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Opinião

Precisamos falar sobre o MST

Precisamos falar sobre o MST

Artigo por RED
13/06/2023 05:25 • Atualizado em 16/06/2023 15:23
Precisamos falar sobre o MST

De KATIA MARKO* e MARTA SCHLICHTING**

No dia 17 de maio de 2023, foi instalada a quinta Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na Câmara dos Deputados. A Comissão é instalada, sem objeto determinado, como uma clara tentativa de criminalizar o maior movimento popular da América Latina e para pressionar o governo Lula.

O MST já foi alvo de quatro comissões no Congresso: a CPMI da Terra, entre 2003 e 2005, a CPMI do MST, entre 2009 e 2011, a CPI Funai Incra, entre 2015 e 2016, e a Funai Incra 2, de 2016 a 2017. E o MST sobreviveu a todas, e apesar da perseguição e constante criminalização do agronegócio e da grande mídia, continuou crescendo e produzindo cada vez mais.

O MST realiza sua luta, há quase 40 anos, para que a Constituição Federal seja cumprida e a função social da terra (garantia constitucional) seja respeitada. A função social da terra é o princípio que norteia a atividade agrária. Uma propriedade cumpre sua função social quando ocorre “o uso adequado e racional dos bens naturais, na proteção ao meio ambiente e salvaguarda dos direitos trabalhistas”, conforme a Constituição.

Ocupar terras improdutivas é uma ação legítima?

A Constituição Federal não utiliza o conceito de terras improdutivas, mas afirma que as terras que não cumprem a função social serão desapropriadas e destinadas para a Reforma Agrária. Portanto, partindo deste conceito, é possível dizer que as terras que não cumprem a função social não estão protegidas pela lei. Ou seja, toda propriedade que não cumpre a sua função social pode e deve ser ocupada pelos trabalhadores rurais sem terra.

João Pedro Stedile, liderança do MST, destacou na sua entrevista ao Flow Podcast, que não apenas há terra o suficiente, mas sobra terra no Brasil. “Se fosse fazer uma reforma agrária com as grandes propriedades improdutivas, poderíamos assentar 12 milhões de famílias e somos em torno de 4 milhões de sem-terra, ou seja, faltaria sem-terra no Brasil.”

Stedile explicou que o direito à propriedade da terra não é absoluto. “Só cabe direito de propriedade de terra se você cumprir a função social, está na Constituição. A terra é um bem da natureza, ninguém construiu”, disse. “Só cabe direito de propriedade de terra se você cumprir a função social, com produção e sem trabalho escravo. A propriedade não é um direito absoluto, nem sagrado”, completou.

Qual a origem do MST?

Os movimentos sociais não ocorrem por acaso. Eles têm origem nas contradições da sociedade, o que leva parcelas ou toda uma população a buscar formas de conquistar ou reconquistar espaços democráticos negados pela classe no poder. O MST surgiu da insatisfação dos agricultores com a política de exportação que foi imposta pelo regime militar, responsável pela expulsão de milhares de pequenos agricultores do campo. Na sua origem, contou com o apoio de entidades civis, como o Movimento de Justiça e Direitos Humanos e a Igreja Católica, através da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

O movimento surgiu aqui no Sul, região em que se deu intenso processo de modernização da agricultura. A luta dos “sem terra” começou através de algumas ocupações – embrião do MST. A primeira delas foi em 1978 na Fazenda Sarandi, no município de Rondinha e Ronda Alta (RS), pelas 1.100 famílias expulsas da Reserva Indígena de Nonoai, em decorrência do conflito entre arrendatários da Funai e indígenas.

Esta ocupação resultou no assentamento, pelo governo, de parte destas famílias em projetos de colonização no Mato Grosso. Os que permaneceram na região foram organizados por membros da igreja local e, com apoio de parlamentares e entidades da sociedade civil, ocuparam em 1979, as glebas Macali e Brilhante, originando os assentamentos da Granja Macali I e II, Brilhante e Bom Retiro, em Palmeira das Missões (RS) e Cemapa, em Rondinha.

As ações dos “sem terra” vão tendo maior organicidade no Rio Grande do Sul e, com o acampamento às margens da estrada próxima à Fazenda Sarandi, surgiu o “Movimento dos Colonos Sem Terra de Encruzilhada Natalino”, em Ronda Alta no mês de dezembro de 1980. Este movimento constituiu-se no marco das lutas dos “sem terra” pela repercussão obtida, por terem conseguido a solidariedade de diversas entidades e propostas de solução por parte do governo.

O movimento de Encruzilhada Natalino serviu também para aglutinar as pessoas que lutavam pela terra em diferentes pontos do estado. Como exemplo disso tem-se, em 1979, a questão ecológica, que explodia como uma bomba na região de Carazinho. Havia muita gente morrendo e sendo ferida pelos venenos agrícolas. Pelas colônias proliferavam grupos de jovens que brigavam pelo meio ambiente. Um deles, em Não-Me-Toque, era liderado por um jovem seminarista, Sérgio Antônio Gorgen. Ele conheceu o padre Arnildo Fritzen na Natalino e o convidou para dar uma palestra para o grupo. Logo após o Frei Sérgio se integrou à luta pela terra.

Mas o episódio dos “sem terra” de Encruzilhada Natalino não foi isolado. Ações semelhantes eclodiram em outros estados. Em 1980 deu-se a ocupação da Fazenda Burro Branco em Campo Erê (SC), com mais de 300 famílias, e a da Fazenda Primavera em Andradina (SP). Em 1981, em decorrência da construção da hidrelétrica de Itaipu, formou-se o Movimento dos Agricultores Sem Terra do Oeste do Paraná (MASTRO) a partir do Movimento Terra e Justiça, enquanto movimento dos expropriados pela construção da barragem.

No Mato Grosso do Sul também proliferaram conflitos, nos quais os fazendeiros tentavam despejar centenas de famílias que viviam como parceiros – agricultores que trabalham com suas famílias, arrendam uma terra de outro e fazem uma parceria – nas fazendas e estes mesmos passaram a ocupar as terras.

Em outros estados, como Bahia, Rio de Janeiro e Goiás, também aconteceram ocupações de terra, por parte de famílias que se organizaram para isso. No entanto, não havia nenhum contato entre uma ocupação e outra. A partir de 1981, passaram a realizar-se encontros entre as lideranças dessas lutas localizadas. Esses encontros eram promovidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

A CPT foi criada em 1975, no Encontro Pastoral das Igrejas da Amazônia Legal.
O trabalho da CPT coincidiu com o de outras ações pastorais de alguns padres e bispos em outras regiões do país, como foi o caso do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia, Maranhão e Goiás. Rapidamente, espalhou-se por todo o Brasil e em 1979 já eram quinze as suas regionais. No entanto, essa expansão só se dava nas dioceses em que os bispos apoiavam seus objetivos ou, pelo menos, os aceitavam. A ação da igreja ganhou peso na luta pela terra a partir de 1980, com a divulgação do documento “A Igreja e os problemas da terra”, produto da XVIII Assembleia da CNBB.

O que representa hoje o MST?

O MST conta com 400 mil famílias assentadas e cerca de 70 mil famílias acampadas, presentes em 24 estados em nível nacional.

É hoje o maior produtor de Arroz Orgânico da América Latina, de acordo com o Grupo Gestor do Arroz Orgânico. Na safra 2022/2023, o movimento colheu aproximadamente 16.111 toneladas de arroz orgânico, cerca de 322.235 mil sacas de 50 quilos cada.

Nas áreas de assentamentos e acampamentos do MST existem 1.900 associações, 185 cooperativas e 120 agroindústrias que atuam na produção, beneficiamento e comercialização da produção da Reforma Agrária Popular.

São pelo menos 15 cadeias produtivas principais, onde mais de 1700 itens estiveram em comercialização na última Feira Nacional da Reforma Agrária, em São Paulo. Onde destaca-se com a produção de alimentos como arroz, feijão, milho, trigo, café, leite, mel, mandioca e diversos outros hortifrutis.

Tais cadeias produtivas estão organizadas de norte a sul do Brasil, com a preocupação de atuar nos diferentes elos, desde a conservação e preparo do solo, passando por um manejo adequado, pela agroindustrialização e chegando, por diferentes vias de comercialização, à mesa do povo brasileiro.

Os assentamentos das regiões Sul e Sudeste produzem cerca de 100 mil toneladas de feijão, sendo os estados de São Paulo e do Paraná os principais produtores. Na região Sul do Brasil e em São Paulo, 14 cooperativas organizam 5500 famílias produtoras de leite. Os laticínios, juntos, beneficiam 37 milhões de litros de leite por mês que são destinados ao mercado institucional e ao mercado convencional.

Em seis estados brasileiros (RO, BA, ES, MG, SP e PR), 5 mil famílias assentadas e
acampadas em 120 territórios da Reforma Agrária, localizados em 50 municípios, produzem cerca de 300 mil sacas de café conilon e arábica por ano, 30 mil sacas são beneficiadas por cooperativas no Espírito Santo, em Minas Gerais e no Paraná.

Em Minas Gerais e na Bahia, destaca-se a produção de café agroecológico, sem o
uso de adubos químicos ou agrotóxicos e com o apoio da Esalq/USP na
implantação e acompanhamento.

Preservação do meio ambiente

Como parte do Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis, plantou 10 milhões de árvores nos últimos 4 anos. Construiu mais de 300 Viveiros da Reforma Agrária. Construiu 10 mil hectares de agroflorestas e quintais agroflorestais em todos os Biomas. Essas áreas estão associadas a importantes cadeias produtivas, como cacau, açaí, café, mel, frutas, castanhas. Garantiu 1500 ha em restauração ambiental (áreas de recarga hídrica e APP), em áreas atingidas pelos crimes da Vale na região do Rio Doce.

Exemplo na Educação

Há mais de 2 mil escolas públicas construídas em acampamentos e assentamentos da Reforma Agrária, que garante educação para mais de 200 mil pessoas, sendo elas, crianças, adolescentes, jovens e adultos.

O MST já alfabetizou mais de 100 mil jovens e adultos no campo, por meio da formação educativa “Sim, Eu Posso!”. Além disso, há mais de 2 mil estudantes Sem Terra em cursos técnicos e superiores.

O movimento organizou mais de 100 cursos em parceria com universidades públicas por todo o país, através do Programa Nacional de Educação nas Áreas de Reforma Agrária (Pronera).

Ações de Solidariedade

Durante a pandemia, um dos momentos mais difíceis da história do
país, o MST doou mais de 9 mil toneladas de alimentos saudáveis para a população vulnerável nas periferias urbanas e rurais. Além disso, 2,5 milhões de marmitas foram doadas para famílias vulneráveis, nas cerca de 40
cozinhas solidárias organizadas por movimentos sociais no combate à fome.

Também formou mais de 50 mil agentes populares em saúde do campo para fortalecer o enfrentamento à pandemia da covid-19 e suprir demais atendimentos de saúde e cuidado comunitário.

Como muito bem salienta Frei Betto, o MST assusta tanto porque luta para que o Brasil, uma das nações mais ricas do mundo, e que figura entre as cinco maiores produtoras de alimentos, deixe de ser um país periférico, colonizado, marcado por abissal desigualdade social.


*Jornalista, editora do Brasil de Fato RS.

**Jornalista e produtora de conteúdo.

Foto da 1º Feira Nacional da Reforma Agrária – Joka Madruga/MST

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

 

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