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Opinião

QUANDO A ÁFRICA NÃO É O FUNDO DO QUINTAL: Um projeto universitário a partir das humanidades africanas na Restinga

QUANDO A ÁFRICA NÃO É O FUNDO DO QUINTAL: Um projeto universitário a partir das humanidades africanas na Restinga

Artigo por RED
27/07/2023 05:30 • Atualizado em 28/07/2023 22:37
QUANDO A ÁFRICA NÃO É O FUNDO DO QUINTAL: Um projeto universitário a partir das humanidades africanas na Restinga

De GIANE LÚCIA RODRIGUES DOS SANTOS*

JOSÉ RIVAIR MACEDO**

e SÉRGIO EDGAR DE CAMPOS***

O título deste artigo vale-se de uma expressão consagrada na opinião pública para sublinhar o lugar simbólico das pessoas negras e periféricas no imaginário da nação e, por extensão, da cidade. Ao que parece, foi Silvio Romero que, pela primeira vez, em texto escrito no ano de 1888, afirmava que nós, brasileiros, tínhamos a “África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas e a Europa em nossos salões”. Décadas mais tarde Carolina Maria de Jesus, em contundente livro-denúncia, associou os “salões” ao Palácio, o “jardim” à cidade e o “quarto de despejo” à favela, e o notável sambista porto-alegrense Bedeu, em 1983, ironizou tais lugares-comuns na saudosa letra A África no fundo do quintal. Ao partir da evocação metafórica dos lugares e não-lugares sociais, pretendemos recolocar a africanidade em outros termos ao referenciá-la não como imagem reprodutora de desigualdades, mas como símbolo de positivação de outras concepções de humanidade, inclusive na esfera da produção de conhecimento.

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Para as camadas populares brasileiras, o ano de 2022 marcou o início de uma nova Era, em renovado esforço após o período terrível da pandemia de Covid 19, do isolamento social, da política de desinformação e de esvaziamento dos serviços públicos do Governo Bolsonaro. A retomada gradual da vida social e a vitória popular no pleito presidencial que recolocou pela terceira vez no poder o presidente Luiz Inácio Lula da Silva trouxeram esperança e força para a continuidade das lutas sociais, e entre elas, as lutas em prol do ensino público de qualidade continuam a ser fundamentais.

Quando em 30 de outubro de 2022 aconteceu pela terceira vez a vitória de um metalúrgico que sempre lutou pela melhoria das condições de vida das camadas populares neste país, o resultado das urnas trouxe consigo uma chama de esperança para os(as) esquecidos(as) do governo anterior em matéria de política pública com alcance social. Um dos maiores problemas sentidos era o descaso na oferta de serviços de saúde nos bairros de periferia e para grupos considerados como minoritários. É inadmissível que um país que se coloca como uma das maiores economias da América Latina manifeste tal descaso, expresso no longo tempo perdido em filas de atendimento ou no tratamento recebido por profissionais que não hesitam em demonstrar o seu descaso diante de pessoas marcadas pela vulnerabilidade social. É de se supor que tais disparidades e tal desatenção sejam minimizadas por uma formação epistemologicamente conectada às realidades locais e sociais, em perspectiva humana solidária e integrada com a periferia.

Nesse cenário de retomada de pautas essenciais das políticas públicas, um grupo constituído por lideranças comunitárias, professores(as) e representantes dos movimentos sociais e políticos elaborou um projeto social inovador que lança as bases para uma ampliação da Universidade da Integração Luso-Afro-Brasileira, UNILAB, pela criação de um campus avançado de Saúde Pública no Bairro da Restinga, situado na Zona Sul da capital do Rio Grande do Sul.

Além de todos os méritos que um projeto de tal envergadura comporta, haverá que se considerar duas inovações que ele apresenta na geopolítica da produção de conhecimento no Brasil. Em primeiro lugar, aposta numa perspectiva de aproximação solidária e constitutiva do Brasil com as humanidades africanas, por meio da UNILAB – instituição federal de ensino que é o resultado de um dos mais arrojados projetos de internacionalizão Sul-Sul postos em prática nas primeiras décadas do século XXI pelo Governo Federal durante as administrações petistas. Em segundo lugar, aposta na viabilidade da produção de conhecimento a partir da periferia urbana, em conexão com as realidades produzidas neste espaço e a partir de referências teóricas e epistemológicas socialmente comprometidas e engajadas.

Reunião da equipe elaboradora do projeto com lideranças comunitárias da Restinga. Foto: Giane Lucia Rodrigues dos Santos.

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A Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) é uma autarquia vinculada ao Ministério da Educação da República Federativa do Brasil, com sede na cidade de Redenção/Ceará. Ela tem como objetivo ministrar ensino superior, desenvolver pesquisas nas diversas áreas de conhecimento e promover a extensão universitária, em perspectiva multidisciplinar e em sintonia com as humanidades africanas, tendo como missão institucional específica formar recursos humanos para contribuir com a integração entre o Brasil e os demais países-membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), especialmente os países africanos, bem como promover o desenvolvimento regional e o intercâmbio cultural, científico e educacional. Suas atividades administrativas e acadêmicas se concentram nos estados nordestinos brasileiros do Ceará – nos municípios de Redenção e Acarape –, e da Bahia – no município de São Francisco do Conde.

O projeto de implantação do campus da UNILAB-SUL assenta no princípio de que sejam prioritárias iniciativas acadêmicas e científicas que estejam alinhadas aos interesses das camadas populares brasileiras, majoritariamente negras e periféricas, em especial aquelas que digam respeito ao fomento e capacitação em Educação e em Saúde Pública de qualidade. A criação de um campus avançado para formação em saúde pública na Restinga pretende oferecer uma contribuição para minimizar os efeitos danosos das tentativas de desmontagem dos sistemas públicos de Educação e Saúde colocadas em prática pelos últimos representantes do Governo Federal – que gerou a retração de investimentos em estrutura de atendimento, capacitação e serviço público e dificultou a produção de conhecimento nos meios universitários, levando a uma regressão do pensamento crítico e livre e a uma disseminação massiva de desinformação, cujas consequências foram profundamente negativas para os direitos e garantias constitucionais da população brasileira em geral – e da população negra e periférica em particular.

Além de fortalecer políticas públicas que se encontram em fase de retomada e reorganização, de recuperar iniciativas públicas que fortaleçam garantias constitucionais ameaçadas durante gestões anteriores do Governo Federal, a criação da UNILAB-Sul contribuirá para o fortalecimento da aproximação entre a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), fortalecendo a relação entre os países africanos e seus descendentes da diáspora negra situados no Cone Sul. A formação de estudantes universitários de um bairro da periferia de Porto Alegre historicamente identificado com a comunidade negra mostra-se por sua vez fator de geração de conhecimento qualificado, disseminado na própria comunidade, além de contribuir diretamente para o desenvolvimento estrutural da mesma.

A UNILAB-Sul alinha-se às causas e lutas das minorias e grupos minorizados, para uma educação superior pública gratuita e de qualidade, mas o público que será contemplado pela eventual criação de um campus na Restinga vai muito além da realidade periférica específica deste bairro. Tal iniciativa é potencialmente integradora das perspectivas dos Movimentos Negros/periféricos, Movimentos Indígenas e LGBTQIAP+ ao facultar acesso a formação universitária de excelência, extensão e pesquisa em Saúde Pública e outras doenças crônicas que afetam essas populações, onde venham a ser formados profissionais para atuar nas comunidades, acumulando conhecimento teórico adequado, competência técnica e compromisso social. Neste sentido, os cursos pretendidos para funcionar no campus da UNILAB-Sul são, inicialmente: Medicina, Enfermagem, Odontologia, Farmácia e Psicologia.

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A implantação de um campus da UNILAB no sul do país, no bairro Restinga, representa igualmente uma forma de reparação frente ao histórico de discriminações que afetou a periferia da capital gaúcha. Criado na passagem dos anos 1960-1970 por uma política de segregação espacial e racial posta em prática pela administração municipal através do programa habitacional “Remover para promover”, o bairro construiu a sua história com orgulho, organização e mobilização coletiva. Junto ao Campus do Instituto Federal do Rio Grande do Sul e o Hospital Restinga e Extremo Sul, o Campus de Saúde Pública da UNILAB-SUL, ao vir a oferecer formação universitária qualificada e continuada, em diálogo com as humanidades africanas, e em conexão com as perspectivas negras periféricas, indígenas e LGBTQIAP+, poderá se transformar em espaço de formação diferencial em um país que nunca reconheceu devidamente o papel das matrizes africanas e indígenas em sua formação e existência como nação.


*UFRGS/UFRJ.
**NEABI-UFRGS.
***UFRGS/EPS.

Imagem destacada: divulgação.

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