?>

Sem Tags

Plano diretor de desenvolvimento urbano ambiental sob ataque: as boiadas urbanísticas e as resistências em Porto Alegre

Plano diretor de desenvolvimento urbano ambiental sob ataque: as boiadas urbanísticas e as resistências em Porto Alegre

Artigo por RED
13/09/2022 13:13 • Atualizado em 14/09/2022 21:51
Plano diretor de desenvolvimento urbano ambiental sob ataque:  as boiadas urbanísticas e as resistências em Porto Alegre

De BETÂNIA ALFONSIN

COLUNA DIREITO À CIDADE HOJE

Desde o impeachment da presidenta Dilma, em 2016, a Política Urbana brasileira sofreu um processo de descaracterização e desdemocratização. Aproveitando essa inflexão ultraliberal que já ocorria nacionalmente, atores do mercado imobiliário miraram as cidades brasileiras, especialmente as capitais, visando repetir esse processo na escala local. Foi então que, em um efeito de refração política, passou-se a observar uma série de movimentos nos municípios que também representaram mudanças significativas na legislação urbanística de várias cidades.

A pandemia foi um agravante desse processo, pois após a reunião ministerial que, televisionada, chocou o Brasil com a intervenção do Ministro Salles defendendo que se aproveitasse que as atenções estavam voltadas para o combate à COVID-19 para “passar a boiada” e alterar a legislação ambiental brasileira, uma espécie de “efeito Salles” potencializou os ataques aos planos diretores e legislação urbanística nos municípios brasileiros.

O caso de Porto Alegre é emblemático, pois o município havia recém iniciado a revisão periódica do plano diretor, que, por força de determinação do Estatuto da Cidade, deve ocorrer a cada dez anos. Em um primeiro momento, o governo Melo tentou continuar o processo, que deve contar com audiências públicas, substituindo as reuniões presenciais por audiências virtuais, mas após forte oposição da sociedade civil esse processo foi suspenso por uma recomendação expressa do Ministério Público da ordem urbanística.

Insatisfeito com a impossibilidade de acelerar a revisão do Plano Diretor de desenvolvimento urbano ambiental, o governo Melo partiu para uma estratégia de fragmentação da revisão do plano diretor, enviando projetos de lei com alterações pontuais para a Câmara de Vereadores, alterando o regime urbanístico e o zoneamento apenas de áreas nas quais o mercado imobiliário tem interesses e projetos bastante específicos.

Além da ilegalidade flagrante de não revisar o plano diretor no território do município como um todo, Melo desobedeceu de maneira inequívoca a recomendação do Ministério Público em suspender a revisão do plano diretor durante o período pandêmico. Note-se que há uma conduta anti-jurídica no conteúdo e na forma, pois além de fragmentar a revisão do plano, a participação popular foi muito prejudicada em função da emergência sanitária.

Os territórios atingidos por essas “boiadas urbanísticas” são os seguintes

  • A antiga “Fazenda do Arado” localizada no extremo sul de Porto Alegre e área dotada de interesse ambiental, com espécies de fauna e flora nativas e, algumas, ameaçadas de extinção, agora com regime urbanístico que permite o parcelamento do solo para fins residenciais na região.
  • O Centro Histórico, cuja proposta urbanística propõe adensamento para a região e alterações de uso, desconsiderando demandas históricas dos movimentos de luta por moradia na cidade para que haja um incentivo à produção de habitação de interesse social no bairro.
  • A região do 4º Distrito, cujo regime urbanístico é alterado com o objetivo de revitalizar o bairro, mas que promove uma descaracterização da paisagem e, a médio prazo, altera o perfil sócio-econômico dos moradores da área, gerando uma previsível gentrificação nos bairros atingidos pelo projeto.

Como uma nota comum a todos os projetos de lei aprovados, observou-se uma pressa notável do governo municipal em tramitar os projetos de lei na Câmara, atropelando, para atingir tal objetivo, tanto o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental quanto a participação popular nas audiências públicas. Assumindo um tom claramente autoritário durante a pandemia, já que as reuniões passaram a ser virtuais, a condução das discussões no CMDUA deram ao debate sobre esses projetos urbanísticos um caráter meramente homologatório de decisões já tomadas pelo poder público, para frustração dos conselheiros e conselheiras contrários/as ao teor dos projetos. Da mesma forma, vozes críticas a tais propostas de alteração do regime urbanístico nessas regiões da cidade, tiveram dificuldades formais para poderem expressar-se na esfera pública, tornando o momento da audiência pública, uma formalidade a ser vencida no caminho da aprovação dos projetos.

Com esses movimentos, o município de Porto Alegre se tornou uma excelente ilustração da descaracterização e desdemocratização em curso no país, em um exemplo bastante revelador de que há um padrão nos projetos e iniciativas do mercado no último período. No caso da capital gaúcha, esse padrão revela uma traição das diretrizes da política urbana que o Estatuto da Cidade estabeleceu.

Ao invés de recuperar para a coletividade a valorização imobiliária que decorre dos investimentos públicos, como comanda o Estatuto da Cidade, o que se vê no município são isenções e renúncia de receitas, como acontece no projeto de revitalização do 4° Distrito, antiga área industrial da cidade e agora forte candidata à expulsão da população de baixa renda que ali se instalou ao longo de décadas de abandono.

A cidadania também assiste estarrecida o município conduzir uma política que ao invés de zelar pelo modelo de planejamento urbano preconizado pelo Estatuto da Cidade e estabelecido pelo PDDUA – plano diretor de desenvolvimento urbano-ambiental, aprova alterações do regime urbanístico em projetos que desconsideram pactos construídos coletivamente, mas muito convenientes aos interesses dos atores ligados ao mercado imobiliário da cidade. A fragmentação da revisão do plano diretor do município, com projetos de lei pontuais e focados em porções do território, revela que muito mais do que promover a revisão periódica do plano diretor da cidade, o governo municipal se apressa em fornecer aos empreendedores o regime urbanístico que necessitam para viabilizar seus projetos imobiliários.

Outro deslocamento perverso é aquele que ao invés de garantir o direito à cidade e usufruto coletivo dos comuns na cidade, submete a população à apropriação privada desses bens, como é o caso do Cais Mauá, objeto de cobiça pela beleza e localização estratégica da orla. Para este espaço foram reservados requintes de crueldade urbanística, com impactos ambientais e na paisagem que causarão danos irreversíveis à cidade. Outra manifestação desse movimento que promove a mercantilização da cidade é o Parque da Redenção, histórico local de encontro da diversidade cultural, social, étnica e sexual da cidade, agora considerado pelo governo como um “parque deficitário”, como se isso fosse plausível juridicamente. Trata-se de uma aceleração da privatização dos espaços comuns e ambiências urbanas, além dos símbolos, da paisagem, dos próprios nomes dos lugares, violentamente apropriados, sem qualquer consulta minimamente decente à população.

Ainda mais triste para a cidade que tornou o Orçamento Participativo internacionalmente conhecido como uma política pública de incorporação da participação popular nos processos de tomada de decisão sobre as finanças municipais, é ver que a cidade também migrou da gestão democrática a uma prática de silenciamento patrocinada justamente pelos órgãos que deveriam promover e incentivar a participação popular. Em Porto Alegre silenciam microfones em audiências públicas, bem como o tempo do relógio corre mais rápido para algumas lideranças comunitárias do que para os representantes de segmentos sociais ligados ao mercado. Visualizações de Lives transmitidas pelo youtube são contabilizadas como números que expressam “participação popular”, em uma prática de fraude à gestão democrática da cidade.

É preciso registrar, no entanto, que esse processo encontra resistências importantes em Porto Alegre. A sociedade civil organizada e entidades de base territorial e comunitária tem sido incansáveis no acompanhamento desse mal encaminhado processo de revisão do plano diretor de desenvolvimento urbano e ambiental de Porto Alegre. A articulação ATUAPOA – todxs nós pelo direito à cidade, por exemplo, reúne quase 80 entidades com atuação em Porto Alegre e foi responsável pela denúncia desse processo junto ao Ministério Público da ordem urbanística.

Espera-se que a redemocratização do país, cujo primeiro passo se dará em 02 de outubro com a derrota iminente do projeto de aprofundamento da inflexão ultra-liberal no país, possa, a médio prazo, refletir-se também em Porto Alegre, que já foi referência internacional de democratização da gestão pública com a política pública do Orçamento Participativo. Recuperar o planejamento urbano participativo e o projeto de cidade para todos e todas, em Porto Alegre, passa por esse movimento de resistência aos ataques à ordem urbanística, mas não apenas: é preciso ampliar o debate e atingir um público mais amplo, que ignora, hoje, a gravidade das decisões que vem sendo tomadas no município. A experiência de Porto Alegre mostra que o direito à cidade sustentável não cai do céu azul, mas se atualiza em cada território, em cada caso concreto, através das resistências e lutas para que ele seja respeitado. Não temos como controlar as iniciativas pró-mercado do governo municipal, mas a observação do processo de Porto Alegre mostra que vai ter luta!

*Doutora em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ, Diretora Geral do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Ambiental e Urbanístico da Fundação Escola Superior do Ministério Público.

Foto do Centro de Porto Alegre: Sérgio Louruz, divulgação PMPA.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

Toque novamente para sair.