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Por que despatriarcalizar?

Por que despatriarcalizar?

Artigo por RED
11/01/2025 15:00 • Atualizado em 11/01/2025 17:57
Por que despatriarcalizar?

Por JANETE SCHUBERT*

Este texto se organiza a partir de cortes ou momentos. Primeiramente abordo a metodologia utilizada em pesquisas antropológicas e que utilizei para produzir este texto. Depois conduzo o leitor a um passeio pelos micros espaços sociais cotidianos, atentando para contextos nos quais comportamentos que são naturalizados carregam forte carga simbólica patriarcal. Em um último momento problematizo alguns situações que considero pertinentes.

Como pesquisadora decolonial e, dos feminismos decoloniais, tenho refletido sobre a importância de despatriarcalizar as instituições. Temos uma pequena e não expressiva produção teórica sobre estes temas no Brasil e, obviamente, estamos muito longe de práticas que atravessem nosso cotidiano e possam constituir sujeitos “outros”.

Ao longo dos meus vinte e cinco anos de trajetória como pesquisadora, adotei muitas posturas e metodologias para compreender e questionar as estruturas que sustentam as desigualdades de gênero. Recentemente, passei a explorar a atitude do flâneur como uma experiência metodológica, que me permitiu revisitar e ressignificar minha própria relação com o objeto de estudo. Essa abordagem se mostrou singularmente reveladora, especialmente por sua capacidade de unir a observação imersiva e a reflexão crítica.

A sociedade patriarcal se manifesta de maneiras tão cotidianas quanto insidiosas. Minha experiência como flâneur — ou talvez flâneuse, uma distinção importante em si mesma — foi atravessar os espaços públicos e privados, percebendo como as relações de poder se desdobram em contextos urbanos e sociais. Andar pelas ruas, entrar em praças, observar as dinâmicas de trabalho e consumo, e até mesmo presenciar o uso do silêncio como ferramenta de controle, revelou camadas de uma sociedade que, muitas vezes, naturaliza a opressão.

No papel de flâneur, reconheci que não sou uma observadora neutra. Minha posição social, de gênero e história pessoal influenciam profundamente o que vejo e como interpreto as dinâmicas observadas. Essa tomada de consciência transformou o processo de pesquisa em algo mais orgânico e dialógico. O que antes parecia ser apenas uma prática de coleta de dados tornou-se uma experiência de escuta e reflexão sobre a minha própria presença e impacto nos espaços que eu investigava.

Ao adotar essa postura, deparei-me com situações que exemplificam as dinâmicas do patriarcado no cotidiano. Em uma tarde, ao observar o movimento em um café urbano, percebi como os gestos e as interações se estruturavam em torno de um padrão invisível, mas opressivo: mulheres frequentemente acomodavam-se em lugares mais discretos, enquanto homens ocupavam espaços centrais e dominavam as conversas. Esses padrões, embora aparentemente banais, revelam como o patriarcado molda até mesmo os menores aspectos da vida pública. E é necessária certa habilidade (no meu caso, anos como pesquisadora) para reconhecer e decodificar estas cenas que num rápido e menos atento olhar, não causam estranheza.

A cultura patriarcal se manifesta em comportamentos, falas, ações e implicações que reforçam a ideia de que os homens têm mais poder, autoridade ou direitos do que mulheres ou pessoas de outros gêneros. Exemplos comuns e práticos que ilustram como isto pode ser percebido. No trabalho, nas interrupções ocasionais, em reuniões é comum as mulheres serem interrompidas mais frequentemente do que homens, mesmo quando estão apresentando ideias relevantes. Vamos pensar juntos, quantas vezes uma mulher sugere uma solução e é ignorada, e, momentos depois, a mesma ideia é validada quando repetida por um colega homem?

Qual é a ideia que estou problematizando? No discurso macro, é fácil e até mesmo, politicamente correto, afirmar que somos a favor da igualdade de gênero, mas, no nível micro, que é onde a vida acontece, como são nossas ações? Muitas vezes nossas atitudes cotidianas reproduzem padrões patriarcais sem que percebamos ou façamos um mínimo esforço para problematizar. Esse descompasso entre o discurso e a prática ocorre por conta de normas e padrões culturais profundamente enraizadas. Vamos propor algumas situações para exemplificar, como se manifestam estes comportamentos no dia-a-dia e pensarmos de forma crítica. Como se dá a distribuição de tarefas e responsabilidade domésticas na sua casa? Quem faz a lista e as compras no supermercado e quem depois organiza as coisas compradas nos lugares? Quem geralmente faz a higiene e limpeza da casa/apartamento? Como se dá a dinâmica de interação em conversas? Quantas vezes você interrompe a fala de uma mulher? Quantas vezes você explica um assunto em que ela é a especialista? Como você lida com as expectativas preconcebidas a respeito do gênero?  Por exemplo, acreditar que as mulheres priorizam a família sobre a carreira, enquanto os homens são vistos como “provedores naturais”. Ou ainda, não considerar uma mulher para uma promoção por suposições de que ela pode “priorizar os filhos” no futuro. Nos papéis de liderança homens são frequentemente percebidos como mais assertivos e adequados para cargos de chefia, enquanto mulheres enfrentam resistência ao serem firmes. Muitas vezes, uma mulher que lidera de forma assertiva é vista como “mandona”, enquanto um homem é elogiado como “um líder forte”.

Nas questões de comportamento e aparência, você já percebeu que as mulheres são frequentemente julgadas por sua aparência, enquanto os homens são avaliados mais pelo que fazem. Supor que as mulheres devem manter um padrão de beleza para serem aceitas, enquanto os homens têm mais liberdade sobre a aparência. Geralmente os homens são desencorajados a expressar emoções como tristeza ou medo, enquanto nas mulheres é visto como “natural” demonstrar empatia e vulnerabilidade. Poderíamos elencar inúmeras situações, mas vamos nos ater a estes parcos exemplos.

Passando para nosso terceiro e último momento do texto, quero refletir sobre o abuso, a violência e o feminicídio. O Monitor de feminicídios no Brasil divulgou os dados atualizados de 2024, revelando um aumento alarmante nos casos de feminicídios em todo o país. Enquanto o Atlas da Violência, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que, em 2022, ocorreram um estupro a cada 46 minutos no país. Não bastasse estas estatísticas, foi veiculado recentemente que existem páginas incitando ódio e violência contra as mulheres.

Do ponto de vista formal, pode-se dizer, que estamos caminhamos rumo a igualdade de direitos, porém no mundo vivido, percebemos que temos um longo e árduo caminho para a igualdade fática entre homens e mulheres.  Face a isto, penso que precisamos realmente despatriarcalizar as instituições, todas, sem exceção.  E para citar apenas um âmbito, eu pensaria na educação, que eu conheço bem. Urge uma educação que desconstrua os papéis de gênero, que naturalize a existência de outros modelos de família, para além da família heteronormativa. E, sobretudo, que possamos construir outras formas de amar, ser e estar no mundo, para além das idealizações do mito do amor romântico.

Desta forma, qualquer sistema político cuja proposta vise uma sociedade plural e igualitária, não pode prescindir de uma comprometida, real e profunda despatriarcalização.

Dito de outra maneira, um mundo mais diverso, inclusivo, plural e igualitário passa, necessariamente, por uma radical transformação nos papéis de gênero, na forma como se constituem os sujeitos. Enquanto as mulheres foram objetificadas, exploradas, abusadas violadas e mortas, outro mundo não é possível.”

 

*Janete Schubert é Doutora em Sociologia pela UFRGS, Pesquisadora Associada a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.

 

Foto de capa:  IA

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