmoronamento do governo nacional, ganhando a adesão inclusive de parte das Forças Armadas. Nesse dia, o Parlamento dos Povos instalou-se no Congresso Nacional e elegeu um novo governo, a Junta de Salvação Nacional, controlada pelo coronel Lucio Gutierrez. Entretanto, alegando respeitar a hierarquia das Forças Armadas, ele entregou o poder ao alto comando das forças militares. Restabelecida a ordem constitucional, Gutierrez seria eleito presidente em 2002, sendo, em seguida, derrubado pelo descontentamento popular.

Na mesma época, os estudantes da Universidade Autônoma do México (UNAM) resistiram, por dez meses, em uma greve contra a cobrança de taxas na universidade, sendo vitoriosos em parte de suas reivindicações. Esta greve ganhou o apoio dos trabalhadores mexicanos e a solidariedade em diversas partes do mundo.

Na Bolívia, a luta vitoriosa contra o aumento das tarifas de água, em abril de 2000, fez nascer naquele país organismos semelhantes ao Parlamento dos Povos equatoriano, além de postar o Movimento al Socialismo (MAS) e o líder cocalero Evo Morales, eleito presidente em dezembro de 2005, como as principais direções da esquerda do país. A Bolívia também voltou à cena política em 2003, inicialmente com uma série devgreves, inclusive da polícia, mas principalmente com o chamado “Outubro Boliviano”, contra a entrega do controle sobre o gás do país ao capital estrangeiro.

Em dezembro de 2001, na Argentina, aconteceu o episódio conhecido como argentinazo, quando o movimento piquetero, em unidade com sindicatos e organizações de esquerda, derrubou o governo de la Rua. Era naquele momento que as Assembleias Populares eram gestadas, e foi ao longo daquelas jornadas que os vários presidentes que assumiram o governo do país foram derrubados pela força que vinha das ruas. Ainda que a derrubada sucessiva de presidentes tenha parado, as lutas no país em nenhum momento deixaram de acontecer, sendo inclusive intensificadas, seja na unidade entre os “ocupados” e os piqueteros, seja nas ocupações de fábricas.

Naquele momento, na Venezuela, as insistentes tentativas, por parte dos Estados Unidos, de depor o presidente Hugo Chávez se mostraram infrutíferas, na medida em que a esmagadora maioria da população apoiava o presidente e a chamada Revolução Bolivariana. Esse foi possivelmente o mais importante processo político na época, na região, embora estancado pelos limites de sua direção e pelas pressões do imperialismo.

Nesses processos políticos se constituíram grupos de militantes que utilizam câmeras como principais objetos de luta. Alguns dos mais conhecidos integram os coletivos do Indymedia. Esses coletivos estavam presentes não apenas na América Latina, mas também nos Estados Unidos, seu país de origem, e na Europa. Além da cobertura escrita, publicada nos sites ou em espaços impressos, como jornais, também foram realizados relatos audiovisuais dessas lutas. Frequentemente, os coletivos do Indymedia sofreram alguma repressão, sendo evento emblemático o ocorrido em 2004, na Europa, quando foram apreendidos pelo FBI discos rígidos de computador de dois dos provedores do Indymedia.

No Brasil, se destacou o trabalho de Carlos Pronzato, argentino radicado na Bahia, que ficou conhecido pela realização de Revolta do Buzu, a respeito da luta dos estudantes baianos contra o aumento das passagens de ônibus em Salvador, em 2003. Pronzato também realizou filmes a propósito das fábricas recuperadas na Argentina, do movimento dos sem-teto no Brasil, das lutas travadas na Bolívia, do contraditório governo de centro-esquerda eleito no Uruguai, entre outros.

Contudo, foi na Argentina que se pode observar o principal processo de organização desses grupos. Os vários grupos atuantes (Ojo Obrero, Contraimagen, Indymedia, Cine Insurgente, Argentina Arde, entre muitos outros) eram extremamente heterogêneos. Outro país que se viu marcado por um conjunto de grupos audiovisuais de ativistas foi a Bolívia.

O FELCO se constituiu em uma espécie de ápice desse processo de organização de grupos de cinema militante. Um dos encaminhamentos das reuniões realizadas na primeira edição do festival foi construção de uma rede internacional, que abrangesse os países que estavam sendo representados.

De um ponto de vista mais político, na declaração final do festival, afirmava-se que a crise vivida pela humanidade era “resultado da decomposição de um regime social esgotado que só encontra na guerra e na opressão dos povos uma saída para sua crise terminal”.[3] Também foi denunciado o papel exercido pelas principais organizações de esquerda, ao resgatarem as instituições contra as quais as mobilizações de massas se colocam contra, como aconteceu na Argentina e na Bolívia.

O documento também destacou o papel desempenhado por essa mesma esquerda em países como Brasil e Uruguai, onde desviou para o campo eleitoral o descontentamento dos trabalhadores, dando origem a governos cujas políticas não eram condizentes com os programas dos movimentos sociais que diziam representar, e inclusive colaborando “militarmente com Bush na ocupação do Haiti”.[4]

Os cineastas presentes na plenária se pronunciaram “por aprofundar a perspectiva aberta pelas rebeliões populares impulsionando uma mobilização independente”, no sentido de construir a unidade das diversas lutas dos trabalhadores (operários, camponeses, piqueteros, cocaleros, mulheres etc.), buscando “uma saída política própria”.[5] Por fim, definem claramente seu papel nessas lutas: “Consideramos que nossa atividade, o cinema militante, é um aporte concreto ao processo revolucionário. Nossas câmeras devem servir a este objetivo”.[6]

Outro fato importante a salientar foi a campanha internacional realizada em apoio ao FELCO, que recebeu a adesão de cerca de trezentas assinaturas de cineastas, intelectuais, organizações políticas e movimentos sociais. Entre outros, assinaram em apoio ao FELCO cineastas argentinos como Fernando Birri e Otavio Getino, além do uruguaio Mario Handler, do brasileiro João Batista de Andrade e do britânico Ken Loach. O Movimento dos trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Brasil, por meio do seu setor de comunicação, também assinou a declaração. Essa campanha exigia, junto ao INCAA, apoio logístico e financeiro para o festival. Depois da grande pressão feita, de atos públicos realizados, de recolhidas as assinaturas, veio com grande atraso a resposta do órgão de cinema do governo argentino, fazendo várias promessas, algumas das quais foram cumpridas.

Uma segunda edição do festival foi realizada na Bolívia, no final de outubro de 2005, e a terceira em 2006, no Brasil, com exibições em São Paulo, além da realização de uma edição brasileira do festival. Sob o impacto da Comuna de Oaxaca, os presentes na plenária final afirmavam em dezembro, no documento final da edição de 2006:

“[…] Oaxaca mostra-nos que as revoltas populares continuam a varrer a América Latina, unindo camadas cada vez mais amplas da população e apelando aos métodos de ação direta. Enquanto milhões de latino-americanos estão mergulhados na miséria e no desemprego, os trabalhadores saem repetidamente para defender as suas condições de vida, salários, liberdades democráticas, o direito à habitação, à terra, à educação”.[7]

Nos anos seguintes, a realização do festival foi realizada de forma irregular, ainda que tenha chegado em sua décima edição, ocorrida na Argentina, em 2016. O enfraquecimento dessa iniciativa está associado, em grande medida, à chamada “onda de governos progressistas”, que marcou a América Latina. Nesse contexto, a própria esquerda denunciada em declarações do festival se tornou governo e, portanto, gestora da crise social e econômica que atravessava o continente. Na convocação da décima edição de 2016, afirmava-se:

“As rebeliões populares que varreram o continente no final da década de 1990 e no início da década de 2000, varrendo os apoiadores do ‘neoliberalismo’, não alcançaram o objetivo da independência. Os regimes nacionalistas ou de centro-esquerda que surgiram após estas rebeliões exacerbaram as economias primárias baseadas na pilhagem de recursos naturais, na poluição ambiental e no trabalho precário. Foram a celebração das mineradoras poluidoras, do avanço da soja, da dependência do petróleo e do reconhecimento da dívida”.[8]

O FELCO foi produto de uma época de revoltas e rebeliões, mostradas na tela pelos seus próprios participantes. Da revolta anti-imperialista de Seattle, que impulsionou a criação do Indymedia, passando pelas rebeliões no Equador, na Bolívia, na Argentina e em outros países, viu-se uma América Latina rebelde, por meio de imagens captadas por realizadores audiovisuais. Em novembro de 2004, reunidos em Buenos Aires, estes realizadores levaram à tela o que os grandes meios de comunicação e mesmo a esquerda oficial, acomodada em seus cargos de governo, como no Brasil e no Uruguai, procuravam esconder.

Essa operação de apagamento ainda permanece nas narrativas oficiais, considerando que se fala mais sobre as coalizões de partidos esquerda com setores da burguesia que subiram ao governo nos diferentes países do que nas rebeliões de trabalhadores ocorridas em todo continente no começo dos anos 2000. Essas imagens, levadas às salas de cinema, são a herança de uma época em que os trabalhadores não apenas tentaram construir seu próprio poder como buscaram captaram essa perspectiva em imagens.

 

 

[1] Hernán Vasco. Impactante evento politico y cultural: 4000 personas pasaram por el Felco. Prensa Obrera, Buenos Aires, n. 879, 2 dezembro 2004, p. 8.

[2] Ojo Obrero. Se abre camino. Prensa Obrera, Buenos Aires, n. 871, 7 outubro 2004, p. 10.

[3] Festival Latinoamericano de la Clase Obrera. Declaracion, nov. 2004.

[4] Festival Latinoamericano de la Clase Obrera. Declaracion, nov. 2004.

[5] Festival Latinoamericano de la Clase Obrera. Declaracion, nov. 2004.

[6] Festival Latinoamericano de la Clase Obrera. Declaracion, nov. 2004.

[7] Declaracion del III Festival Latinoamericano de la clase obrera (FELCO), 10 dezembro 2006.

[8] Frente de Artistas. Vuelve el Felco. Prensa Obrera, Buenos Aires, n. 1411, 18 maio 2016.

 

*Michel Goulart da Silva é Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

 

Foto de capa: Renato Araujo/Agência Brasil

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