Opinião
Poder constituinte e cultura jurídica
Poder constituinte e cultura jurídica
De PAULO TORELLY*
O povo brasileiro derrotou eleitoralmente o fascismo. E agora? A humanidade vive deste lado do Paraíso, mas por certo ele não precisa ser um Inferno. Mais do que nunca cabe perguntar, como se fez possível a banalização de discursos e práticas golpistas e de ódio contra as instituições constitucionais democráticas e republicanas, bem como de defesa da tortura e da morte como métodos de disputa política? Talvez a resposta esteja em indagações óbvias, tais como: (1) O que identifica um Estado Constitucional de Direito? (2) Qual a distinção entre o Poder Constituinte originário, o legislador ordinário e a prestação jurisdicional?
É certo que os textos constitucionais e legais demandam interpretação para a identificação do sentido, do alcance e da extensão das normas deles decorrentes e não raro se faz necessária uma mutação constitucional para a atualização de tais normas diante da evolução econômica, social e cultural. Mas, por outro lado, também é certo que o princípio do Estado de Direito (Constituição, art. 1º) veda qualquer manifestação ou exercício arbitrário das funções e competências estatais e mesmo privadas. Como se fez possível – será sempre perguntado na história do constitucionalismo brasileiro – a mutação operada pelo STF no conceito técnico de “trânsito em julgado” (Constituição, art. 5º, LVII) apenas por alguns meses, mas com profundo e traumático impacto na democracia e na sociedade brasileiras? Falando objetivamente, Bolsonaro jamais teria sido eleito em 2018 caso Lula não tivesse sido impedido de concorrer naquela eleição!
Cabe, portanto, começar ou voltar para o princípio e seus fundamentos, pois mesmo diante da complexidade do Estado Constitucional Democrático e (Eco)Social de Direito consagrado no texto rígido e analítico da Constituição de 1988, a legitimidade do ordenamento jurídico ainda pressupõe a (1) promulgação pública de todas as leis em um processo democrático, o que antecede a também imprescindível (2) imparcialidade na aplicação destas mesmas leis por (3) órgão jurisdicional independente. A (4) universal aplicação do direito (o nome de partes e advogados na capa dos processos não deve alterar o resultado dos julgamentos) por um (5) juiz natural (previamente identificado e por todos conhecido) consagra a (6) supremacia do direito com a submissão de todos os órgãos e funções estatais e privadas ao direito e a (7) igualdade perante a lei. Aqui reside a essência do tão decantado Estado Democrático de Direito e de seus compromissos sociais e ambientais, que apenas será uma realidade viva e efetiva com a (8) prática como critério e noção de verdade ao concretizar o ordenamento jurídico objetivo com a prestação jurisdicional equânime na administração pública do direito pelo Poder Judiciário. A (9) separação de poderes (Constituição, art. 2º) e o (10) reconhecimento pleno e ordinário dos indivíduos como sujeitos de direito no direito internacional (Constituição, art. 4º, inciso II) completam este quadro, que expressa a síntese de uma realidade pulsante de 40 séculos de história do direito, inviável sem a atuação qualificada de juízes, promotores e advogados honestos e bem preparados. Por último e não menos importante é imprescindível ter bem presente que uma advocacia forte e independente (Constituição, art. 133) voltada para a diuturna fiscalização e luta em defesa dos preceitos do Estado de Direito constitui o ponto de Arquimedes de uma “sociedade livre, justa e solidária” (Constituição, art. 3º, inciso I), esteio de toda a cultura jurídica e de toda noção de civilização definidoras da autonomia das esferas do direito, da ciência e da política.
É fácil concluir que o STF não está investido na autoridade de Poder Constituinte originário e o Poder Judiciário não exerce função legislativa na edição de direito novo. A inovação normativa jurisprudencial apenas se faz possível com amparo nos Tratados Internacionais incorporados ao direito brasileiro com a mesma estatura de normas constitucionais (Constituição, art. 5º, § 3º), o que, v.g., autoriza o Poder Judiciário a estender a imprescritibilidade prevista no inciso XLII do art. 5º da Constituição aos crimes contra a humanidade, tal como a perversa e intolerável prática da tortura, ainda corrente no Brasil e que há muito reclama uma resposta positiva do ativismo jurisdicional para ser banida.
A Constituição do Brasil de 1988 pode ter sido corrompida em diversas e reiteradas ocasiões nestes quase 35 anos de vigência, mas o povo brasileiro, sempre que teve a oportunidade ou foi chamado, reescreveu a sua própria história de forma consciente e com olhos abertos, o coração e a mente serenos, reafirmando os valores constitucionais da democracia, da pluralidade, da dignidade humana e da civilização diante da barbárie e da ameaça nazi-fascista! Foi o que ocorreu na superação da ditadura e novamente no último dia 30 de outubro, mas, apesar de tudo e de tantos que merecem o perdão pelos desatinos e por não saberem o que estavam fazendo neste período recente, ainda é necessário enraizar uma cultura de respeito pelas diferenças entre integrantes de uma única e mesma nação com oportunidades para todos e que olha para um futuro promissor e de esperança nos marcos do Estado Constitucional Democrático e (Eco)Social de Direito! Mas não se trata de uma reconciliação sem memória, pois prossegue o processo de aprendizado com os erros do passado, recente e distante, e a imperativa necessidade de um efetivo e revigorado exercício da soberania popular (Constituição, art. 1º, parágrafo único) alinhado com a retomada do esforço de efetivação dos direitos e garantias constitucionais consagradas pelo Poder Constituinte originário de 1987-88, ainda carentes de plena efetividade em face da dimensão autocrática de segmentos sociais e sobremaneira das estruturas institucionais de poder decorrentes de uma constituinte congressual. Novamente, para ser claro, trata-se da urgência de reforma e adequação do estatuto do poder constitucional aos ditames da soberania popular, o que merece uma reflexão tópica a ser oportunamente retomada, pois a urgência de uma Corte Constitucional já foi apontada em textos antecedentes.
Trata-se, neste ensejo, da constatação de que a vocação social do Estado contemporâneo – bem identificada por GEORG JELLINEK ainda em 1900 em seu clássico Teoria Geral do Estado (Allgemeine Staatslehre) (JELLINEK, 2005, Cap. 8, n. 6, p. 345) – há de prevalecer no Brasil pela inequívoca vontade popular neste sentido. Fortalecer e construir o controle social sobre as estruturas institucionais e oligárquicas passa pela plena efetividade do texto constitucional e de suas normas, a mais vigorosa e legítima ferramenta de formação individual e social de consciências. A solução diante de resistências ao que NORBERTO BOBBIO denominou A Era dos Direitos (BOBBIO, 1992) foi apontada muito antes pelo próprio democrata e grande publicista JELLINEK ao analisar justamente o fenômeno da mutação constitucional, visto que, diante da profusão de novas interpretações sem alterações no texto da Constituição do Império Alemão de 1871, com pioneirismo identificou e preconizou a participação popular direta, o que viria a ser consagrado no constitucionalismo contemporâneo do pós-guerra, que cumprir com êxito a missão de suplantar o fascismo na Europa:
“Otra forma de participación constitucional del pueblo en el poder público, es la iniciativa popular que hasta ahora existe exclusivamente en Suiza. En virtude de ella los sujetos legiferantes tienen que seguir las formas prescritas en el referéndum, de modo que la última decisión se reserva al pueblo. Además, en América se da en sus Estados miembros (se admite en la Unión, pero hasta ahora no se ha aplicado), existe la interesante institución de las convenciones, es decir, de Parlamentos unicamerales elegidos para revisar la Constitución, por lo tanto, poseen una esfera de acción limitada con una especie de mandato imperativo. Significam, al mismo tiempo, una limitación de las legislaturas normales y son mucho más independientes que aquéllas por el estímulo de los partidos.” (JELLINEK , 1991, p. 89).
É neste célebre texto de GEORG JELLINEK versando acerca do fenômeno da mutação constitucional, denominado precisamente de Reforma e mutação da constituição e publicado originalmente no ano de 1906 com a análise empírica de casos importantes, que consta o primeiro estudo sistemático do problema, quando o juspublicista alemão constata, antes mesmo do advento dos direitos econômicos, sociais e culturais no texto constitucional, que:
“El desarrollo de las Constituciones muestra, a pesar de que todavia no se aprecie suficientemente, el enorme significado de esta enseñanza: que las proposiciones jurídicas son incapaces de dominar, efetivamente, la distribución del poder estatal. Las fuerzas políticas reales operan según sus próprias leyes que actúam independentemente de cualquier forma jurídica.” (JELLINEK, 1991, p. 84)
Um tema identificado e anteriormente assim denominado (Verfassungswandlung: mudança constitucional) por PAUL LABAND, quando, em 1895, o grande cultor do direito público positivo imperial alemão também aborda o contraste entre o texto da Constituição da Alemanha de 1871 e a realidade conformada pelas forças sociais em seu Die Wandlungen der deutschen Reichsverfassung (Mutação da Constituição Alemã). Forças diversas e com presença marcante na sociedade ao ponto de serem definidas por FERDINAND LASSALLE – na conferência denominada de A essência da constituição, proferida em 1863 para intelectuais e operários da antiga Prússia – como “fatores reais de poder” (LASSALE, 1985, p. 11) diante dos quais a Constituição não passaria de uma folha de papel, pois:
“Os fatores reais do poder que atuam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são.” (LASSALE, 1985, p. 41)
Ao fazer uma clara alusão à frase do Rei Guilherme IV, na qual o então regente da Prússia afirmou que “nem no presente nem para o futuro permitirei que entre Deus do céu e o meu país se interponha uma folha de papel escrita como se fosse uma segunda Providência” (op. cit., p. 25, nota), LASSALE constata que a Constituição escrita é uma “folha de papel” distinta da “constituição real e efetiva” (op. cit., p. 25) e sustenta que aquela deve refletir os “fatores reais de poder” (op. cit., p. 11) – assentados no que chamava de fragmentos de Constituição identificados na monarquia, na aristocracia, na grande burguesia, nos banqueiros, no exército, na pequena burguesia e na classe operária, bem como na própria cultura geral da nação daí decorrente (op. cit., p. 11-19) – para ser efetiva, pelo que afirma:
“Onde a constituição escrita não corresponder à real, irrompe inevitavelmente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dias menos dia, a constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país” (LASSALE, 1985, p. 41-42).
Ocorre que o constitucionalismo contemporâneo confere força normativa ao texto constitucional e suas normas (dever ser) na conformação da realidade (ser) em decorrência das decisões do Poder Constituinte originário, o que invalida e torna ilegítima a pretensão de tantos que queiram repristinar uma velha cultura jurídica liberista – especialmente acirrada em decorrência da mutação constitucional patrocinada pelo STF ao julgar procedente a Medida Cautelar na ADI 5624 para autorizar a venda fatiada de empresas estatais sem lei e sem licitação – em detrimento dos compromissos sociais e ambientais da Constituição do Brasil de 1988. Uma mesma realidade que inspirou o professor, juiz e ex-presidente da Corte Constitucional da Alemanha, KONRAD HESSE, em sua consagrada conferência de 1959 na Universidade de Freiburg (HESSE, 1991, p. 19), ao identificar que para assegurar a força normativa da Constituição é imprescindível uma vontade de Constituição (Wille zur Verfassung) pelos agentes públicos e privados diante da vulgar vontade de poder (Wille zur Macht), pelo que:
“Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência social – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional –, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung).” (HESSE, 1991, p. 19).
A negativa de tal desiderato fatalmente se desdobra no mito da situação irresolvida, referida por CARL SCHMITT para tentar justificar a sua contraditória situação de quem assumiu a tarefa de delinear os princípios fundamentais do Estado nacional-socialista – vide o texto de Estado, movimento e povo (SCHMITT, 2005, p. 255) – em suposta defesa do velho jus publicum europaeum como ciência jurídica de sua preferência e que teria, nas palavras do próprio intelectual colaboracionista do nazismo, como Pai “il rinato diritto romano” e como Mãe “la Chiesa di Roma” (SCHMITT, 2005, p. 10), pelo que invoca expressamente a tragédia do comandante Benito Cereno, retratada no conto de HERMAN MELVILLE de mesmo nome, em entrevista de 1982 ao jurista italiano FULCO LANCHESTER – publicada por GIORGIO AGAMBEN com o título de Un giurista davanti a se stesso (SCHMITT, 2005, p. 183) –, na qual o capitão do navio St. Dominick é obrigado a colaborar com os escravos amotinados enquanto representante de uma velha e decadente cultura capturada pela barbárie e pelo terror. Trata-se de uma arbitrária e assumida ruptura violenta com a ordem democrática da República de Weimar em nome de valores conservadores e sem qualquer segurança quanto aos seus desdobramentos, o que no Brasil contemporâneo expressa um fervor liberista contra o texto social-democrata da Carta Maior de 1988, igualmente sem qualquer segurança quanto aos possíveis desdobramentos, no que apenas encontra alento no recente resultado das urnas do último dia 30 de novembro ao apontar para a retomada da normalidade institucional e social. Mas, segue o impasse diante de uma Carta constitucional que reclama plena efetividade!
O recurso ao princípio da soberania popular se mostra, portanto, acertado justamente diante da dificuldade de tal autocontenção dos titulares dos órgãos de soberania e dos ditos fatores reais de poder, o que decorre justamente dos limites dos postulados constitucionais e de seus preceitos normativos voltados para conformar a realidade contra interesses arraigados de segmentos oligarcas e hoje notadamente vinculados ao sistema financeiro. Neste sentido se faz presente a denominada ‘Lei de Hume’, pois DAVID HUME acertadamente apontou, em seu Tratado da natureza humana, (HUME, 2009, p. 509), a impossibilidade lógica e insuperável de se depreender de uma dada realidade do ser (Sein) o dever ser (Sollen), o que delimita a atividade dos intérpretes dos textos legais e orienta a atuação destes em conformidade com o plano do dever ser consagrado pelo legislador democrático. Uma contribuição que está bem presente na última obra de HANS KELSEN, Teoria geral das normas, quando o grande cultor do normativismo jurídico explicita que uma norma decorre de um ato de vontade e não de um ato de conhecimento, de tal modo que: “Dever ser e ser estão na relação de um dualismo irresolúvel” (KELSEN, 1986, p. 77). Neste sentido KONRAD HESSE é lapidar ao asseverar na mesma conferência acima referida que:
“A Constituição jurídica não configura apenas a expressão de uma dada realidade. Graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social. As possibilidades, mas também os limites da força normativa da Constituição resultam da correlação entre ser (Sein) e dever ser (Sollen).” (HESSE, 1991, p. 24).
É, por conseguinte, pela vontade soberana do povo que a Constituição do Brasil cobra efetividade em nome da identidade e do perfil histórico-social brasileiro e de suas instituições democráticas, pois, conforme já afirmado em texto antecedente, no Estado de Direito o único dono da exceção é o povo soberano. Esta foi, conforme acima referido, a grande lição de GEORG JELLINEK ao concluir o estudo acerca do fenômeno da mutação constitucional apontando como solução para a equação de impasses decorrentes da necessidade de mutações constitucionais a sempre necessária observância do princípio da soberania popular.
Enquanto o Brasil for uma república democrática, “todo o poder emana do povo” (Constituição, art. 1º, parágrafo único), de tal modo que os “arranjos” que se apresentam como supostas mutações constitucionais jurisprudenciais e institucionais desconsiderando a vontade do povo são ilegítimos e notadamente apontam para um ponto cego de indefinição e impasse social e institucional com desdobramentos imprevisíveis. Na célebre sentença de Winston Churchill, lançada em discurso na Câmara dos Comuns do Reino Unido em novembro de 1947, está a resposta, pois a democracia ainda é “the worst form of government except all those other forms that have been tried from time to time” (CHURCHILL, 1974, p. 7566 – Tradução livre: “a pior forma de governo, salvo todas as outras experimentadas de tempos em tempos”).
A solução para os impasses da democracia, hoje e sempre, passa pela ampliação da democracia!
*Advogado, Procurador do Estado do RS, associado do IBAP e Doutor pela Faculdade de Direito da USP.
Foto – Sindicato dos Bancários SP.
Artigo publicado originalmente em Revista PUB.
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