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Opinião

Por uma política heterodoxa de combate à inflação

Por uma política heterodoxa de combate à inflação

Artigo por RED
13/01/2024 05:30 • Atualizado em 16/01/2024 23:21
Por uma política heterodoxa de combate à inflação

De CARLOS ÁGUEDO PAIVA* e ALLAN LEMOS ROCHA**

  • Introdução

Em artigo anterior, publicado em A Terra é Redonda, Carlos Paiva argumento em prol da superação do padrão de controle da inflação vigente no Brasil desde o Plano Real. E isto na medida em que a equação vigente – para além de todo o discurso e de toda a parafernália econométrica do sistema de Metas – continua a se basear, fundamentalmente, na interação “juros-câmbio”: eleva-se a taxa de juros para atrair recursos externos e valorizar o real, deprimindo o preço de importados e de exportados. O que poucos percebem é que este padrão de controle da inflação se realiza em detrimento do amplo segmento de tradables da economia, vale dizer, daquele setor que sofre a concorrência dos produtos importados, cujos preços em reais caem com a apreciação da moeda nacional. O Quadro 1, abaixo, traduz essa triste realidade.

Em 31 de julho de 1994 teve início a fase definitiva do Plano Real, com a introdução da nova moeda e a extinção da Unidade Real de Valor (URV). Ao contrário do que os formuladores do Plano esperavam, contudo, a taxa de inflação não caiu abruptamente: nos cinco meses subsequentes a taxa de inflação foi de dois dígitos: 10,98%. Para impedir que a inflação fosse ainda mais elevada, o Governo Itamar (totalmente voltado ao apoio da candidatura de FHC) controlou os preços dos bens e serviços monitorados que, apresentaram deflação de -1,74% em cinco meses. Os tradables – expostos à concorrência externa – também apresentaram uma inflação discreta: 7,06%. Mas o grande “calcanhar de Aquiles” do Plano Real já se revelou ali: a âncora cambial era inofensiva para os Não-Tradables, que apresentaram inflação de 21,77% no período. Nos 30 anos de vigência do Plano Real, foram raros os anos em que não-tradables e monitorados apresentaram taxa de inflação inferior aos tradables. Raras vezes isso resultou de uma política econômica deliberada. Como regra geral, resultou de processos especulativos (como no início e no final do segundo governo FHC e na segunda metade do segundo governo Lula, no embalo da crise financeira internacional de 2008/9). Dilma tentou diminuir a distância entre a variação de preços dos tradables, não-tradables e monitorados. Seja em seu período como Chefe da Casa Civil (quando dividia as responsabilidades da gestão da Economia com Guido Mantega), seja em seus dois mandatos como Presidente. Porém, ela foi mais eficaz no controle da inflação em monitorados (cuja inflação foi inferior à inflação geral, tanto em Lula 2, quanto em Dilma 1) do que, propriamente, no controle da inflação de não-tradables. E isso não é gratuito. Os não-tradables – que correspondem, essencialmente, aos serviços e à construção civil – são intensivos em trabalho. A forma mais eficaz de controle de preços nesse setor é via controle da evolução dos salários nominais (e para quem não sabe: isso é Kalecki; não é Phillips). Os governos do PT, contudo, buscaram elevar os salários reais através da ampliação dos salários nominais (por oposição à queda do preço dos bens salário). De outro lado, os preços dos tradables – sujeitos à concorrência externa – é função da taxa de câmbio; que se encontra sob controle do Banco Central, através da exploração do diferencial entre a taxa de juros interna e a internacional. O resultado dessa mistura foi bem problemático. A elevação dos salários nominais pressionava os preços dos não-tradables. O Bacen respondia à inflação emergente com a elevação dos juros e a valorização do Real. E quem pagava o pato eram os tradables.

Todos os tradables? Não. As commodities agrícolas e minerais têm seus preços em dólares definidos no mercado internacional. E as elevadas taxas de crescimento da China (dentre outros fatores) puxaram os preços dos grãos, do minério de ferro e do petróleo nos anos 90 e nas duas primeiras décadas do século XXI. De sorte que a valorização do real era compensada pela elevação dos preços em dólares. Como se isso não bastasse, o Brasil tem vantagens absolutas estruturais na agropecuária e na produção de algumas commodities minerais. De sorte que a valorização do real pouco pesou sobre estes setores. Quem pagou o pato, mesmo, foi a Indústria de Transformação (IT), a perna mais fraca do grande segmento de tradables no Brasil. 

Aqueles economistas que percebem – corretamente! – que a Indústria de Transformação não é um setor qualquer da economia, mas um setor que carrega um potencial ímpar de propulsão dinâmica (seja pelo seu papel como agregador de valor da produção primária, seja pelo seu papel como produtor de máquinas e insumos industriais difusores do progresso técnico) muitas vezes não percebem que são justamente essas características “positivas” que emprestam um grau de risco e incerteza único (muito superior) aos investimentos industriais vis-à-vis os investimentos em qualquer outro setor. Se é impossível projetar qual será o preço de máquinas e insumos importados no próximo ano, mas, sim, é possível projetar com alguma segurança que as taxas de juros continuarão elevadas (em prol do controle da inflação), então, investir na indústria não é apenas arriscado: no limite, é um contrassenso.   

Cremos que não seja mais novidade para ninguém que a evolução da participação do Valor Adicionado Bruto da Indústria de Transformação (VAB-IT) no Valor Adicionado Bruto Total (VAB-T) no longo prazo tenha sido (e ainda seja) objeto de inúmeras polêmicas no Brasil, pois a própria metodologia de cálculo dos VABs passou por várias mudanças ao longo do tempo. Trataremos desta questão com a devida atenção num próximo artigo. Por enquanto nos damos ao direito de “postular” que o sistema de compatibilização e unificação da série realizada por Paulo Morceiro é o mais consistente e o mais confiável. Tanto o Quadro 2, quanto o Figura 1, apresentados abaixo, tem por base o sistema de compatibilização de Morceiro, a partir do qual calculamos a diferença em ponto percentual da participação do VAB-IT no VAB-T entre 1980 e 2019 (último ano da série de Morceiro). Esse dado é comparado com a evolução da taxa de câmbio efetiva real da moeda brasileira com relação ao dólar. A referência é a taxa de câmbio do final de julho de 1994, quando a taxa de câmbio nominal passou a ser de US$ 1,00 = R$ 1,00. De agosto de 1994 em diante, o cálculo do câmbio real é de nossa autoria, com base no IPCA do IBGE e do índice de preços ao consumidor dos EUA (aqui). A taxa de câmbio real para o período entre 1980 e o primeiro semestre de 1994 foi extraída do IPEAData (Tabela taxa de câmbio efetiva real – exportações – manufaturados – índice (média 2010 = 100)). Para compatibilizar as duas séries (que apresentam correlação de 0,964 entre agosto de 1994 e 2022), alteramos a base da série do IPEA para julho de 1994 = 100.

Se tomamos todos os anos do Quadro 2, a correlação entre taxa de câmbio efetiva real e variação ponto percentual do VAB-IT no VAB-T é de 0,359, com significância de 0,0247. Esta correlação pode ser observada na Figura 1, abaixo. 

Uma correlação de 0,359 pode parecer baixa. Mas é preciso entender que, ao longo destes 40 anos, o quadro macroeconômico de referência passou por profundas alterações. Além disso, as políticas econômicas em geral (e a política cambial em particular), miraram objetivos muito distintos ao longo do tempo e se articulavam de formas distintas com as políticas salariais, fiscais e alfandegárias em curso. Se, porém, tomamos um período mais curto e com maior homogeneidade de funções, a correlação aumenta significativamente. Entre 1994 e 2012, a correlação entra taxa de câmbio real e variação da participação p.p. do VAB-IT no VAB -T sobe para 0,624, com significância de 0,004. Ainda teremos muito a explorar sobre este tema nos próximos artigos desta “série” sobre a relação entre desindustrialização, câmbio e políticas de combate à inflação. Mas o que importa entender desde já é que: 1) a correlação entre as duas variáveis consideradas é positiva: quando o dólar se torna mais caro, a participação do VAB-IT no VAB-T tende a se elevar (ou a apresentar uma queda mais discreta); 2) a correlação é significativa: não resta dúvida de que a participação do VAB-IT no VAB-T é fortemente influenciada pela taxa de câmbio real.

A Figura 2 resgata um período menor da administração cambial brasileira: do lançamento do Plano Real até os dias de hoje. Esta figura foi estruturada apenas com bases nos nossos próprios cálculos da taxa de câmbio efetivo real. O que ela nos diz? Ela diz que, apesar das variações não desprezíveis da taxa de câmbio nominal, a taxa de câmbio efetiva entre dólares e reais vem “girando” em torno de US$ 1,00 = R$ 1,00. O termo “girando” deve ser lido com atenção: a taxa de câmbio efetiva real da nossa moeda com a moeda internacional está muito longe de ser estável. Muito antes pelo contrário. E essa instabilidade é um dos problemas para os quais queremos chamar a atenção. Afinal, investimento em capital fixo é um compromisso de longo prazo. E uma taxa de câmbio volátil acrescenta muita incerteza aos investimentos na indústria de transformação. É sempre bom lembrar: a IT é um setor peculiar: a rentabilidade no mesmo é muito mais dependente do dinamismo (sempre acelerado) do progresso técnico e dos padrões de operação e funcionamento do comércio exterior e da divisão internacional do trabalho. A IT é o exemplo maior da “solidez” produtiva capitalista em Marx: sólido é o que se desmancha no ar. 

Ora, a instabilidade da taxa de câmbio aumenta a incerteza e deprime os investimentos. Com a depressão dos investimentos, o país perde janelas de oportunidade opera com um sistema técnico-produtivo defasado, de baixa produtividade relativa, vis-à-vis a economia mundial. E se a nossa produtividade decresce em termos relativos, a estabilidade de longo prazo da taxa de câmbio efetiva real (que gira em torno de 1:1) significa que a proteção cambial à indústria nacional decai a cada ano que passa. Para a turma pós-tudo, que comprou o pacote autoindulgente das economias europeias que tentam tapar o sol chinês com a peneira-discurso esburacado de que, na economia do Século XXI só os Serviços importam, está tudo muito bem, obrigado. Idem, ibidem, para a turma (neo)liberal, que não vê qualquer utilidade em política de desenvolvimento nacional e/ou em política industrial. Para esses, não há nada de errado ou problemático na crescente especialização brasileira em commodities agrícolas e minerais. Mas para quem ainda preza a Economia Política, a coisa vai muito mal. Obrigado. 

 

  • Para além da desindustrialização: o peculiar inflacionismo brasileiro

Se ao menos a política de ancoragem cambial e exposição competitiva da IT nacional funcionasse a contento, vá lá. Sempre se poderia alegar que “há malas que vêm de trem”. Mas não é esse o caso. Por razões pouco compreendidas e relativamente pouco discutidas na literatura, o Brasil apresenta uma elevada propensão à inflação. Quer nos parecer que esta “compulsão inflacionária” seja mais uma expressão do padrão excludente e espoliativo do capitalismo brasileiro. Afinal, a despeito da inflação ser definida como “elevação geral dos preços” (por oposição a processos de “alteração de preços relativos”), o que a caracteriza é que os preços não sobem, todos, simultaneamente. Aqueles agentes com maior capacidade de precificação, elevam seus preços à frente dos demais, e se beneficiam ao longo do período em que os últimos não alcançam recompor os seus próprios preços. Na medida em que os “retardatários” alcançam os protagonistas, estes recomeçam o circuito, muitas vezes alimentando processos que levam à espiral inflacionária (taxas crescentes). 

Sem sombra de dúvida, o Plano Real é um marco e um divisor de águas no inflacionismo brasileiro. Não obstante, desde sua implementação o Brasil continuou a apresentar taxas de inflação positivas e em patamares significativamente superiores à maioria dos países desenvolvidos e, inclusive, de parcela expressiva dos países subdesenvolvidos. Este ponto fica claro quando observamos o Quadro 3, abaixo.

As taxas de inflação acumulada do Brasil e de diversos agrupamentos das nações do mundo foram definidas em função: 1) das políticas econômicas internas (implantação do Plano Real; início dos governos do PT; etc.); 2) dos mandatos presidenciais no Brasil; ou 3) das inflexões do padrão internacional de inflação (série com ou sem a inclusão do ano de 2022, de alta inflação internacional). O objetivo é montar um sistema de comparação que nos permita avaliar se o padrão nacional de controle de preços associado ao Plano Real está – ou não – operando a contento, tendo em vista a dinâmica inflacionária do resto do mundo. Nosso ponto de partida é 1995, primeiro ano do primeiro governo FHC. Porém, comoo a taxa de inflação foi significativamente elevada nesse ano (22,5%) e muito acima da média anual entre 1996 e 2022 (6,3% a.a.), também calculamos a inflação acumulada apenas no período 1996-2002. Também fizemos cálculos em que o ano final era 2021, com vistas a eliminar o primeiro ano da Guerra Rússia-Ucrânia, que impactou (e continua impactando) os preços e as taxas de inflação do mundo todo, com ênfase nas economias desenvolvidas da União Europeia e da América do Norte.  

O primeiro a observar é que o Brasil apresenta taxas de inflação superiores à média mundial em todo o período e em cada um dos subperíodos selecionados, sem qualquer exceção

De outro lado, excetuado o período Dilma (que inclui o ano de 2015, quando a taxa de inflação atingiu dois dígitos), em todos os demais períodos o Brasil apresenta uma taxa de inflação inferior à média dos países emergentes e bastante próxima (mas discretamente inferior) à média da América Latina e Caribe (área da Cepal). Não obstante, do nosso ponto de vista, é preciso entender que: 

  1. o Plano Real é um “pacto social” baseado exatamente no enfrentamento e controle da inflação e de seus perversos efeitos redistributivos (concentradores de renda). Ele foi a condição da vitória de FHC em 1994 e 1998. Lula só consegue se eleger quando assume o compromisso de manter intocado este “pacto social”, na “Carta aos Brasileiros. Em suma: o combate à / controle da inflação está no centro do programa econômico “consensuado” no país;
  2. O Plano Real estruturou-se (e estrutura-se!) sobre ancoragem cambial, a qual depende de abundância de recursos externos e reservas cambiais. Malgrado alguns curtos períodos de escassez de divisas (sempre por volatilidade especulativa, como em 2002 e 2009), o Brasil contou com abundância de recursos em moeda forte e o Banco Central exerceu com autonomia e independência (inclusive excessiva!) seu papel de “xerife anti-inflacionista”, puxando juros e deprimindo o valor do dólar; 
  3. Quando comparamos nossa performance inflacionária com a performance da “média” dos países emergentes, estamos comparando o Brasil com regiões e países tais como: 3.1) o Oriente Médio e a Ásia Central , que envolve nações situadas entre o Marrocos, na África, até o Paquistão, na Ásia, passando por Tunísia, Argélia, Líbia, Egito e Sudão, no continente africano, e por Líbano, Síria, Autoridade Palestina, Faixa de Gaza, Iraque e Irã Afeganistão, na Ásia. Parcela expressiva destes países vivenciaram e vivenciam guerra civil, golpes de Estado e circunscrições cambiais e/ou embargos comerciais extraordinariamente pesados; 3.2.) Europa em Desenvolvimento, situados no Leste Europeu e que viveram sob inflação elevadíssima durante mais de uma década de complexa e dolorosa transição para a economia capitalista: entre 1994 e 2002 a inflação média anual dos países desta região foi de 57,63%; 3.3) a África Subsaariana, cujos problemas cambiais, de instabilidade política e de estrangulamento de oferta são tão grandes ou maiores do que os países do Oriente Médio e Ásia Central. 
  4. Quando tomamos apenas os países da América Latina (área da Cepal) é preciso entender que esta região também é muito desigual, que se desdobra em taxas de inflação igualmente diversas. Alguns países como a Venezuela viveram, nos anos recentes, uma crise associada à queda dos preços do petróleo e ao embargo econômico orquestrado pelos EUA. Neste país, a taxa média anual de inflação nos últimos 4 anos superou os 7.000%. A Argentina foi submetida a choques externos e inflexões radicais de política econômica nos últimos anos e sua taxa média anual de elevação de preços neste período foi de 37,54%. Se incluirmos países da América Central e Caribe – como Haiti, Nicarágua, Guatemala, etc. – fica fácil entender porque o Brasil alcança uma performance discretamente melhor que a média da região. A grande questão é porque essa superioridade é tão discreta, porque a performance nacional é tão similar à performance média latino americana. 

A precariedade da performance nacional fica plenamente evidenciada quando a comparamos com a dos países desenvolvidos. Entre 1995 e 2020, a inflação anual média brasileira foi 6,83% a.a., enquanto a média dos países desenvolvidos foi menos de um terço deste índice: 2,07%. Além disso, mesmo quando tomamos apenas as economias emergentes e em desenvolvimento, vemos uma assombrosa convergência das taxas de inflação deste agregado de países com a inflação brasileira. De Dilma 1 a Bolsonaro, a inflação acumulada no Brasil foi de 102,57%, enquanto a taxa de inflação acumulada no conjunto dos países em desenvolvimento foi de 93,95%. Para ir no ponto: não bastasse a estratégia nacional de combate à inflação estar alimentando a desindustrialização do Brasil ela, ainda por cima, … não funciona bem. 

Por quê? Por irresponsabilidade fiscal ou monetária? … Não nos parece necessário esgrimir argumentos para criticar esta tese do senso comum conservador. Tampouco podemos explicar estes índices por ausência de concorrência externa ao setor tradable. O problema – como se vê com clareza no Quadro 1 – encontra-se, acima de tudo, no descontrole inflacionário em não-tradables e, em especial, em monitorados. Entre 1994 e 2022, a inflação em não-tradables ultrapassou a inflação em tradables na ordem de 326,72 ponto percentuais; o que corresponde a uma inflação que é quase duas vezes superior (1,79; para ser mais exato). Já a inflação em monitorados superou a inflação em tradables em 639,77 pontos percentuais. Ela foi 2,54 vezes mais elevada do que a inflação em tradables

A questão que se coloca, então, é exatamente esta: urge desenvolver, propor e colocar em prática políticas alternativas e genuinamente heterodoxas de combate à inflação, capazes de superar o dualismo “ortodoxia monetária” (que redunda em real sobrevalorizado) e/ou “ortodoxia fiscal” (que redunda em desemprego elevado). O objetivo da próxima seção é, justamente, apontar para esta “terceira via”.

  • Fundamentos de uma estratégia heterodoxa de combate à inflação no Brasil 

Tal como Kalecki procurou demonstrar em diversos trabalhos, no médio prazo, a elevação dos salários nominais só é um instrumento eficaz para a redistribuição da renda em prol dos trabalhadores se ela vier acompanhada de depressão da taxa de mark-up. O que é o mesmo que dizer que a distribuição da renda é função da depressão do grau de monopólio (médio) da economia e do aprofundamento da concorrência em preços (Kalecki, 1938)

Ora, esta concepção, não é novidade dentro do campo heterodoxo brasileiro e fez parte das estratégias políticas econômicas adotadas ao longo dos anos petistas. Da forma como lemos o antológico artigo de André Singer intitulado Cutucando onças com varas curtas (Singer, 2015), sua tese central é justamente esta: em seu primeiro mandato, Dilma buscou enfrentar (e efetivamente enfrentou!) o grau de monopólio de um amplo conjunto de segmentos empresariais cujo poder de precificação havia sido ampliado pelas políticas privatistas de FHC. Dentre estes setores, há que se salientar: 1) o segmento bancário-financeiro, cuja rentabilidade foi acicatada pelas novas políticas de crédito e de juros do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal e do BNDES; 2) o segmento logístico, afetado pela nova lei dos portos de 2013, pelas tentativas de alterar o marco regulatório das ferrovias (com a introdução do direito de passagem, que suprimiria o monopólio das concessionárias) e pelas novas regras e leilões-concessões rodoviárias; e 3) os serviços industriais de utilidade pública, com ênfase nas concessionárias de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, que foram pressionadas a alterar os contratos de concessão assinados no período FHC por modalidades voltadas a garantir uma maior flexibilidade no preço de oferta da energia elétrica, com vantagens para o consumidor (nas quedas de preços) e para as concessionárias (na alta de preços, em função de problemas de geração e oferta).  

Acredito que um dos desdobramentos destas “cutucadas” tenha sido a radical inflexão da “opinião pública” acerca do governo Dilma na transição de 2012 para 2013 (ano que se inicia com o anúncio da nova política de juros do Banco Central e que será marcado pelas “jornadas juninas”). A mídia – que nunca fora solidária com os governos do PT, e já havia incensado a farsa do Mensalão – vai aprofundar suas críticas à terceira gestão do PT, assumindo para si a função de “força opositora”, promovendo fartamente todas as manifestações e protestos de rua a partir de 2013. Simultaneamente, a base política no congresso vai sendo diluída até ser totalmente dissolvida, a partir da movimentação de lideranças do PMDB e do PSDB cujos intere$$es nas atividades portuárias (como Temer e Cunha), rodoviárias (Padilha), e na geração e distribuição de energia elétrica (Aécio Neves) haviam sido prejudicados. A Nova Lei dos Portos foi a última grande vitória de Dilma no Congresso. A partir daí, todas as iniciativas da presidenta de enfrentamento dos grandes oligopólios (saúde privada, ferrovias, etc.) foram barradas. E o diálogo entre Ministério da Fazenda, Palácio da Alvorada e Banco Central foi se tornando cada dia mais truncado. 

Ora, de um lado, parece-me evidente que a estratégia “kaleckiana” adotada por Dilma de redistribuir renda, controlar a inflação e alavancar a competitividade da produção nacional via transferência dos ganhos de produtividade dos setores oligopolizados para os preços (e, portanto, para o conjunto da sociedade) era necessária. Mas, de outro, acredito que ela não precisaria (e, talvez, tendo em vista as consequências finais deste processo, não devesse) iniciar este enfrentamento pelos “polos hegemônicos” do grande capital: sistema financeiro e serviços concedidos-privatizados durante os leilões e rega-bofes do governo FHC. Acredito que exista uma alternativa que permitiria “comer o mingau pelas beiradas” , uma alternativa que ainda não foi tentada e que deveria ser na gestão Lula 3. 

Do nosso ponto de vista, a alternativa de menor custo político e de maior eficácia econômica de controle inflacionário e redistribuição de renda via depressão do mark-up encontra-se em focar diretamente nas elevadas margens do comércio que vigoram no Brasil. Mais: acreditamos que se deveria dar ênfase, inicialmente, nos segmentos que comercializam produtos que fazem parte da “cesta do IPCA” e que, portanto, impactam diretamente daqueles índices de inflação que orientam as políticas monetárias do Banco Central. Expliquemo-nos.  

Acredito que os economistas – inclusive da “banda heterodoxa” – ainda não tomaram plena consciência do grau de financeirização da economia brasileira em geral e da financeirização do sistema de comercialização em particular. O Brasil é o único país do mundo onde a maior parte das mercadorias é vendida em “diversas vezes sem juros”. De passagens aéreas (vendidas usualmente em “várias vezes sem juros” diretamente pela Gol, Tam, Azul, ou por revendedoras, como Submarino, Decolar, etc.) a compras em supermercado (pagas com cartão de crédito e/ou em cartões das próprias redes, como Zaffari, Pão de Açúcar, etc.), passando por magazines de roupas (C&A, Renner, Riachuelo, etc.) a magazines de eletrodomésticos e utilidades para o lar (Magazine Luíza, Ponto Frio, Lojas Colombo, etc.), concessionárias de veículos (Volkswagen, Renault, Fiat, etc.), praticamente tudo no país é vendido a prazo. Por quê? Porque todos os grandes grupos comerciais do país, ou estão associados, ou contam com financeiras e/ou bancos próprios, e obtêm a maior parte dos seus lucros do sistema de financiamento aos seus clientes, por oposição aos ganhos derivados do processo de comercialização em sentido estrito

Esta estratégia dos grandes varejistas tem desdobramentos para o pequeno capital associado ao comércio. Na medida em que os preços “à vista” com os quais operam as grandes redes comerciais já inclui o juro (que, teoricamente, não é cobrado quando o cliente “opta” pela compra a prazo), estes preços são significativamente superiores aos custos de aquisição dos produtos comercializados junto à indústria. Esta elevada margem de lucro do grande comércio é percebida pelo pequeno comerciante como uma vantagem. Afinal, ele adquire suas mercadorias em lotes menores e, usualmente, a preços superiores e, se a margem do grande comércio fosse menor, a sua também seria acicatada pela concorrência. Porém, esta percepção do pequeno comerciante é apenas parcialmente verdadeira. Na realidade, seus “ganhos” são mais aparenciais do que reais. Por quê? 

Porque os consumidores exigem do pequeno varejo o mesmo tratamento que obtém junto ao grande: a venda a prazo. Só que, no caso do pequeno varejista, como regra geral, o parcelamento (usualmente, em mais de uma parcela, para compras vultosas) se dá via cartão de crédito. Para além dos custos financeiros imediatos que o comerciante incorre no momento em que faz uso destes instrumentos, ele incorre, também, em custos mediatos, pois não recebe o valor total de sua venda, necessitará tomar empréstimo (capital de giro) para a reposição de estoque. Ora, a venda a crédito por parte do grande varejo que conta com bancos e financeiras associadas gera ganhos extraordinários. Mas o mesmo não se dá para o pequeno comerciante, que arca com a maior parte dos custos de financiamento concedidos pelo sistema bancário ao seu cliente e, por extensão, a ele mesmo. 

O “(re)equilíbrio financeiro” do pequeno comércio é obtido por uma segunda via, igualmente perversa: em função da grande desigualdade de renda que caracteriza a estrutura social brasileira, uma parcela significativa da população nacional não tem acesso a cartão de crédito e a sistemas de financiamento. Esta parcela realiza suas compras e pagamentos rigorosamente à vista, via papel-moeda. Não gratuitamente, no Brasil atual o volume de papel-moeda em circulação corresponde aproximadamente ao volume dos depósitos à vista nos bancos comerciais, pouco mais de 250 bilhões de reais. Esta parcela da população – justamente a mais pobre! – paga à vista o preço a prazo. Como ela realiza parcela expressiva de suas compras no pequeno comércio (situado na periferia das cidades, na proximidade das residências populares) ela contribui para a sustentação deste estrato varejista e, inadvertidamente, contribui para a sustentação de um perverso sistema de precificação marcado por exorbitantes margens “financeiras de comércio”. 

Do nosso ponto de vista, urge interferir e alterar esta articulação perversa entre comércio e finanças em nosso país a partir de políticas públicas especificamente voltadas para tanto. Desde logo, seria preciso mostrar a “nudez do rei”. Há um engodo coletivo. O consumidor realmente acredita que está sendo beneficiado pelo parcelamento “sem juros”. E o pequeno comerciante realmente acredita que está sendo beneficiado por vender seus produtos ao elevado preço praticado pelo grande comerciante

Com vistas a calcular o desconto que um pequeno comerciante poderia conceder sem deprimir sua margem de rentabilidade (mas, até, ampliando-a), tentamos calcular os custos financeiros médios que este estrato incorre em suas vendas a prazo. Este cálculo, contudo, mostrou-se muito mais complexo do que poderíamos imaginar inicialmente. Por diversos motivos. Em primeiro lugar, encontra-se o fato de que os riscos de operação com dinheiro papel variam em cada localidade. Falo dos riscos de assalto do estabelecimento comercial e/ou do responsável por realizar os depósitos diariamente. Bem como os custos associados ao atendimento ao cliente (a operação com dinheiro é mais morosa e, usualmente, exige um número maior de pessoas operando como “caixa”); associados ao cálculo do “troco” e associado à conquista e manutenção de um volume não desprezível numerário (moedas e notas de pequeno valor) para garantir a disponibilidade de “troco”. Não obstante, vale lembrar que estes empecilhos tradicionais foram grandemente superados pelo pagamento via pix. Há que se explorar de forma original esta importante janela de oportunidade. 

Em segundo lugar, os custos de operação com cartão de crédito também não são uniformes. Novas bandeiras estão ingressando no mercado e concorrendo com as bandeiras tradicionais pelo oferecimento de melhores condições de financiamento para os comerciantes. Além disso, os comerciantes que recorrem a empréstimos bancários para capital de giro (que sustenta parte de suas operações de crédito ao cliente), deparam-se com taxas de juros e encargos bancários (taxas diversas, reciprocidades, etc.) muito diversificados. 

Uma política de apoio à formação e informação do pequeno comerciante poderia conscientizá-lo das vantagens que teria se concedesse descontos para os consumidores dispostos a adquirir as mercadorias à vista. Por menores que fossem estes descontos, eles fazem diferença para as famílias de baixo orçamento e teriam consequências sobre a evolução do nível geral de preços. E isto na medida em que a depressão dos preços no pequeno varejo teria de ser (pelo menos em parte) acompanhada pela queda de preços no grande varejo;

Um tal programa de apoio à concorrência e depressão de preços teria muito maior eficácia se ele viesse acompanhado de sistemas públicos de divulgação dos menores preços de oferta no comércio em cada bairro. Um programa que poderia ter início com ênfase na cesta de produtos que compõem o IPCA.

Igualmente bem, parece-me que seria importante legislar e regular o processo de financiamento ao consumidor através da obrigatoriedade de exposição das taxas de juros efetivamente embutidas nas operações de crédito. Uma vez que os cartões das grandes empresas de varejo estão associados a financeiras específicas, a referência dos juros das lojas deve ser a taxa de juros cobrada pelas mesmas para o crédito pessoal. 

Estas são apenas algumas ideias que necessitam de determinação para que possam vir a transformar-se em um programa efetivo e eficaz de controle de preços por mecanismos de mercado que reforcem a concorrência e deprimam a margem de lucro (mark-up). Mas, parece-me, é um bom ponto de partida. E isto porque traz à luz e busca enfrentar exatamente um dos traços mais peculiares da economia nacional: as formas veladas da financeirização e da indução à compra à crédito.

Outrossim, mesmo que se chegue à conclusão de que não é este o “caminho a ser trilhado”, acredito que o problema em si seja pertinente e urgente. Por isto mesmo, trago estes pontos à reflexão. Se não for por aqui, por onde estruturaremos um programa de combate à inflação que nos livre das mazelas e efeitos desindustrializantes da ancoragem monetário-cambial introduzida pelo Plano Real? 

  • Uma conclusão bem preliminar

O desequilíbrio na evolução dos preços dos bens e serviços tradables, não-tradables e monitorados ao longo dos 40 anos do Plano Real é simplesmente assustador. Igualmente assustador é o fato de que tão poucos economistas no Brasil, hoje: 1) estejam preocupados com esse fenômeno; 2) alcancem associar essa desigualdade na dinâmica de evolução de preços relativos com o processo de desindustrialização do país; 3) reconheçam que urge construir uma nova política de controle de preços capaz de enfrentar e controlar a tendência “inflacionista” da economia nacional sem impor todo o custo do combate à elevação dos preços ao segmento tradable da economia. 

Outro elemento que, acreditamos, mereceria nossa atenção é o fato de que o os diferenciais na dinâmica dos preços entre os três segmentos básicos da economia -– tradable, não-tradable e monitorados – expressam muito dos estratos sociais e econômicos que dão sustentação aos distintos governos. Itamar (via FHC, Ricupero e Ciro Gomes) controlou os monitorados com vistas a garantir o “sucesso” do Plano Real no segundo semestre de 1994 e garantir a eleição de FHC. Este, por sua vez, alterou totalmente a balança e jogou os preços monitorados para o céu. O que ampliou a lucratividade e a atratividade das empresas privatizadas no seu governo, bem como das inúmeras concessões rodoviárias, ferroviárias e de geração e transmissão de energia elétrica. Lula 1 – na gestão Palocci manteve a equação de FHC, e turbinou os monitorados, sufocando os trabalhes. Com Dilma na Casa Civil e na Presidência, quem sofreu foram os monitorados. Temer volta a apoiar o segmento “concedido”. A começar pelos portos, claro. Bolsonaro tem uma trajetória algo distinta: a inflação em tradables é maior do que em não-tradables. E muito similar à inflação em monitorados. Seria um “carinho” no agronegócio? Ou há algo mais do que isso? ,,, Vamos ter que ver isso com mais detalhes nos artigos que virão. Porém, precisamos apontar o dedo para uma questão que preocupa. Em 2023, na gestão Lula 3, a “inflação” em tradables foi negativa (-0,04%), a inflação em não-tradables foi discreta (0,36%) e quem puxou o “dragão” foram os “monitorados”: 4,75% …. Será que é essa a política de “reindustrialização” do Governo Lula 3? … Se for, por favor, perdoem-nos do ceticismo. Este filme, nós já vimos. E já conhecemos muito bem o final.


BIBLIOGRAFIA

KALECKI, M. (1938) The determinants of distribution of the National Income. In: OSIATYNSKI, J. (ed.). (1990) Collected Works of Michal Kalecki. Oxford: Clarendon Press.Vol. II.

PAIVA, C. A. (2004).  Lendo o Real com um olho em Keynes e outro em Kalecki. Indicadores Econômicos FEE. V. 16, n. 2. Porto Alegre: FEE. Disp. em http://revistas.fee.tche.br/index.php/indicadores/article/view/257 

SINGER, A. (2015) “Cutucando onças com varas curtas: o ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014). In: Novos Estudos. N. 102. Julho.

SYLOS-LABINI, P. (1984) “Preços e distribuição de renda na indústria de transformação”. In: Ensaios sobre desenvolvimento e preços. Rio de Janeiro: Forense Universitária.


*Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica e Professor do PPGDR-Faccat.

**Estatístico, Mestre em Planejamento Urbano e Regional e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.

Imagem em Pixabay.

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