Opinião
Páscoa, a escrava lolita
Páscoa, a escrava lolita
De ADELI SELL*
128 anos separam o relato do caso da escrava Páscoa, em Porto Alegre, e o lançamento do romance Lolita de Vladimir Nabokov (1955). Estávamos na capital (1827), que há cinco anos tinha virado “cidade”.
Lolita era uma ficção ousada, em livro, que virou sucesso, virou cinema, teatro, opera e ballet. E “Lolita” passa a ser um designativo de mulher jovem, bonita e sexy.
Já o caso de Páscoa, sendo certo que ela existiu, pois seu rapto é anunciado publicamente no jornal Diário de Porto Alegre como sendo uma escrava de 13 anos raptada por um homem branco, mais velho, “oficial empregado na Pagadoria do Exército”. Dado como algo escandaloso, numa reclamação de quem era “senhor” da escrava.
O livro Lolita de Nabokov virou escândalo, tratado por muito como pornográfico. O certo é que “deu o que falar” no país das hipocrisias que são os EUA.
No Brasil acontecia de tudo nos tempos de Páscoa, com “lolitas” negras pegas à força nas casas grandes, muitas vezes ficando grávidas, tudo escondido da sociedade.
O dito raptor e a dita raptada teriam pego um barco nos trapiches quase junto a Igreja das Dores para sua fuga a Rio Grande.
O relato que tive fala de uma “mulatinha” muito jovem, “de feições regularmente belas, trajando um grosso e mal ajeitado vestido de tecido inferior” e aí vai.
Este caso se espalhou e ficou no imaginário local, porque vivíamos duros tempos da Escravidão local, onde quase metade da cidade era negra. Sim, Porto Alegre é açoriana, mas é mais negra, é multifacetada, multiétnica.
O resgate deste caso foi feito pelo ex-vereador e exímio cronista Ary Veiga Sanhudo em 1961, tanto que é ele quem faz referência a Lolita, romance de 6 anos antes. É ele quem transcreve o jornal da época, dando conta de Páscoa.
Do que se depreende de Sanhudo é que o caso atiçou a libido tolhida de quase toda a cidade, até por ser Páscoa uma escrava, no caso, “mulatinha e até bela”; fugindo com um distinto cidadão.
Este caso hoje seria tido como pedofilia, mas pelo que se sabe de antanho era bem comum.
Aqui, como em vários casos de nossa Literatura, até nos melhores escritos, a negra era o prato da lascívia quando jovem. Era a mãe generosa a negra dama de leite. A negra era desajeitada, quando lavadeira, na beira do Guaíba, subindo a Morro da Formiga. Eram os estereótipos.
Nos dias que correm surge uma vigorosa Literatura de mulheres negras que resgatam seus corpos pretos com os seus desejos, sem a pecha do escondido, nem tapada com um vestido de qualidade inferior. É a vez e a voz da coragem. Falam verdades apagadas, sumidas, escondidas. Veja a voz de uma de nossas poetas negras, Miriam Alves:
Salve América!
Ah!
Esta América Ladina
Ainda nos roubam o fígado, os filhos
Nos roubam a sorte
A morte
O sono
Ah!
Esta América Ladina
As três caravelas pintaram destinos
Santa Maria, nada teve a ver comigo
Pinta, roubou-me o colorido natural
de ser eu mesma
Nina, enfiou-me pela goela
mamadeira de sangue, sal e urina
Até hoje me Nina em seus podres berços de miséria
Páscoa não se sabe se sabia ler ou escrever. Como suas irmãs de sangue e raça, deveria, naqueles tempos, ser analfabeta. O que a moveu a fugir calada naquele barco em tão distantes tempos nunca saberemos. Mas sabemos que, em Porto Alegre, desta “América Ladina” tinha escravos e escravas.
Daqui, temos a voz firme e decidida de Lilian Rocha, sem papas na língua:
Fêmea
Na boca
Ainda úmida
Da tua saliva
Meus lábios
Estalam
Prazer e libido
Quero repetir
A dose
Da embriaguez
Que me tonteia
Os sentidos
Tremo de cima
Abaixo
No soar
Do teu gemido
Sou tua fêmea
Faça agora
Todos os meus
Caprichos.
É hora de resgates, de lutar contra o esquecimento e o apagamento e ao mesmo tempo colocar em evidência quem escreve, como escreve, para quem escreve.
Há uma busca entre nós a partir de pesquisadores/as para recolocar os temas, acontecimentos no seu devido lugar. Temos na literatura quem nos bem representa, negros ou não, mas não só mais brancos.
Como vamos esquecer Páscoa? Como vamos esquecer Josino morto inocente no Largo da Forca?
O pó dos castigados está nas nossas terras, alimentaram raízes. Logo, é mais do que hora de buscar estas raízes.
*Escritor, professor e bacharel em Direito.
Imagem em Pixabay.
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