Opinião
Povo nas ruas perturba agenda oficial de Macron
Povo nas ruas perturba agenda oficial de Macron
De LENEIDE DUARTE-PLON*, de Paris
Crise política causada por rigidez do presidente pode levar a um impasse
Sem perder a fleuma, Emmanuel Macron confirmou na última sexta-feira, 24, em Bruxelas, numa entrevista coletiva sobre a reunião de chefes de Estado da União Europeia, que sugeriu ao rei da Inglaterra, Charles III, o adiamento de sua vinda a Paris, onde era esperado para a primeira visita oficial a um país estrangeiro, a partir de domingo, 26 de março.
Um jornalista ousou perguntar se ele reconhecia que quem decidia sua agenda agora era o povo nas ruas e o presidente admitiu que o ambiente do país – com uma nova jornada de manifestações previstas para terça-feira, 28 março – não permitiria que a visita do rei a Paris e a Bordeaux transcorresse sem incidentes.
De fato, um monarca jantando nos salões dourados do Palácio de Versalhes com um presidente acusado de arrogante e distante do povo não seria uma imagem palatável para os franceses, que sofrem com a inflação e a perda de poder aquisitivo e saem em massa às ruas há dois meses para dizer que não querem a reforma das aposentadorias, considerada injusta por mais de 70% da população e mais de 90% dos trabalhadores ativos.
Para o prestigioso site de esquerda Mediapart, “o presidente Macron tentou justificar ad nauseam sua política incendiária com o uso do 49.3, uma medida constitucional mas que ignora a função primordial dos representantes do povo, esquecendo que o voto dado a ele no segundo turno das eleições presidenciais, tanto de 2017 quanto de 2022, não foi um voto de adesão mas de rejeição a Marine Le Pen”.
Seu desprezo pelo povo que protesta nas ruas ainda pode lhe custar muito mais caro que a perda de popularidade. Numa reunião com parlamentares de seu partido, ele chegou a dizer que “a multidão (la foule) não tem legitimidade, ao contrário do povo, que se expressa pelos seus representantes”.
O problema é que ele ignorou justamente os representantes do povo ao acionar o artigo 49, alínea 3 da Constituição.
Mas Emmanuel Macron errou na aposta: depois de evitar a votação na Assemblée Legislative (Câmara dos Deputados), onde não tem maioria, e de recorrer à medida constitucional do 49.3 – que torna efetivo por decreto um projeto de lei – o presidente não viu, como esperava, a contestação à reforma das aposentadorias se esvaziar.
Ao contrário.
Na primeira manifestação pós 49.3, viu-se um aumento do número de manifestantes e os sindicatos prometem uma resistência duradoura para derrubar a lei que – entre outras medidas injustas como desconsiderar a penibilidade de certas categorias de trabalhadores que tinham direito a aposentadoria antecipada – eleva de 62 para 64 anos a idade mínima para a aposentadoria. Segundo a união sindical de oito sindicatos que organizam os protestos, a nona jornada de passeatas da quinta-feira, 23 de março levou mais de três milhões de pessoas às ruas no país inteiro, ultrapassando todas as anteriores. Houve enfrentamentos com a polícia em diversas cidades e muitos protestos violentos com fogo em lixeiras, que se acumulam nas ruas de Paris pela greve dos lixeiros, uma das muitas categorias em paralisação. No meio dos manifestantes, havia até mesmo policiais civis protestando contra a reforma, respondendo ao apelo do sindicato.
Em Bordeaux, manifestantes incendiaram o pórtico da sede da Prefeitura. Em Paris, cerca de mil black blocks provocaram estragos no mobiliário urbano, quebraram vitrines e enfrentaram com pedras os 5 mil policiais CRS que acompanharam a passeata que partiu da Place de la Bastille até a Place de l’Opéra. No enfrentamento com os black blocs, a polícia não economizou gás lacrimogênio e canhões de água e deteve muitos manifestantes.
Em todo o país, ocupações de estradas, de refinarias, de trilhos de trem vêm se intensificando para chamar a atenção do governo para o movimento dos trabalhadores, que já reúnem nas passeatas franceses de todas as gerações.
Mai 68
Os estudantes se associaram definitivamente às greves, fechando universidades e participando ativamente dos protestos.
Um dos slogans mais geniais das manifestações atuais dizia: “Tu nous mets 64. On te Mai 68 !!!”, (em tradução livre: “Tu nos enfias 64. A gente Maio 68”) num trocadilho com a nova idade-limite de aposentadoria e o histórico “Maio de 68”, quando os estudantes, associados aos trabalhadores, paralisaram a França por várias semanas em greves históricas e enfrentamentos com a polícia no Quartier Latin.
Em viagem que fiz dia 17 de Paris a Toulouse, o nosso trem ficou retido uma hora, impedido de entrar na Gare Saint-Jean, de Bordeaux, por um grupo de cerca de 400 manifestantes mobilizados nos trilhos da estação com bandeiras e cartazes. O atraso de uma hora na chegada a Toulouse foi o tempo necessário para a polícia ferroviária e a polícia nacional desalojarem os manifestantes dos trilhos por onde o trem devia passar.
Um coletivo de escritores, artistas, pesquisadores e intelectuais publicou no jornal Libération de 16 de março um artigo pedindo a anulação do projeto de lei. Assinado pelos filósofos Michael Löwy, Toni Negri, Judith Revel e pelos escritores Annie Ernaux, Laurent Binet e Edouard Louis, entre muitos outros, o texto termina garantindo que “o movimento social atual continuará e nós participaremos dele até a revogação dessa contrarreforma socialmente, moralmente e humanamente iníqua”.
Outros textos coletivos foram publicados na imprensa. Num deles, os autores lembravam que a queda de braço do presidente com os sindicatos e trabalhadores só serve para alimentar o ressentimento que leva ao voto na extrema-direita.
Um editorial do jornal Libération chegou a citar entre aspas uma frase de Macron de 2016, antes de sua primeira eleição, na qual criticava o recurso ao artigo 49.3 para impor um texto de lei, em vez de passar pelo voto dos parlamentares. No fim do editorial, assinado pelo diretor da redação, Dov Alfon, lia-se :
“O que os mercados mais detestam, caso o Macron de 2023 tenha esquecido, é a instabilidade. E é seguramente à instabilidade que sua reforma das aposentadorias leva a França, sua democracia e seus trabalhadores. O presidente poderia salvar os móveis anunciando que a lei será revogada depois dessa aprovação antidemocrática. Mas ele não é do tipo que escuta os franceses”.
*Jornalista internacional. Co-autora, com Clarisse Meireles, de Um homem torturado – nos passos de frei Tito de Alencar (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, lançou A tortura como arma de guerra – Da Argélia ao Brasil: Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado. Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.
Imagem destacada: foto utilizada na capa do Le Monde, com um senhor segurando uma faixa escrita retrait, que quer dizer retirada (para a retirada da lei), fazendo trocadilho com retraite, aposentadoria. Atrás tem alguém com o cartaz citado no texto: Tu nous mets 64. On te Mai68 (Tu nos enfias 64. A gente Maio 68).
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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