Opinião
Provocações da OTAN
Provocações da OTAN
Rumo à Guerra Nuclear
De J. CARLOS DE ASSIS*
É incrível que, em plena guerra na Ucrânia, justificada pela insistência do presidente desse país, Volodymyr Zelensky, de entrar para a OTAN, o secretário geral desta última, Jens Stoltenberg, desembarcou em Kiev com a promessa de que o país seria recebido “em breve” no bloco militar ocidental. É o cúmulo da provocação aos russos. Foi justamente para evitar que a Ucrânia entrasse para a OTAN que Vladimir Putin desencadeou a guerra, em nome da segurança nacional de seu país.
No contexto geopolítico da Europa, a entrada da Ucrânia na OTAN corresponde a um novo passo no processo de estrangulamento militar da Rússia, devido ao cerco que lhe é imposto, desde o fim da União Soviética, pela adesão ao bloco de suas antigas repúblicas que se tornaram independentes. Discuti isso em artigo anterior, justificando as declarações do presidente Lula, segundo as quais as duas partes têm alguma responsabilidade pela deflagração do conflito. É a mais pura verdade.
A reação dos Estados Unidos aos pronunciamentos de Lula pela paz era esperada. Por todas as evidências, e a principal delas é o esforço norte-americano em despejar armas na Ucrânia para fazer sua guerra por “procuração”, Washington quer a continuidade do conflito, e não a paz. Nesse sentido, o discurso de Lula gera um incômodo moral, mesmo não tendo grandes consequências práticas. Essas só viriam se russos e ucranianos estivessem, também eles, interessados em acabar com a guerra.
O recado dado em Kiev pelo secretário-geral da OTAN vai pelo caminho oposto. É o caso de se pensar qual é a estratégia nesse processo dos Estados Unidos, já que dos europeus nada se pode esperar. Estes não passam de simples capachos da política norte-americana. Aceitam impor tremendos sacrifícios políticos e sociais a seus povos – como faz o próprio presidente da Ucrânia, no que diz respeito às consequências domésticas da guerra em si -, a fim de atender às ordens superiores de Washington.
O fato é que a estratégia dos Estados Unidos não passa de um blefe. Qualquer iniciante em geopolítica sabe que a Ucrânia não pode ganhar a guerra. É uma ilusão supor que um país, mesmo armado até os dentes por seus manipuladores, pode levar uma potência nuclear como a Rússia à rendição. Suponha-se que isso aconteça! O que ocorreria, nesse caso, com os arsenais nucleares russos? Moscou iria entregá-los, de forma humilhante, a Washington, que comanda a guerra por trás dos panos?
Suponha-se, por outro lado, que a estratégia ocidental seja “apenas” defender a integridade territorial da Ucrânia. Mas como conciliar isso com o imperativo de defesa nacional da Rússia? Putin havia colocado como condição para evitar o conflito um compromisso formal e “por escrito” dos Estados Unidos de que a OTAN não absorveria a Ucrânia em seu bloco. A resposta foi que a soberania do país tinha que ser respeitada. Não se deram conta de que, diante dos canhões russos, essa soberania era uma ilusão.
Nessa altura, ou acontece um milagre do tipo proposto por Lula, ou vamos para uma guerra infinita com o risco de um confronto direto entre as duas superpotências nucleares. E mesmo que os arsenais atômicos não sejam utilizados no início, podem ser usados num fim catastrófico. No início, por exemplo, poderíamos ver a Coreia do Norte se aproveitar do embaraço norte-americano com os russos para atacar a Coreia do Sul e terminar a guerra que foi interrompida em 1952 pelos Estados Unidos em nome do anticomunismo.
Washington seria desafiada em seu compromisso formal de dar proteção militar à Coreia do Sul. O Japão também seria tentado a entrar na guerra, com temor de que uma Coreia reunida sob comando do Norte representaria uma ameaça de vingança contra seus antigos colonizadores. Nessa altura, os Estados Unidos estariam guerreando em duas frentes. Mas isso não seria tudo. Uma guerra na Coreia lançaria imensos fluxos migratórios da Coreia do Norte para a China, desestabilizando um país de 1,4 bilhão de habitantes.
Além disso, diante do poder militar convencional esmagador dos Estados Unidos, a Coreia do Norte poderia perder rapidamente a guerra. Então temos que nos perguntar o que seu líder máximo, Kim Jong-um, pintado pela CIA como um paranoico, poderia fazer com seu arsenal nuclear, já capaz de atingir os Estados Unidos com foguetes intercontinentais.
Nessa situação caótica, os arsenais nucleares da Grã-Bretanha, da França, de Israel, menos expressivos, porém igualmente destrutivos, teriam que ser levados em consideração. E os efeitos de uma guerra geral no Hemisfério Norte teriam o potencial de destruir a civilização. As regiões que não fossem atingidas diretamente por explosões nucleares, no Hemisfério Sul, seriam progressivamente consumidas pela radiação atômica.
Pensar que este não seja um cenário realista é uma irresponsabilidade dos líderes políticos de todo o mundo. Uma irresponsabilidade que é também dos que, de alguma forma, têm influência moral sobre os rumos da humanidade. Daí que considero a atitude de Lula absolutamente pertinente. Achar que ele, como líder de um país ainda em desenvolvimento, não tem status político para falar de igual para igual com os demais líderes do primeiro mundo, é uma espécie de “complexo de vira-latas” que só fica bem em editorialistas de “O Globo”. Lula, quando defende a paz na Ucrânia, defende os brasileiros contra uma catástrofe atômica.
Não acho, além disso, que as declarações que Lula acaba de dar em Portugal caracterizaram um recuo em relação ao que disse na China e nos Emirados Árabes. Ele nunca igualou as responsabilidades da Rússia e da Ucrânia pela guerra. O que disse foi o óbvio: que não haveria guerra se a Ucrânia não tivesse insistido em aderir à OTAN, e se a OTAN, desde o fim da URSS em 1999, não tivesse representado um risco real de agressão contra a Rússia.
No começo desse processo de virtual anexação das ex-repúblicas soviéticas, Moscou estava militarmente muito fraca para reagir. A situação mudou tanto do ponto de vista militar, com a recuperação da Rússia nesse setor, quanto do ponto de vista político, com a ascensão de Putin ao poder. Ele deu claras mostras de que não aceitaria que a OTAN empurrasse as fronteiras da Europa Ocidental para próximo de seu quintal, através da anexação de países como Ucrânia e Geórgia. A China chegou a advertir os ocidentais a levarem a sério as manifestações de Putin antes que a guerra começasse. Nem a Rússia, nem seu principal aliado foram levados a sério.
É óbvio que o presidente Lula se referiu a isso quando observou que ambas as partes têm responsabilidade pelo início da guerra. Claro, se a “operação especial” russa tivesse tido um rápido desfecho, ela acabaria num acordo de paz baseado num compromisso formal imposto à Ucrânia para forçá-la a desistir de entrar na OTAN. O principal erro de Putin, porém foi estratégico. Seus generais não lhe garantiram uma vitória rápida. Com isso, a guerra está se prolongando indefinidamente, e a maioria das pessoas, limitando-se a ver os fatos imediatos, esqueceu-se de suas causas. Lula deu mostras de que não esqueceu.
Agora, se houver solução, ela passará necessariamente pelo tipo de iniciativa que o presidente brasileiro sugere: negociações exaustivas e diretas entre Rússia e Ucrânia, intermediadas por países que têm relações amistosas com ambas as partes, e e aceitas pelos Estados Unidos. Isso pode ser acelerado se países europeus de expressão, como Alemanha, França, Itália e Espanha, pararem, também eles, de apoiar a guerra. Seria um sinal tardio de ruptura política com Washington, que era para ter ocorrido desde a Guerra Fria, quando os norte-americanos firmaram sua hegemonia política no Ocidente.
Na economia, onde não há risco iminente de guerra, o presidente francês, Emmanuel Macron, está dando um passo importante para ficar equidistante entre as duas superpotências, os Estados Unidos e a China. Seria importante que isso se generalizasse, acabando com a política de blocos, como querem os chineses. Nesse caso, porém, é mais fácil que, a médio prazo, Washington seja derrotada. Jimmy Carter, um antigo ocupante da Casa Branca, percebeu isso e deu uma aula recente de geopolítica A Donald Trump, segundo uma reportagem da Newsweek, retransmitida pelo Tribuna da Imprensa Livre, e que reproduzo aqui:
“…Você tem medo que a China nos supere, e eu concordo com você. Mas você sabe por que a China nos superará? Eu normalizei relações diplomáticas com Pequim em 1979, e desde essa data… você sabe quantas vezes a China entrou em guerra com alguém? Nem uma vez, enquanto nós estamos constantemente em guerra. Os Estados Unidos é a nação mais guerreira da história do mundo, pois quer impor aos Estados que respondam ao nosso governo e aos valores americanos em todo o Ocidente, e controlar as empresas que dispõem de recursos energéticos em outros países.
A China, por seu lado, está investindo seus recursos em projetos de infraestrutura, ferrovias de alta velocidade intercontinentais e transoceânicos, tecnologia 6G, inteligência robótica, universidades, hospitais, portos e edifícios em vez de usá-los em despesas militares. Quantos quilômetros de ferrovias de alta velocidade temos em nosso país? Nós desperdiçamos U$ 300 bilhões em despesas militares para submeter países que procuravam sair da nossa hegemonia. A China não desperdiçou nem um centavo em guerra, e é por isso que nos ultrapassa em quase todas as áreas.
E se tivéssemos tomado U$ 300 bilhões para instalar infraestruturas, robôs e saúde pública nos EUA teríamos trens bala transoceânicos de alta velocidade. Teríamos pontes que não colapsem, sistema de saúde grátis para os americanos não infectarem mais milhares de americanos do que qualquer país do mundo pelo COVID-19. Teríamos caminhos que se mantenham adequadamente. Nosso sistema educativo seria tão bom quanto o da Coreia do Sul ou Xangai”.
Em suma, o que seria da Ucrânia se, em lugar de os norte-americanos encherem o país de armas para afirmar sua hegemonia política na tentativa de derrotar os russos, promovendo sua adesão à OTAN como um inimigo virtual deles, promovessem seu desenvolvimento econômico e social? Certamente teríamos não só a Ucrânia, mas a maioria dos países do mundo com maior acesso a riquezas materiais e maiores possibilidades de paz, porém sem hegemonia de lado a lado.
*Economista, doutor em Engenharia de Produção pela UFRJ, professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba e autor de mais de 20 livros sobre economia política.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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