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Opinião

Os últimos dois minutos da democracia

Os últimos dois minutos da democracia

Artigo por RED
25/01/2023 11:40 • Atualizado em 27/01/2023 10:07
Os últimos dois minutos da democracia

De SANDRA BITENCOURT*

“Acho que estamos nos últimos dois minutos da democracia. Eu costumava jogar basquete. Se você joga basquete, os últimos dois minutos são tudo. E estamos perdendo o jogo. A menos que algo drástico mude, 2024 será o ano em que a democracia cairá do penhasco.” A afirmação é da jornalista Maria Ressa, ganhadora do prêmio Nobel da paz em 2021 (e que pode ser presa nas Filipinas por fazer denúncias contra o governo do país) em entrevista ao Guardian, em novembro do ano passado. Ressa está lançando o livro How to Stand up to a dictator? (Como enfrentar um ditador), no qual conta detalhes dessa saga e mostra como o ecossistema de informações está corrompido.

O ex-presidente das Filipinas Rodrigo Duterte, também conhecido como “Justiceiro”, venceu as eleições de 2016 usando exatamente as mesmas técnicas de guerra de informação que os Brexiters no Reino Unido, a partir do que Ressa resume como receita: suprimir informações e substituí-las por mentiras, atacar violentamente fatos com um exército digital barato no terreno, insistir de cima que os fatos não importam mais e as pessoas estão entediadas com eles. Até o final de seus mandatos no ano passado, a popularidade de Duterte permaneceu inabalável entre as pessoas em áreas mais pobres, apesar dos ataques aos direitos humanos, ao Estado de direito e à mídia. Até 30.000 pessoas morreram como resultado de execuções extrajudiciais ligadas à guerra às drogas de Duterte, de acordo com uma estimativa citada pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), que agora está investigando os assassinatos. A maioria dos mortos era de jovens que viviam em áreas urbanas pobres. Mas Duterte foi capaz de oferecer um engajamento político alternativo aos filipinos. Algo que não seria possível sem a construção feita nas redes. Isso porque a estrutura de incentivos do ecossistema de informações recompensa a mentira, como assinala também a jornalista Ressa. “Todo o modelo de negócios das plataformas de mídia social é atrair a atenção de maneiras cada vez mais criativas: coletar mais dados sobre os usuários, direcionar o conteúdo com mais precisão, até que todos tenhamos uma visão de notícias de 360 ​​graus compreendendo apenas as histórias que queremos ler. Na raiz de tudo, está a verdade elementar de que as mentiras são simplesmente mais interessantes do que os fatos”.

Promessas violentas e redes de mentiras também definiram a eleição brasileira em 2018. Foi o caso de um candidato que anunciou barbaridades, incluindo não demarcar um centímetro de terras indígenas, e que os eleitores preferiram não acreditar, conferindo ao discurso uma virtude espontânea e sincera. A fala de Ressa sobre as Filipinas cai como luva na situação brasileira. “Quando vemos resultados eleitorais que não fazem sentido, eleitores se inclinando para candidatos manifestamente desequilibrados, e esses resultados ecoando no futuro”. As dilacerantes imagens de crianças ianomâmis famélicas, derrotadas pelo abandono completo, mostram esses resultados ecoando no futuro e materializam os perigos crescentes das mídias sociais. “Comportamento emergente – que a maneira como um sistema se comporta não pode ser prevista a partir do que você sabe sobre as partes individuais”, escreve ela. Na verdade, o sistema como um todo exerce pressão sobre os indivíduos, uma espécie de pressão dos pares exercida pela dinâmica de grupo, que muitas vezes faz com que as pessoas façam coisas que não fariam se estivessem sozinhas”, diz a jornalista. Outra vez encaixa à perfeição nos fenômenos protagonizados pelos patriotas que escalaram a um ponto de terrorismo e crime.

E se as mídias sociais puderem nos transformar em nossos eus de máfia sem que tenhamos que sair do sofá? Questiona Ressa. A tecnologia não pode criar um comportamento humano emergente que é o pior de quem somos.

A guerra moderna está sendo travada contra cada indivíduo nessas plataformas de tecnologia. É um desafio altamente complexo buscar regular a produção industrial e estratégica da mentira que busca capturar a atenção com precisão algorítmica das pessoas com maior probabilidade de serem excitadas por essas falsas informações. Compreender e combater isso seja talvez a tarefa mais urgente, que não pode ser exclusiva do governo, mas de todos os democratas, dos ativistas progressistas e da mídia. Esta última, por enquanto, cumpre seu papel de reverberar as informações e as imagens trágicas, embora se preocupe demasiado em não parecer aderente ao governo, com críticas apressadas e até mesmo banais diante do perigo que nos assola.

O novo governo parece ciente do desafio e anuncia ânimo de regulação das plataformas e proteção de direitos digitais. Mas para além disso, precisa compreender a dinâmica 5.0 e produzir incansavelmente conteúdo e informação com explicações claras, lógicas e estéticas digitais, com apelos e conexões a políticas públicas capazes de atrair atenção e adesão da cidadania. Isso passa por pautas inescapáveis e não raro negligenciadas pela esquerda, como o tema da segurança pública. Eis um terreno sempre fértil para os chamados autoritários, para as soluções simples e o terror.

São vinte e poucos dias de governo, sabemos, mas o jogo é duro e certamente estamos tratando de nossos dois minutos. Temos um ala-armador que é uma lenda e a maioria da torcida é nossa. Vamos fazer esses três pontos.



*Doutora em comunicação e informação, jornalista, pesquisadora e professora universitária.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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