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Por que os yanomami não querem ter fotos suas compartilhadas
Por que os yanomami não querem ter fotos suas compartilhadas
Associação pediu que imagem de idosa que morreu de desnutrição não fosse mais divulgada.
Em meio a uma crise sanitária histórica, de alta gravidade, o povo yanomami também está tendo de lidar com uma questão que, se ao olhar da cultura eurocêntrica ocidental pode parecer uma bobagem, para boa parte dos povos originários americanos é crucial: a exposição, de forma intensa e praticamente sem controle, de imagens de seus integrantes, na grande maioria em situações degradantes.
No dia 23 de janeiro, a Associação Yanomami Urihi publicou, nas redes sociais, um comunicado sobre a questão, pedindo que as pessoas “evitem compartilhar” uma fotografia de uma mulher yanomami idosa que, após ser fotografada, morreu em decorrência da grave desnutrição.
“Estamos cientes da impossibilidade de retirar a imagem de todos os meios de comunicação, tendo em vista que já foi compartilhada por diversas pessoas, mas resolvemos publicar a nota como forma de alerta para novas matérias que surgirem”, diz o texto.
“Gostaríamos de pedir a todos que evitem a partir deste momento o compartilhamento da imagem dela”, reitera o texto. “Entendemos a importância de levar ao mundo a situação drástica, mas por questões culturais a sua imagem não poderá mais ser divulgada.”
Questões culturais. Ou seja: o pedido — que pode soar um tanto inusitado para a cultura ocidental de base eurocêntrica, na qual a divulgação é vista como um fator positivo, inclusive para buscar soluções para o problema — precisa ser entendido a partir das crenças e tradições indígenas. Uma atitude de respeito para com os povos originários raramente vista nos últimos cinco séculos, desde a chegada dos colonizadores brancos ao continente.
Segundo a Urihi, na cultura yanomami, “após o falecimento, não pronunciamos o nome da pessoa, queimamos todos os seus pertences, e não permitimos que fotografias permaneçam sendo divulgadas”.
Interferência do “mundo dos mortos”
Lideranças e intelectuais indígenas ouvidos pela DW reconhecem a necessidade de tal respeito. E afirmam que costumes semelhantes são compartilhados por boa parte das etnias dos 307 povos indígenas do território brasileiro.
“Temos diferenças culturais, de costumes e de tradições em cada povo. Mas alguns de fato não gostam de serem fotografados, entendem que isso traz maldição e tudo o mais”, comenta o pedagogo Alberto Terena, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Quando uma pessoa morre, em algumas comunidades se destrói tudo, não se deixa nada, objetos, tudo o que pertenceu ao falecido.”
O escritor, professor e ativista indígena Daniel Munduruku conta que seu povo também mantém uma postura restritiva quanto ao uso de imagens.
“Existe um ensinamento que vem de muito tempo: os indígenas não permitem tirar fotos porque a foto roubaria a alma da pessoa que teve sua imagem fotografada”, explica. “Isso tem muito a ver com a compreensão que muitos povos indígenas têm de que, ao morrer, a gente precisa esquecer a pessoa que morreu. A fotografia, de uma certa maneira, traz a pessoa [morta] de novo para o cenário dos vivos. E isso causa um conflito espiritual e um sentimento de que houve quebra na espiritualidade.”
Munduruku diz que é por isso que “muitos grupos indígenas” até hoje não permitem fotos — ao menos não imagens que identifiquem as pessoas. “E, se fotografar, essas fotos não podem ser tornadas públicas por conta dessa visão de vida e de morte, porque são dois momentos da vida que se contemplam e se complementam”, afirma. “Trazer os mortos para o lugar dos vivos é afetar o equilíbrio espiritual da comunidade.”
O escritor ressalta que, nos tempos contemporâneos, essa ideia se reflete num sentimento de cautela, em que exceções são permitidas. “Quando há um contato mais permanente, a gente já consegue depurar melhor essas informações e saber fazer rituais para que a fotografia tirada não se torne instrumento ou objeto de maldição. Muitos povos fazem isso, e aí a maldição, digamos assim, é interrompida e não causa mal aos vivos”, contextualiza.
Advogada e pesquisadora na Universidade de Brasília (UnB), Maíra Pankararu observa que esse cuidado com as imagens “acontece não só entre os parentes do norte, mas eu acho que em todo o povo [indígena], em todos os lugares”.
“Você, como não indígena, para tirar foto, precisa pedir permissão em todos os momentos, porque o certo é não fotografar. Existem festividades que podem ser fotografadas, mas mesmo assim é preciso pedir permissão”, esclarece.
Ela afirma que alguns povos são mais restritivos do que outros e, muitas vezes, imagens que existem de comunidades originárias só são possíveis graças ao trabalho de indígenas que se tornam fotógrafos e “de dentro, sabem em que momento podem tirar fotos ou fazer vídeos”. Pankararu esclarece que os princípios são “intrínsecos de cada povo”.
Compreensão das diferenças culturais
Pesquisadora na UnB e assessora do Instituto Socioambiental (ISA), a antropóloga Luísa Molina reconhece que o assunto é “muito sensível e complexo”. Mas, como alguém que acompanha de perto a realidade de povos indígenas, ela defende que qualquer abordagem seja feita levando em consideração os princípios de cada sociedade.
“Tendemos a partir do pressuposto de que podemos falar e entender a partir dos nossos moldes, de nosso contexto. Somos desafiados a nos esforçarmos para entender que muitos vêm de contextos radicalmente diferentes”, compara. “Assim, é preciso abertura para olhar a diferença e se perguntar como olhar essa diferença. Isso [essa postura] muda bastante a abordagem.”
A pesquisadora lembra que os indígenas, com a autoridade de quem já vivia no território brasileiro antes do colonizador europeu, “têm o direito de seguir vivendo de maneira autodeterminada, à sua maneira”.
O escritor e ambientalista indígena Kaká Werá ressalta que os povos indígenas suportam, há mais de cinco séculos, “invasão de terras, extração de recursos da terra e das águas, desmatamento e epidemias nas aldeias”.
“Nossos antepassados conviveram com isso, e isso passou de geração para geração. Dos anos 1950 para cá, determinada parcela da humanidade finalmente passou a ter consciência e começamos a ter relações um pouco mais humanitárias frente a certas situações”, comenta.
A questão da fotografia é um exemplo — mas está longe de ser o único ponto de diferença cultural que, a partir do contato com a civilização de base europeia, interfere no dia a dia do indígena. Munduruku, por exemplo, cita a maneira como seu povo interage com os rios — e como a exploração desenfreada das águas do entorno de sua comunidade “mexe com a cultura” de seus parentes.
“Mexe com a cultura e com a espiritualidade”, acrescenta. “O munduruku é um povo que tem nos seres encantados da natureza seu principal referencial. E entre eles estão os peixes, que são seres ancestrais que trazem uma compreensão de mundo importante.”
Matéria publicada originalmente em Brasil de Fato.
Foto: Divulgação/Conselhos Distritais de Saúde Indígena (CONDISI).
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