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Opinião

Qual o preço do estresse institucional?

Qual o preço do estresse institucional?

Politica por RED
12/01/2023 14:17 • Atualizado em 12/01/2023 17:04
Qual o preço do estresse institucional?

DE CLÁUDIO GONÇALVES COUTO*

 

Os violentos episódios do 8 de janeiro representam o maior ataque à sede dos Poderes constituídos de nossa história democrática. Digo “história democrática” porque certamente, noutras quadras (não democráticas) de nossa trajetória como nação independente, coisas piores ocorreram, seja no atinente à ruptura institucional propriamente dita, seja nos meios utilizados em tentativas de derrogar a ordem constituída.

A Proclamação da República, primeiro evento marcante do aventureirismo militar na política nacional, deu-se sem maior confusão e pôs termo ao Império. Pouco depois, contudo, as duas Revoltas da Armada produziram enfrentamentos bélicos em virtude de disputas políticas opondo setores das próprias Forças Armadas – a Marinha, de um lado, o Exército, de outro. Nas mãos de militares, a República brasileira nascia como uma ditadura turbulenta, cedendo depois lugar não a uma democracia, mas a um regime oligárquico liderado por magnatas do agronegócio de então.

Na sequência, a “Revolução” de 1930, que sepultou a República Velha, também ocorreu sem maiores sobressaltos de brutalidade. Em 1937, o autogolpe de Vargas, que instituiu o Estado Novo, ocorreu sem necessidade de recorrer à violência. Bastou dar seguimento à ordem autoritária de fato vigente e alterar a ordem constitucional, abolindo de jure a separação de Poderes, o pluripartidarismo e o federalismo. Também o Estado Novo caiu sem necessidade de recorrer à força, quando, em 1945, Vargas ruma para São Borja e tem sua ditadura substituída pela nossa primeira democracia. Getúlio, contudo, seguiria integrado ao novo regime, do qual foi ator central até seu suicídio, nove anos depois.

Nesse ínterim tivemos o que talvez tenha sido o evento histórico mais assemelhado à intentona bolsonaresca do 8 de janeiro: o levante armado dos integralistas contra o Palácio do Catete, numa tentativa de derrubar a ditadura getulista, substituindo-a por outra, de corte fascista. As semelhanças estão na violência utilizada contra a sede de um Poder de Estado (o Executivo) e na inspiração fascista que a animou; as diferenças estão no fato de que ali se atentava contra uma ditadura, enquanto agora o ataque ocorreu contra uma democracia, e também na condição iletrada dos fascistas de hoje, comparada ao requinte intelectual dos líderes daquele movimento – Plínio Salgado, Miguel Reale e Gustavo Barroso.

Depois disso, a maior violência contra as instituições foi o golpe de 1964 e a própria ditadura militar que originou. Novamente, nos dois casos, a incolumidade física dos três poderes foi preservada, embora sua integridade institucional tenha sido vilipendiada por seguidos atos institucionais e outras medidas de arbítrio – como a cassação de mandatos de representantes eleitos do povo.

O bárbaros da intentona bolsonaresca do 8 de janeiro, embora admiradores do golpe de 1964 e de sua ditadura, fizeram o que nem ambos foram capazes: em sua tentativa de golpe depredaram a própria sede dos três poderes, destruindo até mesmo relíquias históricas e o patrimônio artístico. Não devemos nos espantar, afinal, isso é mesmo coisa de bárbaros. Contudo, assim como na intentona integralista de 1938, a tentativa de golpe fracassou; a reação do sistema político foi rápida e contundente, impedindo que o vandalismo patrimonial e simbólico desse lugar à subversão da ordem constitucional.

As causas do ataque às sedes dos três Poderes foram perscrutadas de forma clara pela antropóloga Isabela Kalil em entrevista concedida a “O Globo” de 10 de janeiro. Jair Bolsonaro preparou o terreno para a sublevação durante os quatro anos de sua destrutiva Presidência. Às paulatinas destruições administrativa, institucional e de políticas públicas de sua gestão, todas orientadas para o solapamento de nossa democracia, seguiu-se a dilapidação física das sedes dos três Poderes e de seu patrimônio material e imaterial. A destrutividade é inerente ao bolsonarismo: deu a tônica de seu governo-movimento e confere sentido ao movimento sociopolítico que lhe dá base. Não é estranho que a um governo de destruição corresponda um movimento sociopolítico de igual caráter.

A pronta reação de atores-chave do sistema político-institucional – Judiciário, Executivo, Legislativo e governos estaduais – foi fundamental para sua própria preservação. Aliás, durante o quadriênio da presidência Bolsonaro, a essa reação de agora correspondeu a contínua resistência dos atores institucionais: governos subnacionais lutaram pela preservação de suas competências, a cúpula do Poder Judiciário pôs freios às invectivas autoritárias do Executivo e o Legislativo (sobretudo durante o biênio de Rodrigo Maia na presidência da Câmara) brecou iniciativas abusivas do presidente.

Isso não ocorreu, como bem se sabe, no caso do procurador-geral da República, cúmplice dos abusos bolsonarescos e corresponsável pela barbárie em Brasília. Também alguns governos subnacionais foram aliados do projeto autoritário do presidente – o do Distrito Federal, com Ibaneis Rocha, um deles. Contudo, no conjunto, o sistema institucional, submetido a estresse, foi capaz de resistir – e, se não o fizesse, comprometeria sua própria sobrevivência.

Tal resistência não ocorreu sem custos. Pesquisa Atlas feita logo após o 8 de janeiro mostra que nada menos que 40% dos brasileiros acreditam na hipótese tresloucada de fraude nas últimas eleições. Contingente não desprezível deles acredita haver motivos legítimos para a intentona bolsonaresca. Ou seja, o bolsonarismo foi bem-sucedido na tarefa de erodir significativamente a legitimidade das instituições de nosso Estado Democrático de Direito. E é sobre essa legitimidade que se assenta a própria capacidade das instituições de continuarem operando.

Será que, como diria Nietzsche, o que não nos mata, nos fortalece? No curto prazo, talvez sim. Não há motivos, contudo, para garantir que assim continue sendo, ao menos sem uma resposta dura, exemplar e dentro da legalidade contra a barbárie. É preciso aproveitar a força do momento.

 


*Cláudio Gonçalves é cientista político e professor da FGV-SP

 

Extraído de: https://valor.globo.com/politica/coluna/qual-o-preco-do-estresse-institucional.ghtml

 

Foto: Elineudo Moura

 

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